Por Luciana Gurgel, de Londres

Publicado no Portal dos Jornalistas em 19.08.2020

A BBC tem problemas de sobra para administrar, como a dificuldade em atrair audiรชncia jovem e a revolta dos idosos, que agora terรฃo que pagar a taxa obrigatรณria para acesso aos canais da rede, se tiverem condiรงรตes financeiras para tal. Mas nas รบltimas semanas arrumou mais um.

Estรก no centro de uma controvรฉrsia por causa do uso de uma palavra ofensiva para descrever pessoas negras em uma reportagem veiculada no canal regional Points West e posteriormente em rede nacional pela BBC News. Para completar, a palavra execrada tambรฉm apareceu em um documentรกrio sobre a histรณria da escravidรฃo americana exibido pelo canal BBC2, estrelado pela historiadora Lucy Worsley.

N-word: 12 dias para um pedido de desculpas

O caso que disparou a crise foi provocado por matรฉria da repรณrter Fiona Lamdin em 29 de julho, mostrando o ataque a um jovem negro em Bristol. Ela entrevistou familiares do rapaz e relatou o xingamento a ele dirigido. Mas em vez de usar a expressรฃo N word, forma indicada para nรฃo pronunciar a ofensiva palavra โ€œniggerโ€, repetiu o xingamento.

Fiona Lamdin

Hรก um entendimento entre entidades que combatem o racismo de que a palavra, de cunho fortemente pejorativo, deve ser evitada e nunca pronunciada por pessoas brancas. Ainda que Lamdin tenha feito a ressalva de que a pronunciaria, levantou-se uma revolta contra a emissora.

ร‰ difรญcil afirmar onde exatamente comeรงou. Uma pista รฉ o tweet de uma ativista, logo em seguida ร  matรฉria ir ao ar. @laurellah postou sua indignaรงรฃo e o post viralizou.

A despeito da onda que prometia crescer, a posiรงรฃo inicial da BBC foi arriscada. Nรฃo se desculpou. Optou por justificar o uso da palavra em um comunicado oficial e em mensagens diretas aos que reclamaram, argumentando estar no contexto e ter havido o alerta prรฉvio da jornalista.

Apenas na รบltima segunda-feira (10/8), 12 dias depois de a matรฉria ir ao ar, saiu um pedido de desculpas, assinado pelo diretor-geral Tony Hall. Apรณs mais de 18 mil reclamaรงรตes formalizadas no site da BBC, muitas das quais encaminhadas tambรฉm ao รณrgรฃo de controle, o Ofcom. E depois de um renomado apresentador da rรกdio BBC, o DJ Sideman, negro, ter pedido demissรฃo.

O impacto foi imenso e ultrapassou as fronteiras britรขnicas. Notรญcias sobre o pedido de desculpas foram destaque em redes globais como CNN e NBC.

Controles redobrados e reaรงรฃo rรกpida

O episรณdio coloca em evidรชncia duas questรตes importantes nos dias de hoje, em que a sensibilidade quanto a temas que envolvam grupos sociais e minorias รฉ cada vez maior. Os controles internos dos veรญculos de comunicaรงรฃo e de organizaรงรตes que dialogam com o pรบblico por redes sociais nรฃo podem ser relaxados. E convรฉm revisรก-los constantemente para assegurar que continuem alinhados ร s percepรงรตes da sociedade, que nรฃo sรฃo estรกticas.

Isso nรฃo ocorreu com a matรฉria da BBC. Ninguรฉm โˆ’ nem a repรณrter, nem produtores, nem editores โˆ’ parece ter atentado para o risco de reaรงรฃo furiosa pelo uso da palavra pesada, a despeito dos protestos raciais que se alastraram mundo afora e atingiram tambรฉm o Reino Unido. Os sinais de que se tratava de um caso potencialmente explosivo estavam ali, mas foram ignorados.

Ela atรฉ foi removida horas depois de ir ao ar. Mas foi exibida por tempo suficiente para ser vista e causar o impacto negativo.

A outra questรฃo รฉ o tempo de resposta. Os 12 dias entre a veiculaรงรฃo e o pedido de desculpas serviram para provocar a ira de pessoas que talvez nem se engajassem na onda de crรญticas. Mas que se viram compelidas a embarcar diante da falta de aรงรฃo da emissora e de um comunicado minimizando o caso.

Foi esquecido um mandamento bรกsico de gestรฃo de crises. Hรก certas coisas que nรฃo dรก para deixar esfriar, porque nรฃo vรฃo esfriar sozinhas.

Questรตes raciais estรฃo entre elas.