Por Aldo De Luca | MediaTalks, Londres
Estudo que mostra Donald Trump como a principal fonte de desinformação da Covid-19 traz uma boa e uma má notícia para a imprensa. A boa: só 2,9% de toda a cobertura sobre a doença foram de desinformação. A má: só 16,9% da desinformação transmitida estavam assinalados, corrigidos ou questionados.
. Desinformação na mídia tradicional aumentou depois que OMS decretou pandemia e Trump iniciou sua cruzada para tentar minimizar seus efeitos
. As curas milagrosas foram o tópico que gerou mais desinformação, a partir do anúncio da primeira morte nos Estados Unidos e turbinado pelas recomendações de Trump
. Recomendação de desinfetante de Trump foi o fato que gerou mais desinformação na mídia tradicional
A pesquisa divulgada em 1º de outubro pela Cornell Alliance, da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, é a mais abrangente análise já feita até o momento sobre a cobertura da Covid-19 transmitida pela mídia tradicional. Foram pesquisadas 38,7 milhões de notícias veiculadas de janeiro a maio deste ano em fontes impressas, eletrônicas e online, incluindo blogs e podcasts.
O primeiro ponto a destacar é que, embora seja uma amostra internacional, foram analisadas somente as notícias em língua inglesa. Portanto, Trump é a grande fonte de desinformação de Covid-19, ganhando de todos os políticos de língua inglesa. É provável que ele continuasse como líder considerando todas as demais línguas, mas talvez não de forma tão disparada.
Trump responde por mais de um terço (37,9%) de toda a desinformação transmitida pela imprensa. É claro que reproduzir o que diz o presidente da maior potência do planeta acaba sendo inevitável. Mas a pesquisa aponta que a maioria da desinformação repassada não teve o devido alerta ao público.
O gráfico gerado pelo estudo, com a distribuição das 1.116.952 notícias divulgadas pela imprensa tradicional contendo desinformação sobre a Covid-19, mostra que o volume passou a um novo patamar depois que a OMS declarou a pandemia global, em 11 de março, e que começaram os esforços de Trump para minimizar os efeitos da doença.
Os grandes momentos de desinformação de Trump destacados na pesquisa estiveram ligados às curas milagrosas: a recomendação para tomar desinfetante (a desinformação campeã, com um pico inigualável de mais de 30 mil notícias) em abril, o elogio ao coquetel de drogas como preventivo em março e o anúncio de que tinha terminado seu regime de hidroxicloroquina para evitar a doença em maio (que ganharia o campeonato de mais fake agora que se sabe que ele contraiu a doença).
Isso fez com que o tópico das curas milagrosas, com a ajuda de Trump (a pesquisa classificou a mesma notícia em uma ou mais categorias), fosse a segunda fonte de desinformação, com 26,4% do total. Esse percentual é maior do que todos os outros 10 itens juntos que aparecem na sequência.
O poder de Trump na disseminação das desinformação é tão forte que sua ajuda também foi importante para os outros três do Top 5:
- o QAnon e seu Deep State (4,4%),
- a suposta farsa do Partido Democrata (3,6%) que teria feito coincidir a pandemia com o pedido de impeachment do presidente e manteria o surto até depois das eleições,
- e o vírus chinês criado deliberadamente ou por acidente no laboratório de Wuhan (2,6%).
Os tópicos seguintes são :
- Bill Gates (2,5%) e seus possíveis ganhos com a doença, tendo sido lembrada inclusive uma palestra do TED de 2015 alertando sobre o perigo de uma pandemia;
- a tecnologia 5G (2,1%) e a potencialização que ela faria da doença, as teorias antissemitas (2,6%), principalmente ligadas a George Soros;
- e o controle populacional (1,3%), dando conta de que o vírus seria uma forma de limitar a superpopulação.
Entre os três tópicos menos cotados, aparecem:
- o conselheiro da Casa Branca, Anthony Fauci (1%), também com uma boa ajuda de Trump, com seu retuíte FireFauci;
- o vídeo Plandemic (0,7%), pseudo-documentário com várias desinformações sobre a doença;
- e, na lanterna, a sopa de morcego (0,6%), fake news que apareceu logo no início dando conta de a doença teria sido causada pelo hábito dos chineses de comer morcegos.
A pesquisa identificou também que 23,4% dos artigos classificados como desinformação apresentavam os termos infodemia, desinformação ou farsa ligadas ao nome da doença, mas sem mencionar um tema específico como os relacionados acima.
A distribuição desses tópicos ao longo do período analisado pode ser vista no gráfico a seguir:
O gráfico mostra que as curas milagrosas passaram a dominar a desinformação a partir do anúncio da primeira vítima fatal da doença nos Estados Unidos, em 26 de fevereiro. O único pico que lhe fez frente, com mais de 4 mil notícias, foi o da desinformação sobre a demissão de Anthony Fauci. A Casa Branca teve que desmentir em 13 de abril, depois que Trump retuitou o post de um apoiador com essa solicitação. Foi o único evento, à exceção das curas milagrosas, que superou a marca de 2 mil notícias ao longo de todo o período analisado.
Até o domínio das curas milagrosas, o volume de desinformação na mídia tradicional era bem pequeno, e o maior pico, com pouco mais de mil notícias, tinha ocorrido no início de fevereiro, com a desinformação de que o vírus poderia ter sido desenvolvido como arma biológica no laboratório de Wuhan.
Outro pico, menor, tinha ocorrido em 25 de janeiro, associando a origem do surto ao consumo de morcegos por humanos em Wuhan, baseado nas imagens de um vídeo. O trabalho de fact-checking da imprensa atuou para alertar que eram teorias de conspiração com componentes racistas, contra os asiáticos, e geopolíticos, buscando caracterizar o vírus como chinês. E demonstrou que o vídeo mostrando humanos consumindo morcegos tinha sido gravado em 2016, na Micronésia.
Depois que as curas milagrosas se tornaram dominantes, os picos dos demais tópicos, à exceção do de Fauci, foram bem menos significativos. No início de março, um pico envolvendo o Partido Democrata, com mais de mil notícias, trazia a desinformação de que a gravidade do surto seria uma farsa para prejudicar Trump nas eleições.
A íntegra do relatório está aqui.
Aldo De Luca, conselheiro e colaborador do MediaTalks byJ&Cia, é jornalista brasileiro radicado em Londres. Formado em Jornalismo pela UFF (Universidade Federal Fluminense), foi repórter especial do jornal O Globo em 1987 e 1988. Fundou junto com Luciana Gurgel a agência Publicom, que se tornou uma das maiores empresas do setor no Brasil e em 2016 foi adquirida pela WeberShandwick (IPG Group). Além de jornalista, é engenheiro pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Integra a FPA (UK Foreign Press Association).