No epicentro da política e sob fogo cruzado, BBC vive tempos difíceis e decisivos

Luciana Gurgel | MediaTalks, Londres 

As manhãs de domingo no Reino Unido são movimentadas. BBC e Sky News exibem programas estrelados pelos incisivos apresentadores Andrew Marr e Sophie Ridge. Assuntos ali discutidos repercutem durante o dia e viram notícia nos jornais de segunda-feira.

No último domingo (27/9), o futuro da BBC disputou espaço com as medidas para controlar a Covid-19 e a crise econômica. O motivo: o vazamento de nomes cotados para decidir os destinos da rede, pauta de entrevistas com Oliver Dowden, secretário Nacional de Cultura, nos dois programas.

Como emissora pública e braço do soft power britânico, a BBC está no epicentro da política. A polarização em torno do Brexit despertou críticas do governo de Boris Jonhson quanto à cobertura das eleições gerais em dezembro. E impulsionou a decisão de interferir em seus destinos.

Charles Moore, ex-editor do The Daily Telegraph, e Paul Dacre, que deixou em 2019 a direção do Daily Mail após 26 anos (sobre quem falamos em J&Cia), emergiram como preferidos, respectivamente, para chairman da rede e diretor do Ofcom, órgão regulador ao qual a BBC está submetida. Ambos são alinhados a Johnson, ex-jornalista, e críticos da rede. Moore foi chefe dele no Telegraph.

Questões universais

Algumas questões com as quais a BBC se defronta desafiam igualmente a indústria de mídia global. Nas entrevistas, Dowden apontou a necessidade de a rede evoluir do analógico para o digital. O Governo quer que a rede dispute com plataformas digitais como Netflix e Amazon.

A ideia é descriminalizar e depois acabar com a taxa de £ 157 obrigatória para residências britânicas que possuem TV. E convencer os usuários a assinarem para assistir aos canais. Missão difícil. Por motivos como crise financeira, mudança geracional e a polarização politica, 1,61 milhão de pessoas pediram desconexão no ano passado, resultando em receita £ 58 milhões inferior à projetada.

Adversários da tese argumentam que se trata de uma emissora de serviço público, cabendo ao Estado assegurar sua sobrevivência e não jogá-la aos leões. E que o objetivo de Johnson seria esvaziá-la.

À parte questões políticas, emissoras comerciais em todo o mundo, assim como outras mídias, encontram-se em situação semelhante. Fazem malabarismos para atrair jovens e substituir a receita publicitária que se esvaiu como efeito da crise e da concentração de verbas nas mãos das plataformas digitais.

O uso das mídias sociais para atrair novas gerações pode ser parte da solução para ganhar audiência e entregar conteúdo em novos formatos. Em entrevista ao MediaTalks, o jornalista especializado em redes sociais Chris Stokel-Walker vaticinou: “Quem conseguir encontrar o caminho para fazer jornalismo no TikTok pode desbloquear a próxima geração de consumidores de notícias”.

Tradicionais organizações com o Washigton Post e a própria BBC tentam desbravar essa selva, com experiências que podem inspirar outros veículos.

Dowden apontou também como motivos para a intervenção a baixa representação da sociedade britânica além das fronteiras de Londres e a ausência de imparcialidade. Novamente a política está no meio.

Londres é um grande centro e boa parte das fontes estão aqui. Mas a cidade votou majoritariamente contra o Brexit, ao passo que comunidades ao norte são mais alinhadas ao Governo atual e valores conservadores, como barreiras à imigração.

Ainda que a BBC tenha programas inclusivos dando voz aos que estão distantes da sede, não tem sido suficiente para aplacar a ira de governistas. Entretanto, a rede apanha dos que a acusam de ser leniente com o Governo. Um problema comum a muitas organizações: não satisfazem a nenhum dos lados do espectro político.

Para refletir melhor a realidade regional, o jornalismo de interesse social é visto como um caminho. Já a imparcialidade é mais difícil de resolver, pela subjetividade. Tim Davies, diretor-geral recém-empossado, tenta agradar prometendo jogar duro contra manifestações políticas do estafe pelas redes. E Dacre deve pegar pesado. Em 2007, acusou a corporação de praticar “uma espécie de marxismo cultural”.

 

Pela sua história, a BBC merece encontrar o ponto de equilíbrio que permita continuar praticando jornalismo de qualidade. E o caminho para a adaptação a um mundo transformado pela tecnologia.

 


Luciana Gurgel,  Coordenadora editorial  do MediaTalks byJ&Cia, é jornalista brasileira radicada em Londres. Iniciou a carreira no jornal o Globo, seguindo depois para a comunicação corporativa. Em 1988 fundou a agência Publicom, junto com Aldo De Luca, que se tornou uma das maiores empresas do setor no Brasil e em 2016 foi adquirida pela WeberShandwick (IPG Group). Mudou-se para o Reino Unido e passou a colaborar com veículos brasileiros, atuando como correspondente do canal MyNews e colunista semanal do Jornalistas&Cia / Portal do Jornalistas, no qual assina uma coluna semanal sobre tendências no mundo do jornalismo e da comunicação. É membro da FPA (Foreign Press Association). 

luciana@jornalistasecia.com | @lcnqgur 

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