Por Aldo De Luca | MediaTalks, Londres
A análise da escalada de desinformação em torno da doença do presidente americano mostra como as próprias ações dele e de sua equipe alimentaram boatos e teorias conspiratórias
Para quem tem mais idade ou gosta de história, as cenas da equipe médica de Donald Trump na porta do hospital respondendo a perguntas sobre o estado de saúde do presidente americano fazem lembrar o trauma da doença de Tancredo Neves, internado antes de tomar posse, em 1985. Impossível não recordar o porta-voz Antônio Brito, celebrizado pela expressão“senhores, trago boas notícias”, com a qual abria as coletivas.
Infelizmente as boas notícias foram escasseando até que Brito tivesse que anunciar a morte do presidente. Neves seria o primeiro presidente civil desde 1964. A tensão política, com o risco de retrocesso no curso da redemocratização – e o inusitado da doença diagnosticada na véspera da posse – deram margem a teorias conspiratórias das mais diversas, com boatos sobre tentativa de assassinato e até de que o anúncio do falecimento teria sido adiado para coincidir com o Dia de Tiradentes, mártir da Independência.
Esse comportamento repete-se com a doença de Donald Trump. A diferença – e grande – é que na época de Tancredo não havia internet. Não havia mídias sociais nas quais qualquer boato pode ganhar dimensão planetária e influenciar a vida de milhares, milhões de pessoas. E Tancredo não passara meses diminuindo o perigo da doença que viria a atingi-lo.
Desde que Donald Trump anunciou – primeiro para a FoxNews e depois via Twitter, como é de seu feitio – o teste positivo para a Covid-19, em 1º de outubro, a desinformação tem se alastrado mais do que o vírus. Nenhuma surpresa aqui, pois fake news e Donald Trump andam cada vez mais juntas. Na semana da doença, um estudo da Universidade de Cornell havia apontado o líder como o maior gerador de fake news durante a pandemia, respondendo por quase 40% delas.
“Gestão temerária”da comunicação com a sociedade
Ainda que especulações em torno da doença de um líder sejam esperadas, o caso americano foi agravado pela postura anterior do presidente do país em relação ao coronavírus, marcada por contradições. E bem ajudada pela forma como a comunicação vem sendo conduzida.
Enfermidades de governantes sempre colocaram dilemas universais diante da imprensa e dos que administram a comunicação deles com a sociedade. Qual o limite entre o público e o privado? Como atuar com transparência sem causar pânico na população e afetar os mercados financeiros ou a democracia?
A Covid-19 fez com que vários países enfrentassem essa situação em um curto período de tempo, incluindo Brasil e o Reino Unido. Mas a doença do presidente Donald Trump foi o teste máximo que se poderia imaginar para os riscos advindos da condução equivocada da informação à sociedade.
Ela alimentou ainda mais as teorias conspiratórias, vem dando trabalho extra às agências de checagem e exigindo ação imediata das plataformas digitais.
Poynter Institute antecipa checagem de fatos
A disparada de fake news a partir da notícia foi tamanha que o think tank de jornalismo Poynter Institute antecipou em um dia a distribuição do informe Coronavirus Facts,feito em conjunto por seu braço de checagem PolitiFact e pelo projeto MediaWise.
Em um trecho do informe (que pode ser assinado por este link), a justificativa:
“A desinformação espalhou-se rapidamente. Houve a alegação de que ele estava sendo deliberadamente morto em Walter Reed (lorota!);
que embarcou no Marine One com um dispositivo portátil de oxigênio (falso);
até mesmo um sobre um episódio dos Simpsons que mostrava Trump em um caixão (lorota!). E as informações enganosas continuam chegando.
E listou as manifestações do próprio presidente que induziram a rumores, como a comparação com a gripe comum que ele tuitou e postou no Facebook:
“A temporada de gripe está chegando! Muitas pessoas todos os anos, às vezes mais de 100.000, e apesar da vacina, morrem de gripe. Vamos fechar o nosso país? Não, aprendemos a conviver com isso, assim como estamos aprendendo a conviver com Covid, na maioria das populações muito menos letais !!! ”
No esclarecimento, o informe apontou os erros :
“Nos Estados Unidos, até agora este ano, cerca de 210.000 pessoas morreram de Covid 19. Mas a variação típica da gripe é significativamente menor. O número médio de mortes por ano na última década foi de 35.900. E mesmo considerando o limite superior da faixa para cada ano, a média é 51.800. É metade do número de Trump”.
“Os números de Trump sobre pessoas que morreram de gripe sazonal estão errados e distorcem as estimativas reais do Governo. Para a pior temporada desta década – 2017-18 – os Centros para Controle e Prevenção de Doenças estimam o número de mortos em 61.000. Levando em consideração as falhas na notificação de mortes por gripe, o CDC sugere uma variação entre 46.000 e 95.000 mortes”.
Ação das plataformas digitais sobre os posts de Trump
Facebook e Twitter agiram contra a manifestação de que a Covid-19 seria menos letal do que a gripe, feita horas depois de ele chegar à Casa Branca de volta do hospital.
O Facebook retirou a postagem na terça-feira (6/10), afirmando que “remove informações incorretas sobre a gravidade da Covid-19 e agora removeu esta postagem”. Mas segundo o Poynter Institute, ela já havia acumulado 26.000 compartilhamentos e mais de 290.000 interações antes da remoção, de acordo com dados do CrowdTangle.
O Twitter a ocultou, com a seguinte observação: “Este Tweet violou as Regras do Twitter sobre a divulgação de informações enganosas e potencialmente prejudiciais relacionadas ao COVID-19. Mas àquela altura o post tinha mais de 59.000 retuítes e 186.000 curtidas.
Não foi a primeira vez que o presidente americano viu suas postagens removidas ou sinalizadas pelas plataformas digitais. Em agosto, o Facebook já havia removido um vídeo compartilhado por Trump afirmando que as crianças seriam imunes à doença.
Grande oportunidade para teorias conspiratórias
Notório por alimentar ele próprio algumas das teorias conspiratórias mais populares associadas à Covid-19, Donald Trump acabou vendo-se vítima do próprio veneno. Teses absurdas sobre a doença do presidente multiplicam-se nas redes sociais.
Em matéria publicada no dia 7 de outubro, a Vanity Fair observou que o nível é comparável ao da época da morte do presidente John Kennedy. E listou algumas:
Teria sido uma tentativa de assassinato chinesa ?
Uma chance para ele sair do centro das atenções para prender secretamente Hillary Clinton por seu envolvimento em uma rede internacional de pedofilia? Uma conspiração democrata para afastá-lo antes da eleição?
Uma invenção para ajudar Trump a ganhar o voto de simpatia, atrasar a eleição ou distrair os americanos de sua lista crescente de escândalos de último segundo?
E aponta a que considera a mais engraçada: que o presidente teria pego o vírus graças a um esquema elaborado para inviabilizar sua campanha – e não pelos meses de descuido imprudente dos protocolos de segurança, na opinião da revista.
“A Casa Branca foi o alvo?” tuitaramDiamond e Silk, dois vloggers amados pelo presidente. A dupla – que foi recentemente contratada pela Newsmax depois de perder seu programa na Fox News, supostamente por espalhar as teorias da conspiração Covid-19 – não ofereceu detalhes sobre as implicações.
Michael Moore, o documentarista, entrou na dança da conspiração
O documentarista e ativista de esquerda Michael Moore divulgou uma teoria da conspiração em sua página do Facebook que sugeria que o diagnóstico de coronavírus de Donald Trump seria falso.
“Há uma verdade absoluta sobre Trump: ele é um mentiroso consistente, absoluto, implacável, destemido e profissional. Um mentiroso em série. Um mentiroso comprovado. Quantas mentiras o Washington Post provou nesses quatro anos? 25.000?
Moore então pergunta “Então por que diabos nós acreditaríamos nele hoje? Ele ganhou sua confiança agora?Por que o sr. Trump de repente começou a dizer a verdade?”
A condução da comunicação da doença de Donald Trump, às vésperas das eleições presidenciais, deve entrar para a história pela sucessão de erros e atitudes temerárias. Com base em histórico feito pelo Poynter Institute, acompanhe aqui os principais capítulos dessa novela ainda em andamento, com os momentos em que contradições ou omissões foram confrontadas por jornalistas.
A Comunicação dos boletins médicos foi marcada por frases evasivas, omissões e divulgação seletiva de dados otimistas
Na hora do aperto, Trump fez uso de tratamento experimental que diz ter recebido como “benção de Deus”, em vez da hidroxicloroquina que recomendou à população
Comandante da Marinha acostumado à pressão, o dr. Sean Conley, médico da Casa Branca, não se abalou com a responsabilidade de ter nas mãos a vida do homem mais poderoso do planeta. Prestou os primeiros cuidados, transferiu o presidente ao hospital, liderou a equipe médica, decidiu o que fazer e o devolveu à Casa Branca. Fez o mais difícil? Parece que não, a julgar de como se saiu na hora de passar essas informações para a imprensa e o público…
A primeira lição
A primeira lição em situações como essa é a de que dourar a pílula para comunicar melhor a situação da doença, na prática, não mudará em nada o curso da doença. A célebre lição do ex-ministro da Fazenda Rubens Ricúpero (“o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”) não cabe em casos como esse.
Mas essa lição não se aprende na escola de medicina, como se viu na primeira entrevista coletiva do dr. Conley, no sábado (3/10) por volta do meio-dia. Na ocasião, ele fez referência ao “paciente com 72 horas de diagnóstico”, o que empurraria a data do teste positivo para a quarta-feira anterior.
Isso contrariaria o anúncio de Trump confirmando sua doença, que só foi feito na madrugada de quinta para sexta. Resultado: a Casa Branca teve que divulgar em seguida um posicionamento no qual o médico explicaria que, onde ele falava “72 horas”, que se passasse a entender “terceiro dia”.
Quando questionado sobre quando teria ocorrido o último teste negativo, o médico escapuliu dizendo que não falaria sobre todos os testes do passado. Mas não foi só.
Perguntado se o presidente estava fazendo uso de oxigênio suplementar, respondeu que não. Quando um repórter mais insistente perguntou se fizera antes, desconversou. Procurou a todo momento enfatizar a atitude positiva do presidente.
A segunda lição
E daí chegamos à segunda lição, enfatizada pela repórter da CNN Kaitlan Collins: falar sobre a atitude do paciente não é a mesma coisa que falar de seus sinais vitais, ainda mais quando esse paciente é o presidente da nação.
No domingo (4/10), em sua segunda entrevista coletiva, o dr. Conley admitiu que Trump teve que recorrer ao oxigênio suplementar. E não apenas em um episódio, mas em dois. Um na sexta e outro no sábado, quando por causa disso lhe foi administrada dexametasona. Mas, convenientemente, o médico não especificou a quantidade de vezes em que o oxigênio teve que ser ministrado em cada episódio: “Nas duas vezes, ele recebeu um pouco de oxigênio e se recuperou rapidamente”.
Perguntado por que não revelara isso no dia anterior, respondeu à moda de Ricúpero: “Estava tentando refletir a atitude otimista da equipe e do presidente. Não quis dar nenhuma informação que pudesse direcionar o curso da doença em outra direção”.
Mas o mea culpa não durou muito. Como a dexametasona é ministrada a pacientes com níveis severos de queda de oxigênio, um repórter perguntou se a taxa de Trump teria caído para menos de 90%. O Dr. Conley desconversou de novo: “Não chegou a 80% ou algo assim”.
Para completar, quando os repórteres perguntaram o que mostraram os raios X e as tomografias computadorizadas, saiu-se com esta: “Os resultados esperados”.
A terceira lição
É ensinada pelo consultor médico da CNN, dr. Sanjay Gupta: “Se você vai fornecer informações, tem que ser absolutamente honesto. Há uma diferença grande entre ser otimista e enganar”.
A falta de transparência e as omissões da versão oficial foram logo preenchidas por histórias falsas e teorias de conspiração. Uma dizia que Trump não estaria realmente doente, mas sim buscando angariar simpatia por essa condição, ou até para fugir dos debates. Outra dizia que Trump embarcara no helicóptero rumo ao hospital levando um tubo de oxigênio portátil escondido debaixo da roupa. Uma terceira alegava que ele fora levado ao hospital para lá ser morto.
Uma das mais divertidas dizia que os Simpsons já haviam previsto a morte de Trump. Retomava uma imagem dele dentro de um caixão, que circula desde 2017. A cena já havia sido desmascarada pelo site Snopes como nunca tendo aparecido em qualquer episódio da série.
Uma semana para ser apagada
A internação foi o grand finale de uma semana que Trump certamente gostaria de ver apagada. Começou com o The New York Times denunciando que ele pagou nada ou quase nada de impostos. Prosseguiu com o debate marcado mais pelas interrupções do que pelo que se falou. Aí vieram as pesquisas mostrando Biden como o vencedor do debate e em seguida a divulgação da piora dos números da pandemia nos Estados Unidos. Então veio o surto no estafe da Casa Branca, que culminou com a hospitalização do presidente, vítima do vírus que seis meses antes dissera que desapareceria.
Como toque de humor, a semana terminou com o retorno no sábado à noite da temporada do Saturday Night Live depois de quatro meses de férias. Logo na abertura, uma paródia do debate. Uma voz em off dizia que “foi um confronto muito divertido de assistir, contanto que você não more nos Estados Unidos”.
Desencontro de versões ou jogada combinada?
Chamou a atenção o fato de que enquanto a equipe médica só trazia boas notícias, o chefe de gabinete de Trump passava uma versão completamente oposta. No dia seguinte ao da internação, Mark Meadows, dizia aos jornalistas que a condição de Trump deteriorara-se bastante. E enfatizava que as 48 horas seguintes seriam críticas.
Isso aumentou a surpresa sobre o que viria a seguir. Em contraste ao prognóstico pessimista, nessas 48 horas Trump desfilou de carro na frente do hospital no domingo e, no dia seguinte, anunciava que deixaria o hospital, sentindo-se melhor do que se sentia 20 anos antes.
Mais desencontros na entrevista do dia da alta
Na terceira entrevista coletiva, no dia em que Trump anunciou que deixaria o hospital, o dr. Conley informou que Trump estava havia 72 horas sem receber nenhum remédio antitérmico. Seria uma evidência da melhora de Trump, já que esse é um sinal de recuperação dos acometidos pela Covid-19.
Mas era outra meia-verdade do médico, já que a dexametasona, que vinha sendo ministrada a Trump para diminuir a inflamação, é uma droga que reduz a febre.
Perguntado se a doença teria causado danos aos pulmões de Trump, desconversou dizendo que estava impedido de divulgar esses dados devido às regras de privacidade estabelecidas pelo protocolo médico.
Por fim, questionado se a alta anunciada para aquele dia não seria precoce, Conley respondeu que não havia nada a ser feito no hospital que não pudesse ser feito na Casa Branca.
Dessa vez falava a verdade. Pena que nem todos possam ter à disposição em suas casas todos os recursos disponíveis num hospital de ponta.
Vídeo ao estilo de campanha registra a volta à Casa Branca
No fim daquele dia, Trump embarcou no Marine One. Estava de volta à campanha, com a imprensa convocada para registrar sua chegada à Casa Branca. Depois de subir a escadaria, tirou a máscara e, de cara limpa, buscou passar a imagem do presidente que vencera a doença.
Tudo foi filmado por vários ângulos e logo em seguida foi liberado um vídeo com o mesmo estilo dos de campanha. Nele, Trump diz: “Estou de volta para trabalhar. Sei do perigo, mas como seu líder, tinha que fazer isso. Ninguém que é líder não teria feito isso”.
Mas nem tudo saiu como planejado, porque as câmeras da imprensa flagraram em alguns momentos sua dificuldade de respirar.
Se a semana não pode ser apagada, os posts podem
Tão logo se viu livre das regras do hospital, Trump retomou seu posto de principal fonte de desinformação da Covid-19 na mídia inglesa, como foi apontado na pesquisa mais abrangente já realizada sobre o tema, divulgada na semana passada. E passou a tuitar, literalmente, de forma doentia.
E assim, menos de 24 horas depois de sair do hospital, já teria uma mensagem deletada pelo Facebook e marcada pelo Twitter. Ela divulgava a fake news de que a influenza mata mais de 100 mil pessoas por ano, quando a média da última década foi de 36 mil por ano, segundo o PolitiFact, do Instituto Poynter.
Com a benção de Deus, o uso da mídia tradicional
Com o cerco das plataformas de mídias sociais se apertando, Trump recorreu na quarta-feira a um vídeo que emplacou na mídia tradicional, com repercussão no mundo todo.
Para minimizar as críticas de que se beneficiara de um tratamento que ninguém teve num país onde morreram 210 mil pessoas, disse que na verdade recebera “uma benção de Deus”. E prometeu que disponibilizaria o mesmo tratamento, a partir daquele momento e de graça, a todos os norte-americanos.
Além das dificuldades quase intransponíveis dos pontos de vista técnico, financeiro e logístico, o tratamento de Trump inclui uma droga experimental. Ela é capaz de turbinar a resposta imunológica, mas ainda não foi aprovada pela FDA. Portanto, não pode ser disponibilizada imediatamente, conforme prometido.
Em boa parte das veiculações, a mídia tradicional não assinalou que se tratava de uma promessa impossível, como se cobra das mídias sociais.
Lição aprendida?
É claro que se deve levar em consideração que o dr. Conley, também comandante da Marinha, estava numa posição muito difícil durante sua performance como comunicador. Ele se reunia com o paciente pouco antes de sair para dar as entrevistas. E como militar, estava duplamente subordinado às suas ordens, seja como presidente ou como comandante-chefe das Forças Armadas.
Quanto a Trump… no meio da crise, ele comparou sua infecção com a ida à escola para absorver conhecimento: “Aprendi muito sobre a Covid. Aprendi na escola real, não lendo livros escolares”.
Resta saber se aprendeu o suficiente para ser aprovado. A prova final está marcada para 3 de novembro.
Aldo De Luca, Conselheiro e colaborador do MediaTalks byJ&Cia, é jornalista brasileiro radicado em Londres. Formado em Jornalismo pela UFF (Universidade Federal Fluminense), foi repórter especial do jornal O Globo em 1987 e 1988. Fundou junto com Luciana Gurgel a agência Publicom, que se tornou uma das maiores empresas do setor no Brasil e em 2016 foi adquirida pela WeberShandwick (IPG Group). Além de jornalista, é Engenheiro pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Integra a FPA (UK Foreign Press Association).
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