coluna publicada originalmente no Jornalistas&Cia/Portal dos Jornalistas em 14.10/2020
No livro The Fleet Street Girls, a jornalista Julie Welch relata as barreiras enfrentadas por mulheres para ocupar espaรงo nas masculinas redaรงรตes britรขnicas, em uma รฉpoca em que a discriminaรงรฃo era tamanha que os pubs das redondezas sรณ atendiam a homens. Welch abriu caminho para profissionais como Katharine Viner, que comanda o The Guardian, e Roula Khalaf, editora-chefe do Financial Times.
Mas a representaรงรฃo das mulheres no jornalismo continua sendo um desafio, e nรฃo apenas como chefes. Cientistas e mรฉdicas tรชm sido citadas com muito menos frequรชncia do que seus colegas do sexo masculino na cobertura do coronavรญrus, de acordo com estudos feitos em diversos paรญses.
Seria simples se o problema estivesse apenas nas mรฃos da imprensa. No relatรณrio Mulheres na Saรบde Global, publicado em abril, o British Medical Journal contabilizou apenas 20% delas no comitรช de emergรชncia da OMS, embora respondam por 70% da forรงa de trabalho global em saรบde.
Registrou que nรฃo havia ร รฉpoca mulheres no comitรช italiano; apenas 10% delas no grupo de saรบde pรบblica americano; e 22% no Sage, o time de assessoria cientรญfica do governo britรขnico. A entidade examinou 24 forรงas-tarefa nacionais contra o coronavรญrus e encontrou paridade de gรชnero ou mais mulheres do que homens em apenas trรชs.
A imprensa acaba por refletir a baixa participaรงรฃo. Pesquisa feita pela City University encontrou 2,7 homens para cada mulher nas reportagens sobre a Covid-19 em veรญculos britรขnicos em marรงo. A Universidade de Zurique calculou que havia apenas duas mulheres entre os 30 cientistas mais citados pela imprensa no paรญs no primeiro semestre deste ano.
O mais abrangente estudo sobre o tema foi publicado em setembro. Comissionado pela Fundaรงรฃo Gates, examinou a cobertura online da pandemia em cinco naรงรตes โ Reino Unido, Estados Unidos, Nigรฉria, รfrica do Sul e รndia โ entre 1ยบ de marรงo e 15 de abril. E apurou que:
- As mulheres representaram 19% dos especialistas citados nas matรฉrias;
- matรฉrias com uma mulher como fonte traziam tambรฉm trรชs, quatro ou atรฉ cinco homens como entrevistados;
- elas raramente foram retratadas como especialistas ou detentoras de poder, tendo aparecido mais vezes expressando opiniรตes pessoais ou como vรญtimas da doenรงa;
- a cobertura jornalรญstica da pandemia privilegiou fatos, deixando menos espaรงo para um enfoque no ser humano, o que na opiniรฃo da autora do estudo, Luba Kassova, reflete melhor o interesse das mulheres.
Para aliviar a culpa da imprensa, o trabalho assinala a menor presenรงa de mulheres no universo da polรญtica como uma das razรตes para o domรญnio dos homens, fazendo com que jornalistas tenham ร disposiรงรฃo mais fontes masculinas. E faz recomendaรงรตes para empresas jornalรญsticas equilibrarem o jogo, adotando procedimentos para elevar a presenรงa de mulheres como fontes em suas reportagens.
Tambรฉm na Franรงa estรฃo sendo feitas recomendaรงรตes ร mรญdia, sรณ que pelo Governo. Um levantamento publicado pelo Ministรฉrio da Cultura em setembro constatou o domรญnio masculino nas capas de jornais do paรญs durante a crise โ 83,4%. E formulou 26 orientaรงรตes para as empresas de mรญdia equilibrarem a presenรงa entre homens e mulheres em seu noticiรกrio.
Mรฉdicas e cientistas reagem
Enquanto a igualdade nรฃo chega, hรก as que se intimidam e as que nรฃo deixam barato.
Em maio, um grupo de 35 cientistas publicou um artigo coletivo no site do The World University Ranking protestando contra o patriarcado na ciรชncia. Elas se disseram โfartasโ e classificaram os jornais de tendenciosos ao darem voz apenas aos homens, apesar de haver mulheres na linha de frente da Covid-19.
No Canadรก o tempo esquentou durante uma entrevista na CBCNews sobre medidas de isolamento. A mรฉdica Nili Kaplan-Myrth reagiu com energia quando um colega que participava da entrevista disse que ela estava falando alto. Classificou o comentรกrio de sexista e seguiu com a defesa de sua tese. Depois postou nas redes o protesto:
โNUNCA diga a uma mulher (profissional ou nรฃo) que ela nรฃo pode falar com autoridade. NUNCA diga que nรฃo somos preparadas o suficiente, especialistas o suficiente ou boas o suficiente. Temos a mesma autoridade para falarโ.