Em palestra no Instituto Reuters para estudos de jornalismo na Universidade de Oxford, o premiado jornalista Shirish Kulkarni explica por que o pรบblico estรก farto de notรญcias e como os jornalistas podem voltar a interagir com ele.

 

 

 

 

 

 

 

Por Aldo De Luca | MediaTalks, Londres

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O jornalista investigativo e pesquisador Shrish Kulkarni pode nรฃo ter lido o estudo comissionado pela entidade britรขnica Newsworks. que privou participantes de notรญcias para entender o papel que jornalismo exerce em suas vidas. Mas, em um seminรกrio online promovido pelo Instituto Reuters em 30 de outubro, ele expressou visรฃo alinhada ร s conclusรตes do trabalho.

 

 

 

 

Ao afirmar que “o jornalismo nรฃo รฉ para jornalistas, mas para os cidadรฃos, e devemos ter os cidadรฃos em nossas mentes em tudo o que fazemosโ€, Kulkarni faz um alerta importante para as redaรงรตes, e nรฃo somente do ponto de vista conceitual. Apรณs lembrar que todo jornalista tambรฉm รฉ um cidadรฃo, Kulkarni resume o grande propรณsito do jornalismo como o da orientaรงรฃo:

โ€œO jornalismo deve nos ajudar a entender o mundo, nos localizar em relaรงรฃo ao ambiente em que vivemos e nos capacitar a interagir com ele. Deve nos ajudar a formar visรตes alinhadas ร s nossas necessidades e interesses pessoais e de nossas comunidadesโ€.

A forma como ele define orientaรงรฃo รฉ uma combinaรงรฃo de dois dos objetivos identificados na pesquisa comportamental feita pela Newsworks, sobre a qual falamos aqui no MediaTalks: orientar e calibrar. 

Kulkarni incentivou os jornalistas a verem seu trabalho como um serviรงo ร s suas comunidades e a pensarem muito mais profundamente no significado do que fazem. Essa visรฃo รฉ alinhada com outro estudo do Instituto Reuters, que demonstrou que o jornalismo de serviรงo contribui para o bem da sociedade e para a sustentabilidade financeira, sobretudo da mรญdia regional, com base no estudo de jornais locais de cinco paรญses europeus. 

Ele รฉ um premiado jornalista com 25 anos de experiรชncia em todas as redaรงรตes das maiores TVs do Reino Unido. De famรญlia indiana que se radicou no Paรญs de Gales, onde nasceu, entende bem as dificuldades dos imigrantes e das minorias.

Hรก seis anos passou a trabalhar como jornalista investigativo freelance, tendo escrito matรฉrias que conquistaram manchetes em todo o mundo, sobre temas como a radicalizaรงรฃo de crianรงas pela extrema-direita e a prescriรงรฃo excessiva de antidepressivos para jovens.

Nesse perรญodo tem trabalhado tambรฉm no Bureau de Jornalismo Investigativo, alรฉm de realizar pesquisas sobre maneiras inovadores de escrever notรญcias. Busca reavaliar a finalidade do jornalismo, o que os usuรกrios esperam dele e a melhor forma de engajรก-losPoucos veรญculos estรฃo provocando mudanรงas prรกticas de melhoria

Em sua  avaliaรงรฃo, existem poucos exemplos de veรญculos no jornalismo atual que efetivamente estรฃo atingindo esse objetivo. Ele explica sua opiniรฃo: 

 

 

โ€œBoas entrevistas e ideias interessantes nรฃo significam nada se o jornalismo nรฃo levar a mudanรงas prรกticas. As pessoas nรฃo devem ser vรญtimas passivas dos problemas trazidos pelas notรญcias, precisam ser incentivadas a entender que podem fazer parte da soluรงรฃo e ajudar a transformar a realidadeโ€.  

Para ajudar a melhorar a sociedade, Kulkarni acha que o jornalismo tem que melhorar, encarando o que classifica de problemas existenciais, revendo suas prรกticas ultrapassadas e atรฉ mudando a forma de contar os fatos, โ€œainda do tempo do telรฉgrafoโ€. E para embasar suas ideias apresenta os resultados de uma pesquisa que conduziu com 1.200 pessoas, que revelou uma nova forma de contar as histรณrias aos leitores:

โ€œO lide e a teoria da pirรขmide invertida a que nรณs jornalistas fomos acostumados รฉ antinatural. As pessoas preferem a narrativa linear, que รฉ muito mais eficiente do ponto de vista da comunicaรงรฃoโ€.

Acompanhe a partir de agora os principais tรณpicos da palestra e, ao final, os detalhes dessa pesquisa. Serรก que o lide, tรฃo acostumado a aparecer primeiro, estaria chegando ao seu final?

Os trรชs problemas existenciais do jornalismo: confianรงa, pรบblico jovem e inclusรฃo

Kulkarni inicia a palestra chamando a atenรงรฃo para o que considera os trรชs grandes desafios do jornalismo atual.

 

1. O baixo nรญvel de confianรงa do pรบblico nas organizaรงรตes jornalรญsticas

 

Para o jornalista, nรฃo se pode esperar que o pรบblico confie em veรญculos que nรฃo procuram entendรช-lo. Tomando como exemplo a situaรงรฃo de seu paรญs natal, observou que menos da metade das emissoras do Reino Unido de alcance nacional  tem um correspondente baseado no Paรญs de Gales, e que รฉ menor ainda a quantidade de correspondentes dos jornais nacionais.


โ€œA mensagem clara que passam รฉ a de que nรฃo acham o Paรญs de Gales importante. Ainda assim, incompreensivelmente, essas mesmas organizaรงรตes ainda esperam que as pessoas no Paรญs de Gales confiem nelas e se engajem em seu noticiรกrio.  Nรฃo รฉ assim que os relacionamentos funcionamโ€. 

2. O pouco engajamento do pรบblico jovem

Esse tรณpico foi enfatizado por ser a audiรชncia do futuro. O jornalista citou a experiรชncia de um workshop que conduziu com um grupo de 20 jovens negros. Enquanto assistiam a um boletim da BBC News, os jovens pediram para desligar por nรฃo gostarem nem do conteรบdo nem do tom. 

 


โ€œPrecisamos encontrar uma maneira diferente de falar com as pessoas, principalmente com os mais jovensโ€. 

3. A insuficiente inclusรฃo nas redaรงรตes

Quanto mais inclusรฃo, maior a diversidade de pontos de vista a respeito das questรตes sobre gรชnero, sexualidade, classes sociais, necessidades especiais, e, principalmente, racismo, que ele considera que deve ser erradicado com urgรชncia das prรณprias redaรงรตes. Considera que a cobertura de vรกrios temas importantes seria bem diferente se mais pessoas negras estivessem ร  frente das decisรตes editoriais.

 


โ€œHรก racismo em nossas redaรงรตes, e pontos de vista racistas contaminaram tudo sobre a causa da diversidade na sociedade. Nosso discurso no jornalismo e na polรญtica frequentemente caracteriza os imigrantes como oportunistas e indignos. Imagine como esse tipo de conversa na redaรงรฃo faz eu e outras pessoas como eu nos sentirmos. Se pessoas negras estivessem conduzindo as decisรตes editoriais nas redaรงรตes, todas as nossas discussรตes sobre imigraรงรฃo, desigualdade, educaรงรฃo e crime seriam totalmente diferentes. Precisamos resolver isso com urgรชncia”. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As sete oportunidades para melhorar o jornalismo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 Conteรบdo:  โ€œAs notรญcias devem ajudar os leitores a entenderem o mundo. Devemos passar as informaรงรตes que eles querem e precisamโ€.

Kulkarni encorajou os jornalistas a pensarem profundamente sobre o que fazem. Estamos fornecendo um quadro completo das informaรงรตes necessรกrias? O trabalho reforรงa as atitudes e estruturas predominantes ou permite que o pรบblico tenha uma compreensรฃo mais abrangente do problema? Ele citou como exemplo a cobertura de crimes individuais: 

โ€œA reportagem ajuda a tornar as coisas melhores ou estimula discursos que tornam impossรญvel o debate maduro sobre reabilitaรงรฃo versus puniรงรฃo em nossa sociedade?โ€ 

 2. Contexto

โ€œO pรบblico clama por contexto e anรกlise, nรฃo quer sรณ notรญcias de primeira mรฃo e cobertura dos temas mais chamativosโ€. 

Para Kulkarni, os veรญculos pecam ao priorizarem a velocidade de informar em detrimento do contexto e da compreensรฃo do que aquela informaรงรฃo significa.

โ€œA imprensa estรก tรฃo focada no hรกbito de atualizar continuamente o noticiรกrio que o contexto torna-se realmente difรญcil de ser entendido para quem nรฃo estiver acompanhando a cobertura a cada hora ou diariamenteโ€.

O jornalista considera que essa dificuldade de passar o contexto รฉ maior ainda no caso de grandes mudanรงas que acontecem gradualmente, que fazem o jornalismo lidar mal com temas como o da mudanรงa climรกtica.

โ€œร‰ um problema estrutural do jornalismo. Quando se trata de mudanรงa climรกtica, nรฃo hรก um grande evento para cobrir que aconteรงa num determinado diar,ma. A Terra nรฃo publica um comunicado ร  imprensa todos os meses. E a pergunta constante dos editores รฉ: qual รฉ o gancho? Por que devemos falar disso agora?”

A questรฃo passa tambรฉm pela prรณpria forma como as redaรงรตes estรฃo estruturadas. Kulkarni questiona se a cada vez maior especializaรงรฃo dos jornalistas nรฃo estaria colaborando para essa perda de contexto: 

โ€œPodemos dizer que Economia, Saรบde e Meio Ambiente sรฃo temas realmente separados hoje em dia?โ€

3. Empoderamento

โ€œAs pessoas tรชm poder e precisamos dar a elas meios para que exercitem esse poder. Precisamos encontrar na cobertura uma forma de transmitir ร s pessoas o sentimento de que estรฃo envolvidas no mundo e podem fazer a diferenรงaโ€. 

Kulkarni afirma que รฉ necessรกrio dar espaรงo para os leitores, deixando-os ser veรญculos de soluรงรตes e nรฃo apenas vรญtimas passivas dos fatos.

Ele abordou alguns dos princรญpios do jornalismo de soluรงรตes, que se dedica a resolver problemas da sociedade. Sugeriu aprender com designers de jogos e profissionais de teatro, que impulsionam o engajamento explorando a curiosidade do pรบblico. 

4. Tom

โ€œPrecisamos reportar os fatos de uma maneira clara, acessรญvel e nรฃo definida pelos hรกbitos anterioresโ€. 

O jornalista considera que o tom utilizado atualmente jรก estรก ultrapassado, e cita uma pesquisa recente que revelou que apenas 16% dos entrevistados consideram que a imprensa britรขnica utiliza o tom correto. 

Ele acha que รฉ necessรกrio encontrar um novo tom para chegar ร s pessoas, principalmente para conquistar o pรบblico mais jovem. Tambรฉm acredita que o tom deve variar de acordo com as peculiaridades de cada meio de comunicaรงรฃo. 

โ€œNรฃo faz sentido usarmos nas notรญcias da televisรฃo o mesmo tom que usamos nas dos jornaisโ€.

5. Diversidade

โ€œPrecisamos nรฃo sรณ ouvir diferentes perspectivas, mas entendรช-las e espelhรก-lasโ€

Tรฃo importante quanto a inclusรฃo nas redaรงรตes, รฉ dar espaรงo para que os temas sejam analisados por diferentes perspectivas ligadas a raรงa, gรชnero, sexualidade, classes sociais e necessidades especiais. 

Mas Kulkarni alerta que essa nรฃo deve ser uma obrigaรงรฃo de RP, e sim um esforรงo genuรญno de efetivamente espelhar as diversas perspectivas sobre o tema, dando espaรงo ร  inovaรงรฃo:

โ€œInovaรงรฃo nรฃo รฉ sรณ contar histรณrias diferentemente, mas tambรฉm contar histรณrias diferentesโ€.

6. Transparรชncia

โ€œDevemos ser claros sobre como e por que estamos cobrindo aquela pauta e o que nรฃo conseguimos apurar sobre ela.”

Como esse tรณpico รฉ fundamental para o aumento da confianรงa nos veรญculos jornalรญsticos, Kulkarni afirma que atรฉ as dificuldades na apuraรงรฃo devem ser declaradas abertamente, para evitar mal-entendidos ou que a audiรชncia levante teorias da conspiraรงรฃo onde nรฃo existem.

โ€œMuitos de nรณs somos generalistas. ร€s vezes, temos que dizer ‘nรฃo sabemos’ em vez de dizer algo que nรฃo sabemosโ€. 

7. Narrativa

โ€œNรณs somos, como espรฉcie, viciados em histรณrias. Mesmo quando o corpo vai dormir, a mente permanece atuando durante toda a noite, contando histรณrias a si mesmaโ€.

 

Com essa frase de John Gottschall, autor do livro The storytelling animal, Kulkarni destacou a importรขncia da qualidade da narrativa. E assim como os sonhos seguem uma narrativa linear, o jornalista afirma que suas pesquisas demonstram que as reportagens com narrativa linear sรฃo as que mais engajam e transmitem conhecimento. Para ele, uma boa histรณria, com uma boa narrativa, รฉ a essรชncia do jornalismo.

โ€œEm todas as culturas, as histรณrias sรฃo usadas como simuladores de realidade virtual para a vida toda. As histรณrias nos ensinam a transitar pelo mundo, nos preparam para as dificuldades e, por fim, nos dizem como viver uma vida mais plena. Nรฃo รฉ essa a essรชncia do jornalismo?” 

“O lide foi inspirado na tรฉcnica do telรฉgrafo e estรก tรฃo superado quanto ele”

Kulkarni explica que a tรฉcnica de colocar o mรกximo de informaรงรตes importantes no inรญcio para depois contar o resto da histรณria foi definida pelo telรฉgrafo, para garantir a transmissรฃo do que mais importava se a conexรฃo caรญsse.

โ€œA tecnologia das comunicaรงรตes se transformou muitas vezes desde o telรฉgrafo, mas continuamos com a mesma tรฉcnica na redaรงรฃo jornalรญstica. Nรฃo existe lide e nem pirรขmide invertida nos sonhos. A narrativa linear รฉ a natural. Se quisermos engajar as pessoas, devemos narrar de acordo com sua naturezaโ€.

Para testar sua tese, Kulkarni reescreveu de duas maneiras diferentes um artigo real do site da BBC News a respeito da implantaรงรฃo do trem de alta velocidade no Reino Unido. Na primeira, o artigo foi apresentado em vรกrios tรณpicos de maneira linear e na segunda na forma de uma linha do tempo. Todos os trรชs foram apresentados com a marca da BBC em formato online aos 1.200 participantes da pesquisa.

Formato linear transferiu um terรงo a mais de conhecimento em metade do tempo

O artigo da narrativa linear foi de longe o preferido de longe participantes da pesquisa, com mais รชnfase pelos que tinham menos de 35 anos. O artigo real da BBC ficou em segundo, ligeiramente ร  frente da narrativa em linha do tempo.

Depois da leitura dos trรชs artigos, os participantes diziam o quรฃo confiantes se sentiam em falar sobre as informaรงรตes que tinham aprendido. Como resultado, na forma linear os participantes retinham em mรฉdia um terรงo a mais de informaรงรตes do que o original da BBC.

Como o tamanho do texto da narrativa linear equivalia ร  metade do artigo da BBC e por isso levava a metade do tempo para ser lido, Shirish comprovou que a narrativa linear era efetivamente mais eficiente: 33% a mais de conhecimento transmitido em metade do tempo.

Formato linear tambรฉm engaja mais

Para o segundo experimento, Kulkarni criou um terceiro artigo, tambรฉm com narrativa linear, mas usando a tรฉcnica dramรกtica de trรชs atos. 

Os participantes leram entรฃo os quatro textos e os avaliaram em termos de atratividade e utilidade, considerando sua linguagem, tom, leiaute e formato.

O artigo da BBC perdeu em todas as categorias para todos os demais artigos. O artigo em formato de linha do tempo foi o segundo pior avaliado.

O formato linear mais uma vez foi o grande vencedor. O artigo escrito com tรฉcnica dramรกtica foi considerado o mais atrativo, com 57% mais de apelo do que o da BBC e sua tรฉcnica jornalรญstica  tradicional. O formato linear sem tรฉcnica dramรกtica foi considerado o mais รบtil, com um รญndice 37% melhor do que o da BBC.

Intrรญnseco conservadorismo da indรบstria nรฃo decretou ainda a aposentadoria do lide

Kulkarni acredita que o formato linear sรณ nรฃo รฉ adotado por causa do que considera o โ€œintrรญnseco conservadorismo da indรบstriaโ€. โ€œDizer que nรฃo queremos matรฉrias mais atraentes, interessantes e convenientes รฉ o mesmo que dizer que nรฃo queremos um melhor jornalismoโ€, alfineta.

Ele sรณ vรช vantagens na possรญvel troca de formato da narrativa. Segundo sua pesquisa, o pรบblico absorveria mais informaรงรตes, com mais engajamento, em menos tempo.

Os veรญculos teriam mais chances de engajar o pรบblico mais jovem, pois o formato linear foi ainda mais bem avaliado pelos participantes com menos de 35 anos, sem qualquer investimento adicional.

E os jornalistas teriam menos trabalho para fazer matรฉrias de maior engajamento, na metade do tempo, sem precisar esquentar a cabeรงa para criar um bom lide.

Espantou-se com essa vantagem e achou que o lide estรก no pรฉ? Se Kulkarni estiver certo, isso logo nรฃo vai fazer diferenรงa. 

A รญntegra da palestra (em inglรชs e com legendas opcionais em inglรชs) pode ser assistida aqui

 


Aldo De Luca,  Conselheiro e colaborador do MediaTalks byJ&Cia, รฉ jornalista brasileiro radicado em Londres. Formado em Jornalismo pela UFF (Universidade Federal Fluminense), foi repรณrter especial do jornal O Globo em 1987 e 1988. Fundou junto com Luciana Gurgel a agรชncia Publicom, que se tornou uma das maiores empresas do setor no Brasil e em 2016 foi adquirida pela WeberShandwick (IPG Group).  Alรฉm de jornalista,  รฉ Engenheiro pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Integra a  FPA (UK Foreign Press Association).