A turbulรชncia enfrentada pelo New York Times desde que a polรญcia canadense prendeu, por farsa de terrorismo, em setembro, a principal fonte de seu premiado podcast Califado, acabou expondo uma questรฃo sensรญvel no trabalho dos correspondentes em zonas de conflito: a contrataรงรฃo de jornalistas locais, os chamados fixers. Em traduรงรฃo livre, “consertadores”, com o sentido de aqueles que resolvem tudo.
Os fixers sรฃo utilizados pelos repรณrteres โ sobretudo em regiรตes conflagradas โ para ajudรก-los a descobrir fontes locais, traduzir o idioma e fazer reportagens em รกreas em que um estrangeiro chamaria atenรงรฃo ou arriscaria a vida.
A relaรงรฃo entre correspondentes estrangeiros e fixers foi estudada numa recente pesquisa global realizada pelo professor Peter Klein, da Escola de Jornalismo da University of British Columbia, e sua colega Shayna Plaut, a mais abrangente jรก realizada atรฉ hoje, ouvindo mais de 450 jornalistas de 71 paรญses. O trabalho foi publicado no portal de estudos acadรชmicos The Conversation, em outubro.
Os pesquisadores da universidade canadense contam que encontraram sinais preocupantes de uma dinรขmica de poder que coloca os fixers em posiรงรฃo subserviente. Eles enfrentam mais perigos, ganham bem menos e muitas vezes nรฃo recebem qualquer crรฉdito sobre o trabalho de jornalismo resultante.
Correspondente expรดs vida de jornalista local para tentar confirmar relato de fonte
Em sua anรกlise sobre os erros cometidos na produรงรฃo do podcast Califado, o colunista de mรญdia do jornal, Ben Smith, menciona um episรณdio em que a correspondente Rukmini Callimachi contratou o fixer Derek Henry Flood para uma tarefa jornalรญstica que poderia custar-lhe a vida.
O caso citado por Ben Smith ocorreu em marรงo de 2018, รฉpoca em que os principais meios de comunicaรงรฃo norte-americanos jรก nรฃo estavam contratando fixers na Sรญria, devido ร onda generalizada de sequestros e assassinatos.
รs vรฉsperas do lanรงamento do podcast e com as dรบvidas levantadas por alguns editores do jornal sobre sua principal fonte, Callimachi precisava desesperadamente confirmar que o ex-combatente Abu Huzayfah realmente estivera na Sรญria e presenciara tudo aquilo que narrara em seu relato.
Por isso, Smith conta que, quando soube que o fixer Flood estava na cidade de Manbij, no norte da Sรญria, Callimachi nรฃo titubeou em contratรก-lo. Ela sabia que o Estado Islรขmico jรก havia abandonado a cidade havia dois anos, e que a busca seria inรบtil. Mas mesmo assim ofereceu 250 dรณlares por dia para que Flood se arriscasse a visitar o mercado local para buscar sinais de Abu Huzayfah.
O alto valor oferecido num momento em que ninguรฉm contratava fez com que Flood aceitasse a oferta, mesmo ciente dos riscos. Ele foi de moto atรฉ o mercado, fez perguntas aos comerciantes e relatou tudo o que ouviu, atรฉ que foi alertado a se retirar.
Como todos os esforรงos anteriores do The New York Times, nรฃo encontrou qualquer sinal de Abu Huzayfah no mercado ou na Sรญria. A diferenรงa รฉ que, como fixer contratado para um job freelance, arriscou sua vida para isso.
Em seis anos, Callimachi raramente assinou matรฉrias reconhecendo fixers
Com a explosรฃo do escรขndalo de Califado, o professor Klein fez uma pesquisa abrangente da produรงรฃo de Callimachi desde que foi contratada em 2014 pelo The New York Times. O resultado mostra que, durante os รบltimos seis anos, ela raramente compartilhou a assinatura de suas matรฉrias com os jornalistas locais que contratou para ajudรก-la no trabalho.
Sobre o tema, o professor conta que entrevistou uma ex-colega de Callimachi, que lhe contou que a correspondente impedia os fixers contratados de interagirem com seus editores: “Em vez disso, ela se apresentava como a heroรญna de sua reportagem… a rainha dos acontecimentos”.
Em vista disso, o professor conclui que, embora a tรฉcnica de Callimachi para contar histรณrias seja moderna โ com seu uso bem-sucedido das mรญdias sociais e dos avanรงados recursos tecnolรณgicos, alรฉm de seu estilo narrativo, que tornam as complexas questรตes geopolรญticas mais acessรญveis ao pรบblico โ, seu estilo de reportagem รฉ decididamente antiquado, ao tratar os fixers como subalternos.
80% dos fixers questionaram e corrigiram correspondentes
Mas o caso de Callimachi nรฃo รฉ รบnico. A pesquisa conduzida por Klein e Plaut encontrou um desequilรญbrio generalizado nas relaรงรตes entre correspondentes e fixers sobre suas funรงรตes e responsabilidades.
Enquanto 80% dos fixers disseram que questionaram a abordagem editorial de seu parceiro, apenas 44% dos correspondentes recordaram terem sido questionados por eles.
A respeito dessa questรฃo da abordagem editorial, o professor Klein ressalta que, ao revisar as matรฉrias de Callimachi, percebeu que ela conduzia os trabalhos com os fixers com uma ideia prรฉ-concebida de uma boa histรณria, incentivando-os a aceitarem sua visรฃo dos fatos que cobriam.
Quanto a correรงรตes do material apurado, a pesquisa mostrou que apenas 50% dos correspondentes admitiram terem sido corrigidos por seu parceiro. Mas 80% dos fixers disseram terem corrigido os correspondentes com os quais trabalharam.
Autor do estudo destaca depoimentos de brasileiros
Entre os fixers ouvidos na pesquisa, o professor Klein destacou os depoimentos de dois jornalistas locais entrevistados no Brasil, que refletem o sentimento comum captado pelo estudo sobre a relaรงรฃo entre correspondentes estrangeiros e fixers locais:
โOs correspondentes chegam com uma ideia preconcebida das coisas e do que precisam… Eles tรชm a ideia e รฉ meu papel tentar conseguir o que precisamโ.
Outro jornalista local brasileiro ressaltou a dificuldade de obter crรฉdito ao trabalho realizado pelos fixers:
โInfelizmente, os correspondentes estrangeiros ainda nos consideram pessoas ‘morenas’ com sotaques engraรงados. Embora eu tenha feito algumas das reportagens mais importantes e ousadas, รฉ uma luta conseguir crรฉdito. Enquanto isso, essas crianรงas brancas โ anos mais jovens โ aparecem nos crรฉditos.โ
Mais de 75% dos fixers ouvidos pela pesquisa conduzida por Klein e Plaut disseram que mereceriam o crรฉdito pรบblico por seu trabalho, mas raramente o recebem.
Por que nรฃo contratar um fixer como repรณrter?
Esta foi a pergunta feita pela jornalista indiana Priyanka Borpujari, em um artigo publicado em 2019 na Columbia Journalism Review.
Ela cita como exemplo o caso de Neha Dixit, jornalista tambรฉm da รndia, que recebeu um e-mail de um professor da Northwestern University. O assunto dizia, โFixer neededโ. A mensagem: โMeus colegas e eu estamos trabalhando em uma histรณria sobre o trรกfico ilegal de รณrgรฃos na รndia e precisamos de fontes para a histรณria. Querรญamos saber se vocรช poderia nos ajudar a encontrar fontes e nos guiar por Delhiโ.
Acontece que Dixit รฉ jornalista investigativa hรก 13 anos, publicando grandes matรฉrias sobre violaรงรตes de direitos humanos e violรชncia de gรชnero. Em 2016, ganhou o Prรชmio Chameli Devi Jain โ a maior homenagem concedida a jornalistas mulheres na รndia โ por expor o trรกfico de meninas tribais por grupos fundamentalistas hindus.
“Por que nรฃo contratar Dixit como repรณrter, em vez de fixer, o que provavelmente levaria a um melhor entendimento das complexas realidades da รndiaโ, perguntou Pryanka em seu artigo.
Ela relata que, depois de publicar um ensaio sobre as prรณprias experiรชncias como fixer na รndia, recebeu uma avalanche de mensagens de jornalistas de todo o mundo frustrados por serem vistos como apoio logรญstico local por correspondentes estrangeiros enviados para fazer matรฉrias sobre temas que eles, os habitantes locais, vinham reportando hรก anos.
Para Pryanka, a diferenรงa entre um correspondente e um fixer nรฃo รฉ de experiรชncia ou qualificaรงรฃo, mas a geografia:
“Jornalistas locais contratados como fixers por jornalistas estrangeiros costumam ser repรณrteres qualificados e podem oferecer experiรชncia no paรญs na forma de contatos รบteis e habilidades linguรญsticas โ e, novamente, podem muito bem jรก ter coberto a histรณria em questรฃo. O que falta, em comparaรงรฃo com os correspondentes e agรชncias que pagam por seus serviรงos, รฉ o prestรญgio de grandes nomes, que, no final, sรณ o dinheiro pode pagarโ.
Ela aponta tambรฉm a questรฃo do colonialismo:
“O tรญtulo โcorrespondente estrangeiroโ hรก muito รฉ sinรดnimo de brancura, masculinidade e imperialismo โ jornalistas vรชm da Amรฉrica do Norte, Europa e Austrรกlia para cobrir a pobreza e as guerras do mundo nรฃo-ocidental.
Nos รบltimos anos, a busca pela diversidade fez com que mais mulheres buscassem histรณrias no que antes era domรญnio dos homens โ zonas de conflito e democracias fragmentadas โ ou em espaรงos femininos tradicionalmente privados.
Mas as oportunidades para jornalistas de paรญses nรฃo ocidentais contarem suas prรณprias histรณrias em veรญculos internacionais nรฃo tรชm sido tรฃo grandes. Surpreendentemente, a reportagem estrangeira ainda se baseia em um modelo de repรณrteres ocidentais, em sua maioria brancos, que contratam jornalistas locais para funรงรตes subalternasโ.
Para a jornalista, รฉ generalizada a expectativa de que os repรณrteres mais qualificados sejam do Ocidente . Ela relata sua experiรชncia pessoal trabalhando em Sarajevo.
“Quando meus colegas americanos e europeus se apresentavam como repรณrteres trabalhando para jornais importantes, os moradores locais nem piscavam. Mas me perguntavam: โOs indianos estรฃo interessados nas eleiรงรตes na Bรณsnia ?โ Nรฃo, os indianos nรฃo estรฃo interessados nas eleiรงรตes na Bรณsnia โ eu estava escrevendo para publicaรงรตes internacionaisโ.
As chances para correspondentes estrangeiros tambรฉm sรฃo maiores, segundo ela, para quem pode viajar livremente.
โEu tenho um passaporte indiano, o que me permite entrar em menos paรญses do que um colega com passaporte americano ou europeu. Muitas vezes me pergunto: um jornalista do Paquistรฃo contratado como fixer por um jornalista americano seria capaz de viajar com a mesma facilidade para fazer uma reportagem nos Estados Unidos? Se ele conseguisse um visto, poderia contratar um colega americano como seu fixer?
Pryanka observa que “a ignorรขncia de um repรณrter estrangeiro sobre os costumes locais ou a falta de decoro pode causar todos os tipos de problemas que cabem a um fixer resolver.
“Hรก alguns anos, meu relacionamento com contatos acadรชmicos em Mumbai foi prejudicado quando agendei encontros entre alunos visitantes de uma escola de Jornalismo da Califรณrnia e eles nรฃo compareceram ร s entrevistas. Eu nรฃo deveria ter ficado surpresa: o professor deles nem mesmo se referiu a mim como uma jornalista profissional. Nรฃo ocorreu aos alunos que eles poderiam me causar danos profissionaisโ.
E levanta a questรฃo:
“Qual pode ser um modelo mais justo para reportagens internacionais? Dar crรฉdito para contribuintes locais seria um bom comeรงo. Alguns repรณrteres estrangeiros podem agradecer a seus colaboradores em suas postagens nas redes sociais, mas uma gorjeta nรฃo รฉ suficiente. Cada matรฉria de um estrangeiro em uma publicaรงรฃo internacional de notรญcias traz as impressรตes digitais de um jornalista local nรฃo identificado, sem o qual essa histรณria nรฃo teria sido possรญvel.โ
Na pesquisa do Global Reporting Center citada por ela 60% dos jornalistas afirmaram que nunca ou raramente dรฃo crรฉdito aos fixers por seus trabalhos publicados, embora 86% cento deles tenham dito que gostariam que isso acontecesse.
Pryanka avalia que as instituiรงรตes estรฃo lentamente percebendo o desequilรญbrio de poder representado pelo termo โfixerโ. E aponta o Prรชmio Martin Adler, instituรญdo pela Rory Peck Trust, um dos poucos dedicados a homenagear jornalistas contribuintes locais.
โAtรฉ 2016, o comitรช do prรชmio descrevia o vencedor como โconsiderado por jornalistas visitantes como um dos fixers mais confiรกveis e experientes da regiรฃoโ. Desde entรฃo, o comitรช ajustou sua linguagem, agora homenageando โum freelance local que fez uma contribuiรงรฃo significativa para a apuraรงรฃoโโ.
Para ela, a divisรฃo entre correspondentes e corretores nรฃo รฉ apenas uma questรฃo de tรญtulo, remuneraรงรฃo e crรฉdito. ร tambรฉm o que determina quem conta a histรณria.
“O papel do jornalismo รฉ questionar a autoridade dominante e desestabilizar as narrativas reducionistas. Mas, com muita frequรชncia os jornalistas ocidentais sรฃo os รบnicos autores de histรณrias sobre assuntos nรฃo ocidentais, e as relaรงรตes injustas dentro do jornalismo sรฃo reproduzidas nos trabalhos publicados. O resultado รฉ um excesso de notรญcias previsรญveis e monรณtonas sobre estupro na รndia e guerra em El Salvadorโ.
“Cabe aos editores ver todos os contribuintes de uma histรณria como jornalistas, sem classificaรงรฃo com base na geografia, etnia ou status. Na indรบstria do jornalismo, devemos reconhecer a perspectiva crucial que os repรณrteres locais trazem para as histรณriasโ.
Se o escรขndalo do podcast Califado do New York Times servir para que a relaรงรฃo entre correspondentes e fixers seja consertada, a crise jรก terรก valido a pena.