- Manequim enforcado representando a execuรงรฃo da โImprensa Covidโ apareceu na cidade alemรฃ de Minden
- โJornalista, vocรช รฉ o primeiro da lista!โ, gritam os manifestantes em protesto na cidade italiana de Bolonha
- Preocupaรงรฃo da Repรณrteres sem Fronteiras รฉ que assรฉdio aos jornalistas venha a se tornar o โnovo normal”
As manifestaรงรตes contra as restriรงรตes para enfrentar a pandemia tรชm representado uma tendรชncia preocupante na Alemanha e na Itรกlia: a disposiรงรฃo de recorrer ร violรชncia contra a mรญdia. Seja pelas redes sociais como pelas grandes manifestaรงรตes antilockdown, os jornalistas nos dois paรญses foram atacados por insultos, intimidaรงรตes, agressรตes e atรฉ ameaรงas de morte.
A maioria das ameaรงas parte de grupos de direita, os neonazistas e hooligans na Alemanha e os sovranisti (soberanistas), nova forma como se apresentam os nacionalistas italianos.
Em Bolonha, cinegrafista filma manifestantes chamando jornalistas de terroristas e momento em que รฉ perseguido
Boa parte das agressรตes foram filmadas pelas prรณprias vรญtimas ou por suas equipes. ร o caso do repรณrter cinematogrรกfico Valerio Lo Muzio, do La Reppublica. Na noite de 30 de outubro ele filmava a manifestaรงรฃo de 200 extremistas no centro de Bolonha. Veja neste vรญdeo as imagens captadas, com insultos ao governo e ameaรงas aos jornalistas.
Os manifestantes xingam os jornalistas de “pedaรงos de m**” e, assim como os insultos dirigidos aos mรฉdicos de fazerem โpropaganda terroristaโ a respeito da Covid-19, tambรฉm chamam os jornalistas de terroristas. Num momento nรฃo captado pela gravaรงรฃo de Valerio eles ameaรงam os profissionais gritando o slogan: “Jornalista, vocรช รฉ o primeiro da lista!”
No tรญtulo da reportagem sobre a manifestaรงรฃo, o jornal La Reppublica ressalta o uso pelos manifestantes das โsaudaรงรตes romanasโ, o gesto dos legionรกrios da Antiga Roma no qual foram inspiradas as saudaรงรตes fascistas e nazistas.
Valerio filma o momento em que รฉ abordado pelos manifestantes. Um deles pede ao cinegrafista que nรฃo filme o seu rosto. O jornalista responde que estรก apenas trabalhando. O primeiro o provoca dizendo que entรฃo ele estaria trabalhando mal, enquanto outro o manda correr, e alguns iniciam uma perseguiรงรฃo. Valerio consegue se desvencilhar deles, corre e consegue se proteger atrรกs da barreira dos policiais.
Na cidade alemรฃ de Minden, crรญticas se transformam em fantasias de execuรงรฃo
Benjamin Piel, editor-chefe do jornal Mindener Tageblatt, de Minden, resumiu bem em sua conta do Twitter a gravidade do aparecimento na noite de XX de outubro de um manequim pendurado pelo pescoรงo com uma corda, na ponte sobre o Rio Weser:
โQuando as crรญticas aos jornalistas se transformam em fantasias de execuรงรฃo, tornam-se abominรกveis. Isso aconteceu esta noite em Minden โ um manequim pendurado em uma ponte sobre o Weser. Horrรญvelโ.
A ameaรงa aos jornalistas รฉ inequรญvoca: o manequim tinha pendurado no pescoรงo um cartaz com a inscriรงรฃo โImprensa Covidโ. E nos olhos tinha uma venda onde estava escrito โCegaโ.
O manequim foi dependurado na ponte na mesma noite em que um protesto contra as medidas de contenรงรฃo da pandemia foi realizado na cidade pela coalizaรงรฃo Querdenken. Durante o ato, os principais alvos foram a chanceler Angela Merkel e o jornal Mindener Tageblatt. Horas depois de descoberto, o manequim foi retirado pela polรญcia, que estรก investigando a sua autoria.
Lars Radau, diretor da Associaรงรฃo de Jornalistas Alemรฃes, denuncia “ameaรงas dirigidas e organizadas” contra os profissionais de imprensa. Somente em Berlim, a associaรงรฃo registrou mais de 100 incidentes em protestos relacionados ร Covid-19 nos รบltimos seis meses, incluindo jornalistas chutados ou espancados, assediados, feridos ou ameaรงados de morte.
A FNSI (Federaรงรฃo Nacional da Imprensa Italiana) contabilizou pelo menos nove ataques desde outubro contra 14 profissionais em sete cidades, incluindo Roma. Florenรงa e Nรกpoles. Os jornalistas ameaรงados, alguns deles dos mais importantes veรญculos do paรญs, como as TVs RAI e Sky News e o jornal La Reppublica, foram agredidos a socos, xingados, ameaรงados de morte e colocados para correr. Um repรณrter fotogrรกfico foi hospitalizado com traumatismo craniano, mas jรก recebeu alta.
Organizaรงรตes de defesa dos jornalistas emitem alertas
A situaรงรฃo chegou a um ponto que a Repรณrteres sem Fronteiras (RSF) e o International Press Institute (IPI) publicaram artigos este mรชs, respectivamente, sobre a Alemanha e a Itรกlia, alertando as autoridades para que garantam a seguranรงa dos profissionais.
O mais preocupante รฉ que esses casos estรฃo acontecendo em dois paรญses bem posicionados no รบltimo ranking de liberdade de imprensa da RSF (Alemanha em 11ยบ e Itรกlia em 41ยบ).
Um levantamento do IPI sobre violaรงรตes ร liberdade de imprensa durante a pandemia registra agressรตes relacionadas ร cobertura da pandemia tambรฉm na รustria, Eslovรชnia, Israel e pelo menos um caso no Brasil, contra uma jornalista que cobria uma manifestaรงรฃo em Santa Catarina.
A Repรณrteres sem Fronteiras, por meio de seu diretor na Alemanha, Christian Mihr, alerta para o perigo de a violรชncia tornar-se rotineira a partir da pandemia:
“Se os neonazistas e hooligans conseguirem o que querem, o novo normal incluirรก assรฉdio constante, ameaรงas e ataques contra jornalistas. Quem aceitar seus mรฉtodos vai aceitar que os jornalistas sรณ poderรฃo noticiar certos assuntos correndo risco de vida.”
A organizaรงรฃo ressalta que a polรญcia tem se mostrado impotente para intervir nesses casos, preferindo pedir para que os repรณrteres se afastem ou atรฉ impedindo a cobertura em vez de garantir a sua presenรงa e o direito do pรบblico ร informaรงรฃo.
Protestos Corona: resultados terrรญveis
A passividade da polรญcia foi o principal motivo apontado pelo Sindicato Alemรฃo de Jornalistas (DJU) pelo registro de pelo menos 43 agressรตes e obstruรงรตes durante a cobertura dos protestos contra medidas restritivas da pandemia em Leipzig. A manifestaรงรฃo reuniu mais de 20 mil pessoas no dia 7 de novembro, convocada tambรฉm pela coalizรฃo Querdenken.
A revista Menschen Nachen Medien, dirigida aos interessados em jornalismo, classificou de terrรญveis os resultados do protesto, contabilizando nรฃo sรณ os ataques fรญsicos aos jornalistas mas tambรฉm a detenรงรฃo de mais de uma dรบzia de profissionais, principalmente fotรณgrafos. Eles foram detidos provisoriamente na Estaรงรฃo Central de Leipzig para serem identificados, o que os impediu de trabalhar durante esse perรญodo.
Tina Groll, presidente do DJU, denunciou a ilegalidade do procedimento policial. Tambรฉm criticou as agressรตes: โEsse รฉ um desenvolvimento perigoso para a democracia, que absolutamente temos que pararโ. Uma equipe da ZDF foi atacada vรกrias vezes e sรณ conseguiu escapar com seguranรงa com a ajuda dos serviรงos de seguranรงa.
Vรกrios profissionais removeram os logotipos de seus microfones para evitar serem alvos.
Sascha Borowski, porta-voz do Conselho de Imprensa Alemรฃo, solicitou que seja criado com urgรชncia um protocolo comum que defina as tarefas da polรญcia e da imprensa nessas manifestaรงรตes a fim de que ambos possam exercer suas tarefas.
Em Roma, repรณrter filma ameaรงa de ser fuzilado como o genro de Mussolini
A polรญcia tambรฉm nรฃo garantiu a continuidade do trabalho de uma equipe da fanpage.it na cobertura de uma manifestaรงรฃo de negacionistas da Covid-19 no mรชs passado no centro de Roma. ร certo que os policiais evitaram que os jornalistas fossem agredidos, promovendo um cordรฃo de isolamento para que pudessem sair do meio dos manifestantes. Mas ao final recomendaram que eles interrompessem o trabalho e nรฃo retornassem ao protesto.
O vรญdeo feito pela cinegrafista Wendy Elliot mostra o repรณrter Saverio Tommasi no meio de uma manifestaรงรฃo de negacionistas da doenรงa contra as mรกscaras e a vacina, ocorrida em 10 de outubro na praรงa San Giovanni. As primeiras cenas mostram um manifestante sem mรกscara exigindo que o repรณrter retire a sua. Ele ameaรงa cuspir na face do repรณrter.
Em seguida, outro manifestante diz que o jornalista terminarรก como o genro de Mussolini, Galeazzo Ciano. Ministro das Relaรงรตes Exteriores do regime do sogro, Ciano integrou o Grande Conselho do Fascismo que forรงou a expulsรฃo de Mussolini e sua prisรฃo. Depois de fugir para a Alemanha e lรก ser preso, Ciano foi deportado a pedido do novo governo de Mussolini, que determinou sua morte pelo pelotรฃo de fuzilamento.
Quando o repรณrter pergunta se pretendem fuzilรก-lo, outro manifestante impede o agressor de continuar falando. Ao final, depois de ser insultado de servo, infame, vendido, pedaรงo de m* e ameaรงado de se tornar um mรกrtir, o repรณrter percebe um manifestante ameaรงar tossir em cima dele. Quando a situaรงรฃo comeรงou a ficar mais perigosa, aparecem policiais que acompanhavam a manifestaรงรฃo de longe e retiram os dois jornalistas.
Em Berlim, jornalista fotografa quem o ameaรงou de morte
O jornalista freelance Julius Geiler tambรฉm foi ameaรงado de morte ao cobrir uma protesto contra as vacinas em Berlim no dia 25 de outubro. Um post em sua conta do Twitter detalha a intimidaรงรฃo que sofreu:
“O homem ao fundo, com o cartaz de Bill Gates, acaba de me informar que, apรณs a primavera, eu estaria โpendurado em uma รกrvore como todos os outros jornalistas cรบmplices do sistema”.
Em Nรกpoles, equipe filma agressรฃo com empurrรตes e garrafas atiradas
O repรณrter da Sky Paolo Fratter e os cinegrafistas Vincenzo Triente e Fabio Giulianelli passaram por maus momentos durante os protestos antilockdown em Nรกpoles, na noite de 23 de outubro.
O vรญdeo gravado pela equipe mostra um homem empurrando agressivamente o repรณrter, fazendo-o cair sobre o capรด de um carro. O repรณrter explica que a equipe estรก trabalhando e, quando a situaรงรฃo parece contornada, ele leva um chute e garrafas de vidro comeรงam a ser atiradas sobre a equipe.
Os jornalistas fogem, enquanto o cinegrafista continua a gravar as imagens. Ouve-se o som das garrafas de vidro rompendo-se perto deles. Depois de uma boa corrida, todos se salvam, mas nรฃo totalmente ilesos: o cinegrafista Giulianelli foi atingido na perna por uma pedra.
Em Palermo, freelance filma insultos a jornalista da RAI
A jornalista Rafaella Cosentino, da RAI, foi agredida verbalmente, junto com seu cinegrafista, em protesto ocorrido em Palermo no dia 24 de outubro.
A equipe foi cercada e insultada por manifestantes sem mรกscara. Rafaella denunciou o fato em sua conta no Twitter, agradecendo ร jornalista freelance Rossella Puccio que, em solidariedade, filmou parte da cena e postou o vรญdeo no YouTube.
Na gravaรงรฃo, alรฉm de gestos e pedidos para que saiam do local, os manifestantes chamam os jornalistas de terroristas, infames, pedaรงos de m*** e filhos do sistema que usam mรกscaras de m***.
Rossella Puccio batizou seu vรญdeo de โOrdem dos jornalistas, ordem dos terroristasโ, apresentando โa raiva de alguns manifestantes contra os jornalistas e a imprensaโ.
Socos e traumatismo craniano
Menos sorte teve o fotojornalista Tommaso Germogli, de 26 anos, escalado para cobrir com sua equipe do jornal La Nazione as aglomeraรงรตes no mercado de Scandicci, em Firenze, na manhรฃ de 31 de outubro.
A pauta pretendia avaliar a adesรฃo dos frequentadores ao distanciamento social e ao uso das mรกscaras. Depois de se identificar mostrando a carteira do jornal, Tommaso fazia fotos quando foi agredido a socos por um dos vendedores que atuam no mercado.
O jornalista teve que ser levado ao hospital, onde foi diagnosticado um traumatismo craniano, tendo recebido alta alguns dias depois. O agressor foi indiciado e responde a um inquรฉrito policial.
Jornalistas vendidos!
Ainda em Florenรงa, na vรฉspera ร agressรฃo contra Tommaso, ocorreu o que os jornais chamaram de โnoite de guerrilhaโ no centro histรณrico. Foi uma das piores noites vividas pela cidade nos รบltimos tempos, com centenas de manifestantes atirando coquetรฉis molotov, morteiros, garrafas e pedras para todos os lados. O protesto era contra as medidas restritivas para conter a Covid-19 e teve como principais alvos o governo, os policiais eโฆ os jornalistas.
Dez policiais e um manifestante terminaram feridos e quatro membros do movimento anarquista foram presos. Todos os jornalistas presentes foram intimidados e insultados com o coro repetido de โpennivendoliโ, que designa os que escrevem a soldo.
O clima foi tรฃo acirrado que a Associaรงรฃo de Imprensa da Toscana (AST) chamou a atenรงรฃo para o fato de as agressรตes verbais contra os jornalistas quase terem se tornado fรญsicas e clamou por “proteรงรฃo para quem faz reportagensโ.
Terminado o confronto nas ruas, o ataque passou ร s mรญdias sociais, tendo como alvos preferenciais os profissionais do jornal local Corriere Fiorentino, e em particular o jornalista Simone Innocenti.
Agravamento da situaรงรฃo da doenรงa coincide com agravamento da intolerรขncia com jornalistas
O nรบmero de casos da doenรงa voltou a crescer exponencialmente na Alemanha e na Itรกlia justamente a partir de outubro, o que fez crescer tambรฉm os protestos contra as novas medidas restritivas impostas pelos governos e a intolerรขncia com os jornalistas.
Com os resultados das medidas restritivas e a chegada das vacinas, o controle da pandemia deve ser retomado e com isso espera-se a diminuiรงรฃo da intolerรขncia com jornalistas e outros profissionais ligados ao combate ร doenรงa.
Isso, รฉ claro, se nรฃo houver uma terceira onda. Ou se as agressรตes dos extremistas contra os jornalistas nรฃo se tornar o novo normal, como teme a organizaรงรฃo Repรณrteres sem Fronteiras.
ร o bolsonarismo que fala alemรฃo e italiano. Terrรญvel.