A live de lançamento do segundo capítulo da série Efeitos da Pandemia sobre o Jornalismo do MediaTalks, o médico Dráuzio Varella externou inconformismo com as fake news online e perguntou: “Onde isso vai parar?”. O Reino Unido começa a dar a resposta, ao invocar o conceito de duty of care (dever de cuidar) para disciplinar as empresas digitais.

O anúncio de uma lei para regulamentar serviços que permitem postagem de conteúdo por usuários (feito na terça-feira, 15/12) é um passo concreto para obrigá-las a remover conteúdo ofensivo de suas plataformas. A Online Harm Bill entra em vigor em 2021 e inclui medidas duras, como multas de até 10% do faturamento global ou £18 milhões (o que for mais alto) para as empresas que não seguirem as regras.

Em um lance perfeito para assegurar apoio popular à lei, o Governo elegeu como alvo principal as crianças. Todo o plano é baseado na intenção de impedir que sejam expostas a informações associadas a suicídio, automutilação, pornografia, abuso sexual, discurso de ódio e terrorismo. O caso das adolescentes britânicas que fugiram do país rumo à Síria para se casarem com terroristas − as Isis Brides − é um exemplo de aliciamento de jovens pelo terror.

A lei dará ao Governo até o poder de bloquear o acesso de serviços no país, embora não esteja claro o mecanismo tecnológico para isso. As empresas foram divididas em duas categorias, com graus de responsabilidade diferentes. Os da categoria 1, onde estarão Facebook, Instagram, Twitter e TikTok, são mais elevados.

Redes sociais, aplicativos de namoro, buscadores, plataformas de compartilhamento de vídeo, serviços de mensagem públicos e privados e até jogos interativos serão regulados. E-mails ficaram de fora. Sob o argumento de proteção à liberdade de expressão, as regras não se estendem às seções de artigos e comentários em sites jornalísticos.

Uma vitória para o Daily Telegraph

Apesar de anunciado quando as fake news assustam ainda mais pelo impacto sobre o controle do coronavírus, o plano não é novo. Ele ganhou impulso sobretudo depois de a adolescente Molly Russel ter tirado a própria vida após ver conteúdo sobre suicídio nas redes, em 2017.

O pai da jovem virou um ativista da causa. O Daily Telegraph empreendeu uma campanha para pressionar o governo a impedir a exposição de crianças a informações nocivas. Em abril de 2019 foi publicada uma consulta pública que deu origem ao projeto de lei, a ser validado no Parlamento.

O jornal comemorou a vitória, exemplo do chamado jornalismo de campanha, comum no Reino Unido. E foi agraciado por Oliver Dowden, secretário de Mídia, com um simpático artigo assinado no dia do anúncio. ”Elogio o The Telegraph por ser um dos primeiros defensores da necessidade de novas leis”, escreveu o secretário.

 

Criminalização de gestores não foi contemplada

Como seria de se esperar em uma iniciativa que envolve tantos interesses, as críticas começaram logo que a lei foi anunciada. Ativistas questionaram a ausência da responsabilização criminal dos gestores das plataformas. Isso não parece ser sinal, no entanto, de bondade do governo para com as gigantes de tecnologia.

Há duas semanas, como mostramos no MediaTalks, o Reino Unido havia anunciado a criação da Unidade de Mercados Digitais (DMU), um órgão regulador dentro da poderosa CMA, a agência de controle de competição do país, dedicado a reequilibrar a relação comercial entre plataformas e empresas jornalísticas para garantir a sustentabilidade do setor.

Parece um plano bem orquestrado. Enquanto a DMU delibera sobre questões comerciais, as ações ligadas ao conteúdo determinadas pela nova lei ficam nas mãos do Ofcom, órgão regulador das telecomunicações e emissoras de TV e rádio, que já detém experiência no tema. E exibe no currículo um histórico recente de sanções a emissoras que veicularam entrevistas com teóricos da conspiração na crise do coronavírus.

O movimento britânico tem o potencial de encurtar o caminho para outros países, que poderão aproveitar o modelo depois de já testado na prática.

E com a União Europeia anunciando também um plano ambicioso de regular as mídias sociais, é de se esperar grandes transformações quando ambos entrarem em vigor. 

 

Veja aqui  como vai funcionar na prática a nova legislação anunciada para o Reino Unido