Poucas coisas escaparam incólumes aos efeitos do coronavírus em 2020. A liberdade de imprensa não está entre elas. Governos autoritários aproveitaram-se da pandemia para desacreditar o jornalismo, reprimir profissionais e prender desafetos.
O efeito dramático da crise de saúde pública sobre a atividade foi mais uma vez exposto, agora pela organização Repórteres sem Fronteiras, que em seu relatório anual enumerando jornalistas presos pelo mundo dedicou um capítulo àqueles que perderam a liberdade por questões associadas à pandemia.
O levantamento contabilizou um total de 387 profissionais de imprensa presos ao longo de 2020 (até o dia 1º de dezembro), sendo 152 profissionais, 122 jornalistas-cidadãos (como blogueiros independentes) e 13 que prestam serviços de apoio. Em alguns países, como a China, cidadãos locais não podem trabalhar como jornalistas para organizações estrangeiras. Do total de presos, 11% são mulheres, um aumento de 35% em relação a 2019. Há ainda 54 reféns de organizações terroristas em Síria, Iêmen e Iraque.
O relatório afirma que entre os mais de 300 incidentes diretamente ligados à cobertura jornalística da crise de saúde pública registrados entre 1º de fevereiro e 30 de novembro de 2020, que envolveram quase 450 jornalistas, as detenções e prisões arbitrárias representam 35% dos abusos identificados (acima da violência física ou moral, que corresponde a 30% das violações registradas).
O número de prisões quadruplicou de março a maio, segundo a entidade. Leis de exceção e medidas de emergência adotadas por grande parte do mundo para lidar com a pandemia contribuíram para um “bloqueio de notícias e informações” e resultaram na prisão e encarceramento de jornalistas.
O estudo cita o caso da Índia, onde 48 jornalistas foram alvo de abertura de inquéritos judiciais, sendo que 15 deles foram mantidos presos por períodos entre uma e quatro semanas antes de serem libertados sob fiança.
E observou que a chegada do outono no Hemisfério Norte, trazendo a segunda onda da Covid-19 em vários países, disparou uma nova onda de incidentes sobretudo na Europa. A entidade observa que o fenômeno não se reproduziu na mesma proporção do que ocorreu na primeira fase, e concentrou-se principalmente violência e agressões. Mas faz um alerta:
“O endurecimento da repressão observado no primeiro semestre de 2020 tem efeitos duradouros. Embora a maioria dos jornalistas tenha sido libertada algumas horas, ou mesmo alguns dias ou semanas depois da prisão, 14 deles ainda estão, até hoje, atrás das grades em três regiões do mundo: Ásia, Oriente Médio e África”.
Região Ásia-Pacífico lidera a lista negra
A Ásia figura como a região com o maior número de violações associadas à pandemia nos últimos meses.
Ainda hoje encontram-se presos 10 jornalistas em países asiáticos, segundo a RSF. Como já virou hábito, a China consagrou-se como a campeã da censura: nas contas da entidade, pelo menos sete jornalistas, denunciantes e comentaristas políticos influentes, presos por seu trabalho sobre a pandemia, ainda estão detidos.
O relatório destaca:
- Cai Wei (蔡伟) e Chen Mei (陈玫), dois jornalistas-cidadãos presos e acusados de ter “encorajado brigas e causado agitação” depois de contribuirem para a publicação de notícias e entrevistas sobre a crise sanitária na plataforma open source Github (que arquiva conteúdo de plataformas e sites chineses excluídos por censores do governo).
- A advogada e jornalista amadora Zhang Zhan (張展), presa pelos mesmos motivos, após suas intervenções no Twitter e entradas no YouTube, ao vivo de Wuhan, no início de fevereiro, com informações sobre a pandemia de Covid-19. Atualmente presa em Xangai, Zhang Zhan faz greve de fome enquanto aguarda julgamento, depois de ser forçada a se declarar culpada. Quando os julgamentos são realizados, as sentenças podem ser extremamente duras.
- Dado como desaparecido em meados de março após denunciar as falhas do regime na gestão da crise sanitária, o comentarista político e membro do Partido Comunista Chinês Ren Zhiqiang (任志強) foi condenado a 18 anos de prisão e multa de 4,2 milhões de yuans (cerca de 535 mil euros) por “corrupção e desvio de verbas públicas”.
- Na Birmânia, Zaw Ye Htet, editor-chefe da agência de notícias online Dae Pyaw, foi condenado a dois anos de prisão em 20 de maio de 2020, após processo e julgamento apressados. Ele havia sido preso um mês antes por revelar a morte de uma pessoa com coronavírus no estado de Karen.
Em Bangladesh, o famoso cartunista Ahmed Kabir Kishore e o blogueiro e escritor Mushtaq Ahmed ainda estão em prisão preventiva após terem sido vítimas de uma repressão massiva em maio, que teve como alvo os acusados de “disseminar no Facebook rumores e desinformação sobre a situação do coronavírus”.
Mushtaq Ahmed publicou um artigo denunciando a escassez de equipamentos de proteção para as equipes de saúde. E o cartunista fez uma série de caricaturas de figuras políticas intitulada “A vida em tempos de corona”.
No Oriente Médio vários países aproveitaram a pandemia para reforçar seu controle sobre os meios de comunicação, e três jornalistas ainda estão detidos por artigos relacionados à Covid-19, segundo a RSF:
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- Na Jordânia, o jornalista de Bangladesh Salim Akash investigava o destino de seus concidadãos trabalhando em solo jordaniano e abandonados pelas autoridades locais desde o início do confinamento. Preso em 14 de abril de 2020, ele ainda está na prisão de al-Salt, onde foi simplesmente informado de que havia “violado uma lei importante”.
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- No Irã, onde as autoridades perseguiram amplamente jornalistas que tentaram informar sobre a real dimensão da pandemia no país, Hamid Haghjoo, administrador do canal de Telegram Iran Labour News Agency (ILNA), está preso desde abril por postar uma caricatura zombando de líderes religiosos que defenderam o uso de remédios tradicionais para tratar a Covid-19.
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- A estudante e jornalista amadora Roghieh (Ashraf) Nafari permanecerá na prisão até o final do ano depois de publicar tweets críticos à gestão da crise sanitária pelo governo.
Na África, como apurou a RSF em parceria com a Cartooning for Peace, triplicou o número de prisões de jornalistas na região entre 15 de março e 15 de maio, em comparação com o mesmo período no ano anterior. No total, 40 prisões relacionadas à cobertura da pandemia foram registradas entre o início de março e o final de novembro.
Um dos mais notórios casos ocorreu no Zimbábue, onde o premiado jornalista investigativo Hopewell Chin’ono passou quase um mês e meio atrás das grades, após ajudar a revelar desvios de verbas públicas destinadas à compra de equipamentos para combater o coronavírus.
A entidade revelou que o ruandês Dieudonne Niyonsenga é o único jornalista africano ainda preso por “infringir as regras do confinamento” até o momento. Diretor da Ishema TV, uma webtv de Ruanda, ele foi preso em abril enquanto cobria o impacto das medidas tomadas pelas autoridades na população e investigava denúncias de estupros supostamente cometidos por soldados encarregados de fazer cumprir o toque de recolher.
Na América Latina,segundo a RSF, não havia mais jornalistas detidos no momento em que o relatório foi concluído. Mas, assim como em todo o mundo, o ambiente de trabalho para imprensa deteriorou-se consideravelmente no sul do continente americano, disse a entidade:
“As agressões (físicas e verbais), as pressões, as campanhas de assédio, bem como os processos judiciais abusivos estão aumentando. Para os governos autoritários de Nicolás Maduro, na Venezuela, Juan Orlando Hernandez, em Honduras, Daniel Ortega, na Nicarágua, e Miguel Díaz-Canel, em Cuba, a crise sanitária foi uma dádiva e uma oportunidade para intensificar a caça a jornalistas críticos, independentes e dissidentes.
Nesses países, muitos jornalistas que publicaram informações sobre a propagação do vírus ou questionaram a resposta oficial das autoridades à crise foram arbitrariamente presos, detidos e interrogados. Foi o caso, por exemplo, do jornalista independente venezuelano Darvinson Rojas, um dos heróis da informação RSF 2020, jogado na prisão por 12 dias por um tweet que questionava a confiabilidade dos dados oficiais sobre a pandemia.”
Na Europa e Ásia Centralo vírus tornou-se pretexto para a repressão à liberdade de imprensa. Leis abusivas sobre a divulgação de informações falsas e a acusação de violação do confinamento ou do distanciamento social foram motivo para prender jornalistas da mídia independente, especialmente no início do ano, como indicou a RSF. O levantamento cita casos no Azerbaijão, no Cazaquistão, no Tajiquistão e na Rússia, onde Tatiana Voltskaya, jornalista da Sever Realii (afiliada à rádio americana Radio Free Europe/Radio Liberty), foi interrogada pela polícia e processada por “informações falsas” após a publicação de uma entrevista com um médico anônimo sobre a falta de respiradores artificiais nos hospitais.
Na Bielorrússia, um jornalista investigativo especializado no sistema de saúde, Sergei Satsouk, foi preso por “corrupção” após um editorial questionando os números oficiais e a gestão da pandemia pelo presidente Alexandre Lukashenko. Libertado diante da pressão internacional, ele ainda está sendo processado e pode pegar 10 anos de prisão.
Na Europa Central e nos Bálcãs, as autoridades também aproveitaram a crise sanitária para aumentar o assédio à mídia crítica, seja por meio de leis que comprometem a liberdade, como na Hungria ou na Sérvia, seja por prisões de jornalistas, que ocorreram em particular na Sérvia, no Kosovo, na Polônia, mas também em Aruba, território ultramarino holandês.
Um ano triste, não apenas pelo coronavírus
Produzido anualmente desde 1995 pela RSF, o balanço anual de violações contra jornalistas baseia-se em dados coletados ao longo do ano, reunindo informações que segundo a entidade permitem afirmar com certeza, ou com fortes evidências, que a detenção ou o sequestro de um jornalista é consequência direta do exercício de sua profissão. Os principais destaques do levantamento são:
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- O número de jornalistas presos em todo o mundo permanece em um nível historicamente elevado. No dia 1º de dezembro de 2020, 387 jornalistas estavam presos por exercerem seu trabalho de informar, enquanto que, em 2019, eram 389.
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- Nos últimos 5 anos, o aumento do número de jornalistas presos (profissionais e amadores) foi de 17%
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- O número de mulheres jornalistas presas aumentou 35%, em comparação com o ano passado: 42 delas estão atualmente privadas de liberdade. Eram 31 um ano atrás. Proporcionalmente, as mulheres representam 11% dos jornalistas presos, comparado a 8% no ano passado.
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- Mais da metade dos jornalistas presos em todo o mundo (61%) está detida em apenas cinco países. Pelo segundo ano consecutivo, China, Egito, Arábia Saudita, Vietnã e Síria são as cinco maiores prisões do mundo para jornalistas.
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- A China mantém o primeiro lugar em 2020, com 117 jornalistas presos, dos quais quase um terço (45) são jornalistas-cidadãos.
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- A repressão do governo não afeta somente os jornalistas chineses. Cheng Lei, jornalista australiana nascida na China e ligada a uma emissora de TV estatal chinesa, está incomunicável, sem justificativa oficial, desde 14 de agosto. Gui Minhai, cidadão sueco nascido na China, que morava em Hong Kong e publicava livros baseados em reportagens investigativas, foi sequestrado durante uma visita à Tailândia em 2015 e levado para a China, onde foi condenado a 10 anos de prisão em fevereiro de 2020 por “fornecimento ilegal de informações para países estrangeiros”.
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- Na Arábia Saudita, a lista de presos totaliza hoje 34 jornalistas, em nome dos quais a RSF fez um apelo por apoio público internacional na cúpula do G20, realizada em novembro deste ano em Riad. Embora alguns deles estejam atrás das grades desde 2012, as autoridades sauditas adiaram todos os julgamentos desde o início da pandemia.
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- No Egito, a maioria dos jornalistas detidos durante a onda de prisões de setembro de 2019 não foi libertada.
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- Na Síria, onde a maior parte das prisões remontam ao início da guerra civil, em 2011, a lista de jornalistas presos permanece inalterada e poucas famílias recebem notícias deles. Quando isso acontece, geralmente é para informar sobre sua morte. Foi assim com a ex-mulher do blogueiro Jehad Jamal, preso em 2012. No início de 2020, ela teve acesso a uma certidão de óbito, confirmando seus temores de que ele tivesse morrido na prisão, possivelmente sob tortura. O documento informa que a morte ocorreu em 2016, mas não especifica a causa.
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- No Vietnã, onde 7 jornalistas profissionais e 21 blogueiros estão detidos, as autoridades realizaram uma nova onda de prisões em maio e junho, provavelmente desencadeada pela aproximação do próximo congresso do Partido Comunista Vietnamita (PCVN), previsto para janeiro de 2021. Vários membros da Associação de Jornalistas Independentes do Vietnã (IJAVN), incluindo o seu presidente Pham Chi Dung, foram privados da liberdade. A prisão, em outubro de 2020, do vencedor do Prêmio RSF de Impacto de 2019, o jornalista Pham Doan Trang, confirmou a adoção de uma política muito mais severa.
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- A Bielorrússia é palco de uma repressão sem precedentes Em 1o de dezembro, 8 jornalistas bielorrussos ainda estavam encarcerados. Pelo menos 370 foram detidos desde a polêmica eleição presidencial de 9 de agosto, por diferentes períodos de tempo, totalizando mais de 880 dias atrás das grades. Jornalistas agora correm o risco de serem processados e de receberem sentenças muito mais pesadas. Há ainda graves atos de violência, retiradas de credenciamento, expulsões de jornalistas estrangeiros, censura da internet e da imprensa escrita, enquanto a propaganda da mídia estatal ganha força.
Reféns de organizações terroristas
Além de profissionais detidos por governos, a RSF afirma que pelo menos 54 jornalistas são mantidos como reféns, 5% a menos do que no ano passado. Todos estão agora concentrados em três países do Oriente Médio – Síria, Iêmen e Iraque.
A entidade explica que considera um jornalista refém a partir do momento em que ele ou ela está nas mãos de uma entidade não estatal que ameaça matar, ferir ou seguir com a detenção a fim de obrigar um terceiro agente (um Estado, organização ou grupo de pessoas) a realizar determinada ação.
O Estado Islâmico é o principal grupo a manter profissionais de imprensa como reféns.
Em seguida vem o Houthis, movimento armado do Iêmen.
Mas é a Síria o país mais perigoso para jornalistas trabalharem, com riscos oferecidos por outras organizações além do Estado Islâmico.