A condenação a quatro anos de prisão da jornalista-cidadã Zhang Zhan nesta segunda-feira (28/12) em Xangai, pelo crime de “fomentar discórdia e causar problemas”, é apenas mais um dos atentados à liberdade de imprensa ocorridos na China em 2020, muitos deles associados à pandemia e à cidade de Wuhan. Foi de lá que Zhan transmitiu via redes sociais notícias sobre a crise do coronavírus e acabou presa em maio.
A condenação ganhou destaque na imprensa em todo o mundo, mas não foi surpresa. A China lidera os rankings de jornalistas presos em 2020 elaborados pelas principais organizações que defendem a liberdade de imprensa, como a Repórteres Sem Fronteiras e o Comitê para a Proteção de Jornalistas.
O caso de Zhan foi citado nos relatórios como emblemático da repressão conta a mídia no país, mas não é o único:
O empresário e jornalista-cidadão Fang Bin foi preso em 9 de fevereiro por postar vídeos produzidos em hospitais da cidade, mas seu local de detenção permanece desconhecido.
Chen Mei e Cai Wei aguardam julgamento em Pequim depois de terem sido presos em abril por publicarem notícias sobre o vírus em uma plataforma de compartilhamento de informações censuradas, a Terminus 2049.
O advogado e jornalista-cidadão Chen Qiushi, detido em Wuhan em fevereiro, estaria em prisão domiciliar na casa de seus pais sob estreita vigilância.
Nem grandes organizações de notícias escaparam. Em 11 de dezembro a Bloomberg anunciou que uma de suas profissionais, Haze Fan, cidadã chinesa, havia sido detida em casa quatro dias antes por policiais à paisana e que só então havia recebido uma posição sobre o seu paradeiro. Ela continua presa sob acusação de “engajar-se em atividades criminosas que colocam em risco a segurança nacional”.
Fan trabalha como auxiliar, pois chineses não podem ser contratados como jornalistas por órgãos de imprensa estrangeiros. A admissão tem que ser feita por meio de uma agência afiliada ao Ministério das Relações Exteriores, e eles só têm autorização para apoiar em atividades como apurações e suporte linguístico.
Outro que perdeu a liberdade em dezembro foi Du Bin, que já foi fotógrafo freelance do New York Times e escreveu livros críticos ao partido comunista chinês. Em 2013 ele havia sido detido por um mês devido a um documentário sobre um campo de trabalhos forçados.
Bin, de 48 anos, foi preso em casa, em Pequim, como relatou sua irmã, sob a mesma acusação utilizada pelo governo para reprimir ativistas e jornalistas: “fomentar brigas e provocar problemas”.
A ação do Partido Comunista Chinês estendeu-se em 2020 até mesmo a mídias estatais do país. Desde agosto está presa Cheng Li, cidadã australiana que atuava como âncora de negócios da emissora CGTN. Ela vem sendo mantida sob a chamada “vigilância residencial em local designado”, que pode durar até seis meses, sem que uma acusação formal tenha sido feita.
Por ser raro um jornalista de órgão estatal ser preso, o caso dela vem sendo associado à crise diplomática entre a China e a Austrália provocada por pressões para abertura de inquérito sobre a origem do coronavírus, que acabaram resultando em sanções a produtos australianos.
Estranhamente, o perfil da jornalista continua aparecendo no site da CGTN como se estivesse trabalhando normalmente.
Além de jornalista, Li tem atuação destacada em eventos promovidos pela embaixada australiana – mais um fator a associá-la à tensão entre os dois países.
A conta do Twitter de Cheng Li continua ativa, mas sem qualquer movimentação. Em um dos últimos posts, em agosto, ela sugeriu que o Governo poderia ter censurado uma entrevista sobre o TikTok.
Em outro movimento que pode estar ligado à crise diplomática, as autoridades chinesas anunciaram no dia 21 de dezembro o adiamento do julgamento do escritor e blogueiro Yang Henjun, que se tornou cidadão australiano em 2002.Aos 55 anos, ele está preso em Pequim desde 2019, acusado de espionagem e ameaça à segurança nacional.
Em entrevista ao The Guardian, a pesquisadora chinesa Yaqui Wang, da Human Rights Watch, cobrou ação dos governos de outros países:
“A grande quantidade de detenções daqueles que se manifestam apenas impedirá ainda mais o fluxo de informações sobre a situação na China. Os governos de todo o mundo devem pressionar Pequim a libertar imediatamente jornalistas e ativistas detidos injustamente”.
Também o Comitê para Proteção dos Jornalistas pediu o mesmo, só que diretamente ao futuro presidente americano, Joe Biden.Ao publicar seu relatório de jornalistas presos em 2020, a entidade fez uma lista de recomendações para que o novo governante torne a liberdade de imprensa uma política de estado, integrando o tema à pauta das relações externas americanas.
O caso de Zhang Zhan
A notícia da sentença de Zhang Zhan, de 37 anos, ganhou as manchetes mundiais nesta segunda-feira.Foi anunciada via redes sociais pelo advogado da jornalista, Zhang Keke, que também falou com a imprensa diante do tribunal.
Ex-advogada e residente de Xangai, Zhan foi sozinha para Wuhan em 1º de fevereiro e notabilizou-se por transmitir notícias sobre a pandemia via WeChat, Twitter e YouTube a partir cidade chinesa onde o coronavírus foi inicialmente identificado. Os vídeos curtos mostravam entrevistas com residentes e imagens de crematórios, estações de trem, hospitais e do Instituto de Virologia da cidade.
A acusação divulgada na semana passada sustenta que Zhang “enviou informações falsas por meio de texto, vídeo e outras mídias por meio da internet, como WeChat, Twitter e YouTube, concedeu entrevistas a mídias estrangeiras –Free Radio Asia e Epoch Times – e especulou maliciosamente sobre a epidemia de Covid-19 em Wuhan”.
Ao ser presa, em maio, Zhang negou as acusações e disse que todas as reportagens sobre a resposta ao surto foram baseadas em relatos de moradores locais. Suas reportagens em vídeo costumavam criticar o sigilo e a censura.
“Pessoas comuns dizendo algo casualmente no WeChat podem ser convocadas e advertidas”, disse ela em um vídeo postado no YouTubeem um de seus vídeos. “Como tudo está encoberto, este é o problema que este país enfrenta agora”.
Em outros, ela acusou as autoridades de violar os direitos básicos das pessoas e pediu a libertação de outros jornalistas-cidadãos que haviam sido presos por reportar em Wuhan.
Em junho a jornalista entrou em greve de fome, sendo alimentada à força por uma sonda nasal. Keke relatou que ela compareceu ao julgamento em uma cadeira de rodas, fortemente abalada. E que teria perdido de 15 a 20 quilos e tido os cabelos cortados.
O advogado afirmou que o promotor apenas leu a lista de evidências, sem mostrar a maioria delas. E que Zhan quase não falou, mas disse que “o discurso do cidadão não deve ser censurado”.
Muitos ativistas e profissionais da imprensa estrangeira foram ao local para acompanhar o caso e prestar solidariedade, mas, de acordo com reportagem do South China Morning Post, a entrada na sala do julgamento foi proibida pela polícia alegando proteção contra a transmissão do vírus.
Alguns que tentaram entrar foram levados para a delegacia. A AFP postou nas redes sociais imagens de jornalistas sendo abordados por policiais tentando impedir o trabalho.
Na matéria em que noticiou a sentença, o South China Daily citou uma residente da cidade que viajou a Xangai para acompanhar o julgamento. Identificada apenas como “Xiaomu” , a mulher disseter conhecido Zhang Zhan na cidade chinesa central em abril.
“Estávamos cheios de medo sobre o vírus durante o bloqueio de Wuhan, e então agradecemos a Zhang Zhan por chegar até a cidade. Tão corajoso. Ouvi dizer que ela comprou uma passagem de trem para Chongqing e desceu em Wuhan, sozinha”, disse ela.
Julgamento no apagar das luzes de 2020
Segundo organizações de direitos humanos, o sistema de justiça da China tem uma taxa de condenação de cerca de 99% e frequentemente nega assistência jurídica completa aos réus. Os julgamentos de Zhang e também de 12 dissidentes de Hong Kong, iniciado nesta segunda-feira (28/12) fazem parte da política do país de aproveitar o período de festas natalinas para anunciar sentenças e fazer prisões enquanto muitos governos ocidentais e ONGs estão em recesso.