Que proporção teria tomado a invasão do Capitólio se as principais emissoras dos Estados Unidos não tivessem interrompido dois meses antes a transmissão de uma coletiva do ex-presidente Trump para informar que ele mentia e, em vez disso, tivessem continuado a divulgar sem questionar as mentiras que ele dizia?

Ao tomarem a decisão de interromper, as emissoras não cercearam a liberdade de expressão de Trump? Defender esse direito não é uma das obrigações da imprensa?

Para Denis Muller, pesquisador sênior do Centro para o Avanço do Jornalismo da Universidade de Melbourne, a resposta é clara: a liberdade de expressão não é um direito inquestionável, não é defendida como absoluta por nenhum pensador ligado ao tema e nem pode se sobrepor ao interesse da sociedade, ainda mais no momento atual, marcado por divisão, violência e extremismo.

Liberdade de expressão não pode ser usada para criar riscos à sociedade

Num artigo no The Conversation, Muller aborda os três principais fatores que na sua opinião mais inflamam o debate entre riscos e liberdade de expressão: o extremismo político, que teve nos desatinos finais de Trump sua maior expressão; o terrorismo e seu “veto do assassino”; e as mídias sociais e sua “cultura do cancelamento”.

Tudo isso, admite Muller, confronta os jornalistas com uma série de angustiantes dilemas para os quais não há respostas fáceis. O pesquisador inicia seu artigo com perguntas bem instigantes:

“Os jornalistas devem noticiar que o presidente dos Estados Unidos afirma de forma falsa e provocativa que foi fraudulenta a eleição que ele acabou de perder?”

“Como a imprensa deve cobrir as atividades e a retórica de extremistas políticos sem alimentar a fogueira do ódio e da insurreição civil?”

“De que forma os jornalistas devem integrar o material coletado em redes sociais ao seu próprio conteúdo? Tudo o que repercute nas redes é relevante como notícia? E como devem se portar perante a “cultura do cancelamento?”

“Como editores devem responder ao “veto do assassino“, quando extremistas ameaçam matar quem publica conteúdo que ofende sua cultura ou religião?”

Extremismo político: a liberdade de expressão deve se sobrepor ao risco à paz civil?

Em seu artigo, Muller rememora a atuação da imprensa nos meses finais do governo Trump para ilustrar como a garantia da liberdade de expressão não pode se sobrepor aos interesses maiores da sociedade:

“Quando cinco das grandes redes de televisão americanas deixaram de transmitir a coletiva de imprensa de Trump na Casa Branca em 6 de novembro, após ele afirmar que a eleição teria sido roubada, elas o fizeram alegando que Trump estava mentindo e pondo em risco a paz social.

Silenciar o presidente foi uma medida extraordinária, uma vez que o trabalho da imprensa é contar ao público o que está acontecendo, cobrar as autoridades e garantir o direito à liberdade de expressão. Parecia que estavam deixando de lado seu papel. Por outro lado, o poder e o alcance da televisão impõem às redes a pesada responsabilidade de não dar voz a discursos perigosos.

Então, em 6 de janeiro, dois meses mais tarde, depois de mais incitamentos de Trump, uma violenta multidão invadiu o Capitólio e cinco pessoas morreram. A decisão das redes pareceu ter adivinhado o que viria.

Elas agiram com base no princípio de que um claro e iminente perigo à paz civil, baseado em evidências confiáveis, deveria ter prioridade sobre o compromisso de informar o público, ouvir autoridades públicas e garantir a liberdade de expressão.”

Devem-se reportar informações mentirosas, mesmo que partam do presidente?

Ainda que o perigo à paz social não existisse, Muller pergunta: os jornalistas deveriam continuar reportando informações sabidamente mentirosas só porque foram ditas pelo líder máximo da nação?

Ele considera que essa decisão vai depender do meio de comunicação que reporta a notícia, da natureza e gravidade do risco e da busca do equilíbrio entre a liberdade de expressão e as funções informativas e de responsabilidade do jornalismo:

“Editores de jornais e produtores de programas de rádio e TV pré-gravados têm tempo para reportar mentiras e ao mesmo tempo classificá-las como mentiras. Mas programas de rádio e TV ao vivo não conseguem fazer isso. As palavras vão ao ar e o dano está feito.”

Os jornalistas têm obrigação de relatar tudo?
Foto:Twitter

Para responder a pergunta, o pesquisador toma como exemplo uma recente reportagem sobre a extrema direita produzida pelo programa Four Corners, da ABC. Ao divulgar a exibição num tuíte promocional, a ABC recebeu críticas nas mídias sociais que questionvavam se o programa não estaria estimulando esses grupos.

“A influência da extrema direita na política ocidental é um assunto de real interesse público por causa da forma que ela molda a retórica política e, particularmente, políticas com relação a questões de raça e de imigração.

Não informar sobre esse fenômeno porque se trata de uma ideologia moralmente repreensível seria deixar de cumprir a obrigação ética do jornalismo de informar à sociedade sobre fatos importantes que estão acontecendo ao redor do globo.

Não é uma questão sobre reportar ou não reportar, mas sobre como fazê-lo. O programa Four Corners não é ao vivo e isso dá oportunidade para uma edição criteriosa. Os jornalistas não têm a obrigação de relatar tudo o que lhes é dito. Na verdade, eles quase nunca fazem isso.”

 

Restringir a liberdade de expressão não é censura? Depende do motivo.

Para Muller, o que vale é a intenção:

“Se a decisão de omitir algo é censura ou não, vai depender do motivo. É censura omitir discurso de ódio ou incitamento à violência? Não. É censura quando o repórter omite simplesmente por não concordar? Sim.”

Um conteúdo que viralizou nas redes é necessariamente notícia para a imprensa?

Na opinião do pesquisador, integrar o conteúdo das mídias sociais ao produzido pela imprensa profissional levanta todas essas complexidades e uma adicional: qual o valor noticioso da “viralidade”?

“O fato de algo viralizar nas redes sociais faz com que se torne notícia? Para a imprensa profissional mais responsável, geralmente algo mais será necessário. O assunto afeta um grande número de pessoas? Tem importância inerente de alguma forma? Envolve pessoas que estão em cargos públicos ou influentes?”

Segundo Muller, o uso do Twitter por Trump pôs à prova essas regras de decisão, mas não as invalidou.

Os riscos da “cultura do cancelamento”

Para o pesquisador, as mídias sociais tornaram-se o meio pelo qual pessoas sem voz ou poder conseguem exercer influência sobre pessoas ou organizações que, de outra forma, estariam fora de seu alcance. Mas também viabilizaram a “cultura do cancelamento”.

“As redes sociais possibilitam que um grande número de pessoas forme um coro de condenação contra alguém ou algo por alguma coisa que tenha sido dita ou feita. Isso também pressiona instituições como universidades e meios de comunicação.

Existem aqueles que estão preocupados com os impactos na liberdade deexpressão. Em julho de 2020, a Harper’s Magazine publicou uma carta de protesto assinada por 152 autores, acadêmicos, jornalistas, artistas, poetas, dramaturgos e críticos.

Enquanto aplaudiam as intenções por trás da “cultura do cancelamento” na promoção do avanço da justiça racial e social, eles levantaram suas vozes contra o que eles consideraram um novo conjunto de atitudes morais que tendiam a favorecer a conformidade ideológica.

No rescaldo dosassassinatos de negros pela polícia em 2020 e da resposta de lei-e-ordem do governo Trump, a “cultura do cancelamento” começou a afetar a ética do jornalismo. Alguns jornalistas de veículos como The Washington Post e The New York Times começaram a assumir publicamente posições contra a maneira como seus jornais reportavam questões raciais.”

Convicções morais devem moldar as decisões editoriais?

O pesquisador ressalta que os questionamentos levaram a um intenso debate no meio profissional sobre se as convicções morais deveriam moldar as decisões editoriais.

“Para aqueles que argumentaram que os juízos morais deveriam se sobrepor, a resposta foi: devem prevalecer as convicções de quem?

Esse foi outro exemplo das complexidades envolvendo as questões de liberdade de expressão levantadas pelo fenômeno das redes sociais, do governo Trump e da combinação dos dois.”

A liberdade de expressão e o “veto do assassino”

Muller destaca o caso que ao longo da década de 2005-2015 viria a ficar conhecido como Cartuns Dinamarqueses, confrontando jornalistas e editores com decisões editoriais de vida ou morte:

“Em 2005, o jornal dinamarquês Jyllands Posten publicou cartuns que satirizavam o Profeta Maomé. Foi um ato consciente em desafio ao “veto do assassino”, as ameaças violentas à liberdade de expressão por parte de jihadistas islâmicos.

Em 2009, um professor dinamarquês de estudos políticos escreveu um livro, The Cartoons that Shook the World. A Yale University Press, que publicou o livro, recusou-se a reproduzir em suas páginas os cartuns após receber o conselho de especialistas em contraterrorismo sobre os riscos envolvidos.

Em novembro de 2011, o jornal francês Charlie Hebdo publicou uma edição chamada Charia Hebdo, satiricamente colocando o Profeta como editor. O verdadeiro editor foi colocado em uma lista de alvos da Al-Qaeda e em janeiro de 2015 ele foi assassinado junto com outros 11 colegas, quando dois homens mascarados abriram fogo contra a redação do jornal.

A imprensa mundial foi confrontada com a decisão de republicar ou não os cartuns para rebater o “veto do assassino”. Alguns veículos o fizeram, mas a maioria, incluindo o Jyllands Posten, preferiu não publicar.”

Como tudo na vida, até a liberdade de expressão deve ter limites

O pesquisador enfatiza que a liberdade de expressão é um direito civil indispensável, que deve ser defendido do ataque de todas essas forças, mas que também deve ter seus limites:

“As gigantes de mídia social, que por anos se autoproclamaram como extremamente libertárias, começaram recentemente a reconhecer que isso é indefensável e fortaleceram seus procedimentos de moderação.”

Citando exemplos de políticos importantes do país onde vive, como o do primeiro-ministro australiano Michael McCormack, que parecia não saber qual posição defender quando o Twitter derrubou a conta de Trump, o pesquisador ressalta a complexidade do tema:

“Num primeiro momento, o primeiro-ministro, que foi editor de um dos jornais do país, disse que a decisão era uma violação à liberdade de expressão. Pouco depois estava exigindo que o Twitter retirasse a falsa imagem de um soldado australiano cortando a garganta de uma criança afegã.”

Ele também cita o exemplo de um dos ministros do gabinete australiano, Josh Frydenberg, que disse estar “desconfortável” com a decisão do Twitter:

“O ministro citou Voltaire, referindo-se a uma frase que Voltaire nunca disse: a de que mesmo que não concordasse com algo dito por alguém, lutaria até a morte pelo direito de a pessoa se expressar. Mas isso foi uma frase inventada, colocada na boca de Voltaire por um biógrafo mais de 100 anos após sua morte.”

Decisão de não publicar não é uma violação a um direito inviolável

Muller ressalta que nenhum dos filósofos cujos nomes são imediatamente associados à liberdade de expressão disse que ela deve ser absoluta:

Voltaire, Milton, Spinoza, Locke e Mill, para não citar a Suprema Corte dos Estados Unidos, não consideraram a liberdade de expressão como um direito absoluto.

Portanto, enquanto a imprensa atualmente enfrenta algumas decisões operacionais muito difíceis, ela não precisa se sobrecarregar com a crença de que toda decisão de não publicar algo é uma violação a um direito inviolável.”