O New York Times passou de estilingue a vidraça em um desconfortável episódio envolvendo uma das suas principais estrelas. O caso se agravou na última quarta-feira (3/2), quando 150 funcionários enviaram uma carta à direção exigindo medidas mais duras contra o jornalista Donald McNeil Jr, acusado de conduta racista. O episódio fora denunciado uma semana antes pelo Daily Beast.
Diante da pressão, o jornal anunciou na noite de sexta-feira (5/12) que McNeil e também Andy Mills, jornalista que havia produzido o podcast Caliphate (cuja principal fonte foi presa pela polícia canadense e nunca havia estado na Síria), estavam deixando o jornal “depois que condutas adotadas no passado tornaram-se alvo de críticas dentro e fora do jornal”.
Especializado em ciência, McNeil Jr. era um dos mais renomados repórteres do jornal americano, com destacada atuação na cobertura da pandemia. Entre suas matérias recentes está uma entrevista com Antonio Faucci no blog The Daily, em que o especialista em saúde pública revelou fatos inéditos sobre o período em que assessorou Donald Trump.
Caso ocorreu em 2019 em viagem ao Peru
O episódio que motivou a ira da redação ocorreu em uma viagem educacional ao Peru promovida pelo Times em 2019, reunindo alunos do ensino médio e acompanhada pelo jornalista. Ele teria usado várias vezes a “palavra com n”, considerada um dos piores insultos raciais na língua inglesa, além de fazer comentários sexistas.
Mesmo sabendo da história, denunciada por pais de alunos que fizeram a viagem, o jornal alçou o profissional ao posto de principal nome de sua equipe durante a crise da Covid. E inscreveu seu trabalho para concorrer ao Prêmio Pulitzer.
Tudo parecia sob controle até que a história foi revelada na semana passada pelo The Daily Beast, em uma reportagem contando detalhes da conduta de McNeil Jr. baseada nos relatos diretos dos que participaram da excursão.
Tentativa de contemporizar
Em resposta, o NYT publicou uma matéria sobre o caso e também respondeu ao The Daily Beast. Disse ter feito uma investigação e adotado medidas disciplinares “por declarações e linguagem inconsistentes com nossos valores” sem especificar quais, o que revoltou a equipe pela brandura com que a situação foi tratada.
No mesmo dia em que a carta dos funcionários foi enviada, a direção manifestou-se em uma mensagem interna assinada conjuntamente pelo editor executivo Dean Baquet, pelo publisher A.G. Sulzberger e pela CEO Meredith Kopit Levien, indicando a proporção que o caso tomou.
Eles agradeceram o espírito com que as reclamações foram levadas à chefia, disseram concordar com o conteúdo e sinalizaram que providências estariam a caminho, informando que “equipes internas estão analisando as questões levantadas no manifesto e que em breve a redação veria os resultados da análise”. O que acabou acontecendo na noite de sexta-feira, 5/2.
Perturbação profunda
Na carta dirigida ao editor Baquet, os funcionários expressaram estar “profundamente perturbados” com a forma como o jornal lidou com as alegações. Apelaram aos chefes para conduzir investigações adicionais a respeito das queixas contra McNeil Jr, e pediram que ele seja obrigado a pedir desculpas aos alunos e a seus pais, a pessoas que participaram da viagem e aos seus colegas do Times.
“Nós, seus colegas, nos sentimos desrespeitados por suas ações”, dizia a carta. “A empresa tem a responsabilidade de levar esse caso a sério.”
Segundo o The Daily Beast, logo após o caso ter vindo à tona Baquet admitiu em uma mensagem interna ter ficado indignado ao saber da história, a ponto de ter cogitado demitir McNeil. Mas disse ter voltado atrás porque uma investigação do jornal concluiu que o repórter fez um “mau julgamento”, mas que não teria agido com má intenção ou malícia, merecendo por isso outra chance.
Pressão da redação foi decisiva
A equipe discordou da posição. Na carta, o resultado da investigação foi classificado como “irrelevante”. O texto invoca o próprio treinamento de assédio do jornal , lembrando que ele “deixa claro que o que importa é como um ato faz as vítimas se sentirem. E as vítimas de McNeil não se intimidaram em criticar sua conduta na viagem”.
Os signatários pediram também ao jornal que estudasse como os preconceitos raciais afetam as pautas e a edição, reiterando o compromisso com as políticas existentes de não discriminação e antiassédio do jornal.
A carta revelou ainda que, após o artigo do The Daily Beast, funcionários atuais e antigos também disseram que McNeil havia mostrado “preconceito racial em seu trabalho e nas interações com colegas ao longo dos anos”:
“Nossa comunidade está indignada e sofrendo. Apesar do aparente compromisso do The Times com a diversidade e inclusão, oferecemos uma plataforma proeminente – uma cobertura crítica cobrindo uma pandemia que afeta desproporcionalmente pessoas negras – para alguém que escolheu usar uma linguagem que é ofensiva e inaceitável para os padrões de qualquer redação. Ele fez isso enquanto atuava como representante do The Times, na frente de alunos do ensino médio.”
O desconforto foi tão grande que colegas de McNeil usaram as redes sociais para protestar contra sua conduta, como o editor de investigações em finanças David Enrich.
Acusado tentou negar
Donald McNeil Jr. não quis muita conversa. Procurado pelo Washignton Post para falar sobre o caso no meio da semana, deu uma resposta lacônica por e-mail: “Não acredite em tudo o que você lê”. No dia da demissão, no entanto, escreveu para os colegas justificando que o contexto em que havia usado a “horrível palavra” era defensável, mas agora entendia que não era:
” Foi profundamente ofensivo. Por ofender meus colegas, e pelo que posso ter feito para prejudicar o Times, uma instituição que amo e em cuja missão acredito e tentei servir, peço desculpas. Eu decepcionei vocês”.
Jornal criou seção contra racismo
Na tentativa de administrar a crise, Baquet e Carolyn Ryan, editora assistente, tinham chegado a reunir-se com jornalistas da casa – incluindo repórteres negros famosos como Nikole Hannah-Jones – para tentar explicar como lidaram com o comportamento de McNeil.
Segundo o The Daily Beast, alguns participantes expressaram descontentamento com a forma como o jornal lidou com as queixas contra McNeil, mas outros disseram que Baquet parecia estar levando a sério as preocupações da equipe, outro sinal de que a sorte da estrela poderia mudar, como acabou acontecendo.
O desconforto é imenso para um jornal que chegou a criar uma seção destinada a oferecer recursos para professores embasarem aulas contra o racismo, chamada Race and Racial Justice Resources. Na página estão ideias de tópicos para discussão em sala de aula, recomendações de filmes e livros e lições diárias aproveitando notícias recentes.
A denúncia
A viagem que pode ter destruído uma carreira brilhante foi parte de um programa mantido pelo The New York Times há vários anos. Nas férias de verão, o jornal seleciona alguns de seus principais repórteres para servir como guias de estudantes do ensino médio em viagens internacionais, com o objetivo de proporcionar férias no exterior com valor educacional. Também é um bom reforço no caixa, naturalmente, pois cada integrante desembolsa cerca de US$ 5,5 mil pelo privilégio.
Em 2019, um desses especialistas foi McNeil Jr, repórter do jornal desde 1976. A excursão ao Peru, com pelo menos 26 alunos, tinha como foco observar a assistência comunitária de saúde na região, tema alinhado à experiência do jornalista, que se notabilizou por reportagens e livros sobre epidemias e doenças como Aids, malária, Ebola, gripe suína e influenza.
As denúncias de racismo levadas ao The New York Times por pais de alunos também foram examinadas diretamente pelo The Daily Beast, segundo a matéria que revelou o caso. O jornal disse que pelo menos seis alunos ou seus pais disseram à empresa de turismo parceira do Times na empreitada que McNeil usou linguagem racista.
Vários depoimentos
Dois alunos alegaram especificamente que o repórter de ciências usou a “palavra com n” e teria sugerido não acreditar no conceito de privilégio branco. E três outros participantes alegaram que McNeil fez comentários racistas e usou estereótipos sobre adolescentes negros. Os relatos são desabonadores:
“Espero uma ação imediata sobre a conduta Donald, estou profundamente decepcionado com o New York Times por causa dos comentários que ele fez durante nossa viagem. Acho que até mesmo demiti-lo seria apropriado”.
“Donald não apenas fez vários comentários racistas em diversas ocasiões, mas também foi desrespeitoso com muitos alunos durante as refeições e em outros ambientes”.
“Eu mudaria o jornalista. Ele era racista. Ele usou a palavra ‘N’, disse coisas horríveis sobre adolescentes negros e disse que a supremacia branca não existe”.
“Ele não foi respeitoso durante algumas das cerimônias tradicionais que participamos com curandeiros / xamãs indígenas. Fez com que os alunos do programa se sentissem desconfortáveis com seus comentários. Fiquei muito desapontado depois de ouvir grandes coisas sobre seu trabalho”.
O The Daily Beast ouviu também Jeff Shumlin, diretor da Putney Student Travel, que organizou a viagem. Ele confirmou que a empresa havia recebido reclamações de pais sobre McNeil, mas eximiu-se da responsabilidade, dizendo que o jornal designa os acompanhantes, cabendo ao parceiro responder sobre os problemas.
Foi o que fez a direção do The New York Times. Mas a demissão não deve encerrar o desconforto, pois sobra ainda o questionamento sobre a demora para tomar a decisão. E o motivo de ela só ter sido tomada após o fato tornar-se público por iniciativa de um concorrente.
Caliphate, outro constrangimento
O caso de Donald McNeil Jr,. não é o único a ofuscar o brilho do jornal que teve sua excelência editorial compensada por um recorde de 2,3 milhões novos assinantes em 2020. Ainda repercute uma controvérsia com outra de suas estrelas, a repórter Rukmini Callimachi. Leia mais sobre o caso aqui