A notícia da prisão da jornalista australiana radicada na China Cheng Lei, que veio a público nesta segunda-feira (8/2) e foi manchete na imprensa em todo o mundo, mostra que o país inicia 2021 honrando o título de pior carcereiro do mundo para jornalistas, conforme os rankings publicados no fim do ano pelas organizações Repórteres sem Fronteiras e Comitê para Proteção dos Jornalistas.
Na mesma semana, a editora chinesa Geng Xiaonan foi condenada a três anos de prisão depois de se confessar culpada de operações comerciais ilegais. Ela havia falado em apoio a Xu Zhangrun, um professor de direito de Pequim que criticava Xi Jinping e o Partido Comunista Chinês e tinha sido detida em setembro passado.
O caso de Cheng Lei
O desdobramento do caso de Cheng Lei, de 46 anos, é um sinal de que a ação repressiva do Partido Comunista Chinês não poupa sequer as mídias estatais do país, pois a profissional atuava como
âncora de negócios da emissora CGTN (China Global Television Network).
Há sinais de que o caso esteja ligado a uma crise diplomática entre a China e a Austrália. Cheng Lei vinha sendo mantida desde agosto sob a chamada “vigilância residencial em local designado”, que poderia durar até seis meses sem acusação formal.
Agora, as autoridades chinesas confirmaram pela primeira vez que ela é acusada de fornecer ilegalmente ou de pretender fornecer segredos de estado ou inteligência a uma organização ou indivíduo estrangeiro. Pelo código penal da China, fornecer segredos de Estado no exterior resulta em pena de cinco a dez anos, ou mais em casos graves, segundo informou o New York Times ao escrever sobre o caso.
A jornalista tem formação em economia e trabalhou em corporações como Cadbury-Schweppes e ExxonMobil. Mudou-se para a China em 2000 e iniciou uma carreira de jornalista no canal em inglês da emissora estatal CCTV em 2003. Foi correspondente da CNBC na China por nove anos e em 2013 voltou ao canal estatal, que mudou o nome para CGTN.
Embora o perfil dela continuasse no site da CGTN em agosto, quando ela foi detida, desta vez a emissora manifestou-se, publicando a notícia em seu site. Disse que a confirmação da prisão foi feita durante uma coletiva do porta-voz do Ministério das Relações Exteriores. E com pouca imparcialidade afirmou esperar que a Austrália respeite a soberania judicial da China e pare de interferir na forma como o país conduz assuntos de acordo com as leis.
Sem ar fresco ou luz natural
As autoridades não forneceram mais detalhes, mas segundo a lei chinesa as punições podem variar, incluindo prisão perpétua para os crimes mais graves, como informou o correspondente da ABC australiana na China.
Segundo Bill Birtles, ela estaria trancada em uma cela sem ar fresco ou luz natural, teria enfrentado vários interrogatórios e recentemente perdeu o direito a escrever cartas e a fazer exercícios.
Não foi ainda formalmente acusada, mas a prisão é um passo adiante no caso, confirmando que a investigação ruma para um processo formal. Não há prazo para que isso ocorra.
O correspondente australiano relatou, em outros casos de segurança nacional os investigadores lançaram mão de recursos para prolongar indefinidamente o tempo que os suspeitos passam detidos enquanto continuam a reunir provas. O professor de Estudos da China Feng Chongyi disse à ABC que as vítimas costumam ser mantidas em confinamento solitário e submetidas a interrogatórios contínuos, privação de sono e outras formas de tortura.
Crise diplomática
Por ser incomum a prisão de um jornalista de órgão estatal, o caso de Cheng Lei foi associado à crise diplomática entre a China e a Austrália provocada por pressões para abertura de inquérito sobre a origem do coronavírus, que acabaram resultando em sanções a produtos australianos.
Além de jornalista, Lei tinha atuação destacada em eventos promovidos pela embaixada australiana – mais um fator a associá-la à tensão entre os dois países.
O governo australiano divulgou um comunicado, assinado pela ministra das Relações Exteriores, Marise Payne, confirmando ter recebido da China a confirmação da prisão da jornalista, que teria ocorrido em 5/2, e manifestou o descontentamento:
“O governo australiano expressou suas sérias preocupações sobre a detenção da Sra. Cheng e sobre seu bem-estar e as condições de detenção.
Funcionários da embaixada australiana visitaram a Sra. Cheng seis vezes desde sua detenção, mais recentemente em 27 de janeiro de 2021, de acordo com nosso acordo consular bilateral com a China.
Esperamos que os padrões básicos de justiça, equidade processual e tratamento humano sejam atendidos, de acordo com as normas internacionais.”
Em reportagem sobre o caso, o New York Times acha “assustadoramente limitada” a capacidade de a Austrália garantir a libertação de Cheng por meio da diplomacia.
Segundo o jornal, há mais tensões além da investigação a respeito da pandemia. O NYT observou que nos últimos anos Canberra tem procurado impedir Pequim de atividades de construção de influência em solo australiano, inclusive entre a grande população do país de migrantes recentes da China. O governo australiano também irritou a China ao bloquear a potencial participação da gigante chinesa de tecnologia Huawei na construção da rede 5G da Austrália, segundo o jornal.
Por sua vez, a China restringiu as importações de produtos australianos, incluindo vinho, carvão e cevada. O governo chinês não descreveu essas ações como retaliação política, mas poucos na Austrália estão convencidos do contrário.
Último post em agosto
Mesmo após a prisão, a conta do Twitter de Cheng Li continua ativa no Twitter, mas sem qualquer movimentação. Ela ainda se apresenta como âncora da CGTN.
Em um dos últimos posts, em agosto, havia sugerido que o Governo poderia ter censurado uma entrevista sobre o TikTok.
A rede australiana ABC examinou em agosto os posts em redes sociais de Cheng Lei. No aplicativo chinês WeChat não havia nada especialmente sensível. Mas no Facebook a ABC encontrou conteúdo criticando a resposta da China à pandemia do coronavírus. Em uma delas, a jornalistas escreveu:
“Nove milhões de pessoas presas por mais de um mês em uma cidade fantasma, médicos e enfermeiras infectados e mortos após serem informados de ‘nenhuma transmissão entre humanos’ e, em seguida, sem proteção adequada, mais de 3.000 famílias que não puderam dizer adeus a seus entes queridos, corpos imediatamente cremados e seus celulares espalhados por todo o necrotério.
“E, em vez de autoridades baixando a cabeça de vergonha (imagine quantos no Japão já teriam se enforcado), eles estão pedindo aos habitantes locais que sejam ‘gratos’.”
Nascida na China, Cheng mudou-se aos dez anos com a família para Brisbane, onde seu pai foi fazer um doutorado. E retornou ao país para tornar-se uma destacada jornalista especializada em economia. Seus dois filhos e os pais ainda vivem na Austrália.
A jornalista tem formação em economia e trabalhou em corporações como Cadbury-Schweppes e ExxonMobil. Mudou-se para a China em 2000 e iniciou uma carreira de jornalista no canal em inglês da emissora estatal CCTV em 2003. Foi correspondente da CNBC na China por nove anos e em 2013 voltou ao canal estatal, que mudou o nome para CGTN.
O maior carcereiro de jornalistas
O caso de Cheng Lei reforça duas tendências preocupantes registradas em 2020 pela Repórteres sem Fronteiras. A pesquisa anual da organização contabilizou um aumento de 35% no número de jornalistas presas em 2020. E a China figurou como o pior carcereiro do mundo tanto para a RSF quanto para o Comitê para a Proteção aos Jornalistas.
Segundo a RSF, em 1º de dezembro 42 delas estavam privadas da liberdade, das quais quatro na Bielorrúsia, país que desde agosto enfrenta protestos contra a reeleição do presidente Alexander Lukashenko. Ao fim de 2019, eram 35 as jornalistas presas por motivos diversos, incluindo denúncias relacionadas à pandemia.
A RSF destacou em seu relatório o caso da vencedora do Prêmio RSF da Liberdade de Imprensa de 2019, Pham Doan Trang, do Vietnã. Ela foi detida em outubro, acusada de fazer “propaganda contra o Estado”.
A profissional fundou a revista jurídica Luât Khoa e dirige o thevietnamese, publicações que permitem aos leitores conhecerem as leis do país e combaterem arbitrariedades do Partido Comunista.
Já prevendo que poderia ser presa, deixou uma carta dizendo “não desejar a liberdade para si mesma, mas algo maior: a liberdade para o Vietnã”.
Outra história emblemática é a da chinesa Haze Fan, que trabalha na Bloomberg desde 2017. Foi capturada em casa, em Pequim, acusada de atividades criminosas ameaçando a segurança nacional. A China só permite que chineses trabalhem como tradutores, pesquisadores e assistentes para organizações de notícias estrangeiras, e não como jornalistas com direito de fazer reportagens.
A Bloomberg divulgou um comunicado dizendo que havia perdido contato com Fan desde 7 de dezembro e que só recebeu a notícia de sua detenção depois de dias perguntando ao governo em Pequim e à embaixada chinesa em Washington.
No dia 28 de dezembro, mais uma má notícia: a advogada e jornalista-cidadã Zhang Zhan foi condenada a quatro anos de prisão por ter reportado a partir da cidade de Wuhan, na China. Ela fez vídeos sobre o coronavírus e a gestão da pandemia pelas autoridades, postados no WeChat, YouTube e Twitter. Zhan estava presa desde maio, fez greve de fome e acabou sentenciada sob acusação de “provocar discórdia e causar problemas”.
Cinco nações respondem por mais da metade dos jornalistas presos em 2020
A China liderou em 2020 a lista de países apontados pela RSF como os que mais têm jornalistas encarcerados. Os outros são Egito, Arábia Saudita, Vietnã e Síria. O total de profissionais privados de liberdade em 1º de dezembro era de 387, segundo a entidade. Há ainda 54 apontados como reféns − em Síria, Iraque e Iêmen − e quatro desaparecidos.
O número apresentado no relatório é a soma de repórteres profissionais, jornalistas-cidadãos (como blogueiros independentes) e os que trabalham para organizações de notícias em funções de suporte. Levando-se em conta apenas os profissionais, o número de presos é de 252, enquanto o de independentes é de 122 e o dos colaboradores é de 13.
Outra entidade que monitora violações à liberdade de imprensa, o Comitê para a Proteção aos Jornalistas, havia identificado pelo menos 274 jornalistas privados de liberdade em 1º de dezembro, dos quais 250 presos em 2020,como apresentamos aqui. Há variação nos números, mas em um ponto as duas entidades concordam: ambas apontaram a China como “o pior carcereiro do mundo”.