A depender do ponto de vista, o mais novo round da disputa entre as plataformas digitais e o governo da Austrália pode ser visto como demonstração de força ou de fraqueza. Na noite de terça-feira (22/2), pelo horário australiano, o Facebook anunciou que os links de notícias voltariam à plataforma nos próximos dias, após algumas de suas propostas de emendas na lei de mídia em tramitação no Senado terem sido aceitas.

Campbell Brown, vice-presidente de parcerias globais de notícias do Facebook, disse:

“Depois de mais discussões com o governo australiano, chegamos a um acordo que nos permitirá apoiar os editores que escolhermos, incluindo pequenas organizações jornalísticas locais”. 

Já o ministro do Tesouro, Josh Frydenberg, preferiu enfatizar as concessões feitas pela empresa digital:

“O Facebook comprometeu-se a entrar em negociações de boa fé com empresas australianas de mídia de notícias e buscar chegar a acordos para pagar pelo conteúdo, como desdobramento de negociações intensas comigo, com o primeiro-ministro e com o chefe do Tesouro. Concordamos em fazer alguns esclarecimentos ao código”

Josh Fryndenberg e Scott Morrison (Foto Twitter)

Semântica à parte, o fato é que a repercussão negativa da declaração de guerra do Facebook ao suspender links de notícias envolvendo até serviços públicos, anunciada na última quinta-feira (18/2), e a firmeza do Governo australiano diante do movimento arriscado da empresa foram decisivas.

Ao ponto de Mark Zuckerberg ter negociado pessoalmente com o primeiro-ministro Scott Morrison e com os ministros envolvidos.

A tentativa de transmitir uma impressão de paz ficou evidente na declaração simpática dada pelo ministro, que se disse grato ao fundador do Facebook por seu engajamento direto nas negociações:

“Quero agradecer a Mark Zuckerberg pela natureza construtiva das discussões que tivemos ao longo dos últimos dias. Foi um processo difícil, mas essas são questões realmente importantes”. 

A posição não sugere que o Facebook tenha levado a melhor na conversa. Segundo o Governo, as emendas à lei proposta teriam apenas proporcionado clareza para plataformas digitais e empresas de mídia sobre como o código funcionará.

Mas, segundo reportagem do Financial Times, as mudanças podem dar ao Facebook e ao Google − as mais visadas pelo nova lei − mais flexibilidade para escapar dos aspectos mais rígidos.

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As autoridades encarregadas de sua aplicação terão que levar em conta se uma empresa digital deu uma contribuição significativa para a indústria de mídia ao fechar acordos comerciais com empresas do setor. O modelo contencioso de arbitragem final contido no código será estipulado como “último recurso” quando não houver acordo comercial. Um período de mediação de dois meses deve ocorrer antes da arbitragem, explicou o Governo.

No comunicado emitido na segunda-feira (22), Frydenberg destacou a intenção de proteger a indústria de mídia:

“Essas são questões importantes porque o propósito do código e o propósito das intenções do Governo Morrison foram projetados para sustentar o jornalismo de interesse público neste país”.

O ministro disse que as mudanças estimularão o diálogo entre as editoras e as principais plataformas digitais, incentivando negociações comerciais diretas sem o uso dos dispositivos da nova lei, o que o governo considera uma característica central da estrutura para promover o jornalismo de interesse público sustentável na Austrália.

Para alguns, o Governo cedeu mais do que deveria 

Apesar de toda a fanfarra, nem todos acham que o Governo venceu a batalha. Em um artigo no Nieman Lab, Joshua Benton fez uma leitura crítica do acordo.

Para ele, a arbitragem obrigatória que era a base da nova lei proposta pela Austrália foi reduzida a uma questão de teoria, já que o Facebook ganhou o direito de decidir oferecer a diferentes empresas a quantia que quiser, inclusive nada, sem risco de multa, Para sustentar sua tese, Benton destacou os pontos da declaração:

“Depois de mais discussões com o governo australiano, chegamos a um acordo que nos permitirá apoiar os editores que escolhermos, incluindo editores pequenos e locais. Estaremos restaurando notícias no Facebook na Austrália nos próximos dias. No futuro, o governo esclareceu que manteremos a capacidade de decidir se uma notícia aparecerá no Facebook para que não fiquemos automaticamente sujeitos a uma negociação forçada. Sempre foi nossa intenção apoiar o jornalismo na Austrália e em todo o mundo, e continuaremos a investir em notícias globalmente e a resistir aos esforços dos conglomerados de mídia para promover estruturas regulatórias que não levem em conta a verdadeira troca de valor entre editoras e plataformas como o Facebook.”

Joshua Benton observa que dinheiro não é problema para o Facebook e o Google, dispostos a injetar fortunas no setor para evitar a regulamentação. E que sob a perspectiva das duas gigantes digitais, o maior problema é que pagar por notícias de qualquer forma sistêmica afetaria sua principal vantagem como plataformas: organizar o conteúdo de outras pessoas. E fez uma comparação:

“Digamos que você ache que o Google deve dinheiro ao The New York Times por incluir todas as suas notícias nas pesquisas. Multar. Eles também me devem dinheiro por incluir meu antigo blog do início dos anos 2000 ? Ele também está indexado no Google. E o Breitbart? E o The Daily Stormer ou o Stormfront ? E quanto aos seus tweets? Ou o DairyQueen.com? Todos eles consistem em conteúdo digital que contribuem com algum tipo de valor para o Google como produto. Talvez você pense que pode definir um limite em algum lugar, mas onde? E como aplicá-lo a um índice de bilhões de sites? O Facebook deve pagar aos editores com base em quanto valor eles agregam ao Feed de notícias? Ok − então o maior cheque vai para o Daily Mail, e o Daily Wire recebe tanto quanto o New York Times.”

Partindo do princípio de que as plataformas são contrárias a qualquer tipo de pagamento sistemático e orientado ao desempenho para empresas jornalísticas com base no valor que eles oferecem às plataformas, ele acha que Facebook e o Google responderam “procurando outras maneiras de lidar com a dor de cabeça de relações públicas, levando dinheiro para empresas de notícias por meio de iniciativas de apoio ao jornalismo”, que em sua opinião são aplicadas em projetos secundários, que as plataformas decidem à sua livre escolha.

“Os gigantes da tecnologia têm dinheiro e poder. Eles não se importam em abrir mão de dinheiro se isso lhes der algo em troca: um ambiente regulatório mais amigável ou o silêncio de editores irritadiços. O que eles não querem abrir mão é do poder: o poder de escolher vencedores (seja por meio de algoritmo ou transferência de dinheiro), o poder de decidir o que está disposto a pagar e − o mais importante − o poder de manter sua principal vantagem como plataformas, que agregam grandes quantidades de informações gratuitas e lucram com todas as formas de organizar, distribuir e monetizar tudo isso.”

O editor do Nieman Lab observa que se houvesse uma lei obrigando o Google a pagar por alguns tipos de informações na busca − ou  o Facebook a pagar para ter alguns tipos de informações no Feed de notícias − o elemento central de seu modelo estaria em risco. E faz outra analogia:

“Em vez de ser uma estrada com pedágio que os passageiros pagam para usar, você tem que pagar aos motoristas pelo privilégio de usar você? Isso é impensável.”

Foi o que disse a própria diretora do Google na Austrália, Melanie Silva, em depoimento no Senado, como lembrou Benton: “O conceito de pagar um grupo muito pequeno de criadores de conteúdo ou sites para aparecer puramente em nossos resultados de pesquisa orgânica abre um precedente perigoso para nós, que apresenta riscos incontroláveis ​​do ponto de vista do produto e do modelo de negócios.

Crítico, ele não poupou a plataforma:

“O Facebook é um pesadelo corporativo que causou danos reais e significativos à democracia. Os reguladores australianos carregam água para Rupert Murdoch [o magnata de mídia apontado como beneficiário de contratos milionários com as plataformas, que apontam para privilegiar os grandes conglomerados] e têm proposto uma política que, como diz Tim Berners-Lee, tornaria a web ‘impraticável’. Mas uma má empresa que enfrenta regulamentações ruins destila puro poder e, ao atirar nos reféns (em uma comparação ao filme The Usual Suspects), o Facebook deixou bem claro onde isso ainda está. Ou, dito de outra forma: “Como você atira no diabo pelas costas? E se você perder?”

Todo mundo de olho no cofre do Facebook

O questionamento das intenções das plataformas não freou o ímpeto das empresas jornalísticas australianas de aproveitar a oportunidade para firmar acordos. Uma semana depois de o Google assinar contratos milionários com as principais empresas jornalísticas, o setor abriu as portas para o Facebook, aproveitando a maré positiva e a predisposição de negociações favoráveis às empresas jornalísticas.

A Seven West Media, um dos maiores grupos de mídia da Austrália, disse na terça-feira que assinou uma carta de intenções para fechar um acordo dentro de 60 dias para fornecer conteúdo de notícias ao Facebook.

O presidente da SWM, Kerry Stokes, afirmou que a parceria com o Facebook foi uma “mudança significativa” e “reflete o valor de nosso conteúdo original de notícias em broadcast, meios digitais e impressos”.

Ele disse que a parceria “não teria sido possível sem a liderança e visão do primeiro-ministro Scott Morrison, do presidente da Comissão Australiana de Concorrência e Consumidores, Rod Sims, do tesoureiro Josh Frydenberg e do ministro das Comunicações Paul Fletcher”, demonstrando os dividendos políticos que vêm sendo colhidos pelo Governo em sua cruzada pelo pagamento por conteúdo.

Enquanto isso, um porta-voz da Nine Entertainment, um dos que assinaram semana passada para entrar no Google News Showcase, anunciou que a empresa está “ansiosa para retomar as discussões construtivas”. A recíproca parece ser verdadeira. O comunicado do Facebook  diz:

“Estamos satisfeitos que o Governo australiano tenha concordado com uma série de mudanças e garantias que atendem às nossas principais preocupações sobre a permissão de acordos comerciais que reconheçam o valor que nossa plataforma oferece aos editores em relação ao valor que recebemos deles”.

Como resultado dessas mudanças, podemos agora trabalhar para aumentar nosso investimento em jornalismo de interesse público e restaurar as notícias no Facebook para os australianos nos próximos dias.”

Mas ainda levará dias para que as páginas de notícias sejam restauradas na plataforma. A imprensa australiana registrou que, em um telefonema ao ministro do Tesouro, Zuckerberg disse que o retorno dependerá de “detalhes de engenharia”. 

O ato solitário do Facebook, que causou queda no tráfego dos sites de notícias e insuflou campanhas de boicote à plataforma, ainda não foi bem digerido.  Mesmo com o clima de paz, Josh Frydenberg marcou sua posição:

“O comportamento deles na semana passada foi lamentável e eu expressei isso diretamente ao próprio Mark. Disse que não apenas o Governo australiano ficou desapontado com o que o Facebook fez, mas também com a maneira como o fez, porque não recebemos nenhum aviso prévio”.

A década da competição e tecnologia 

Ao Financial Times, John Kettle, sócio do escritório de advocacia australiano McCullough Robertson,  disse que o acordo parece ser um meio-termo para salvar a face da empresa. Mas entende que o governo afirmou sua autoridade e que o Facebook agora teria que fechar acordos com os provedores de notícias de maneira semelhante ao Google.

Para ele, a década de 2010 foi marcada pela preocupação com privacidade e tecnologia. E a de 2020 será marcada pelo debate envolvendo competição e tecnologia. Os sinais confirmam a tese, com outros países correndo para seguir o caminho da Austrália.

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