Enquanto o mundo acompanhava na semana passada a aprovação, na Austrália, da primeira lei obrigando as plataformas digitais a pagarem por conteúdo jornalístico, uma nova frente de batalha abriu-se na Índia para as gigantes digitais. O Governo nacionalista de Narendra Modi publicou em diário oficial no dia 25 de fevereiro um decreto com duras regras para disciplinar conteúdo no país, que a exemplo do modelo de remuneração australiano pode inspirar outras nações a seguirem rumos semelhantes.
A regulamentação abrange redes sociais e serviços de mensagem, plataformas de streaming de vídeo e o jornalismo digital, em um dos maiores mercados mundiais de tecnologia. Trata-se do mercado principal do Facebook e do WhatsApp.
O pacote não precisará ser votado para entrar em vigor, bastando que o Governo notifique as empresas. As maiores, submetidas a exigências mais severas, terão três meses para se adaptarem.
Apesar de poucos negarem a necessidade de controlar discurso de ódio, extremismo e desinformação nas redes, a regulamentação indiana foi recebida com preocupação devido ao risco de ameaçar a livre expressão, a liberdade de imprensa e a privacidade.
Ela estabelece mecanismos de autorregulação e punições severas para os chamados intermediários, como a lei classifica os provedores desses serviços, que ficam obrigados a nomear responsáveis baseados na Índia para responder a demandas legais.
E podem forçar as plataformas a remover posts, inclusive notícias em meios digitais. E a quebrar a criptografia de mensagens por determinação judicial ou governamental, a fim de revelar os autores originais de conteúdo considerado ilegal, ofensivo ou que ameace a segurança nacional.
O comunicado anunciando as novas regras foi marcado por um tom nacionalista, com um recado firme para as gigantes estrangeiras:
“Plataformas de mídia social são bem-vindas para fazer negócios na Índia, mas precisam seguir a Constituição e as leis da Índia.”
E procurou dar um caráter moderno à iniciativa.
“A estrutura proposta é progressiva, liberal e contemporânea.”
“A liberdade de imprensa é absoluta, mas com restrições responsáveis e razoáveis. A autorrestrição é chamada de liberdade responsável”.
No Twitter, expressou o mesmo pensamento.
Para a ONG indiana Internet Freedom Foundation (IFF), as normas permitirão que o Governo controle − e não apenas regule − o que circula nas plataformas. A entidade atacou a regulamentação, que considera inconstitucional e capaz de afetar a liberdade de expressão no país. E apontou a diferença principal em relação à regulamentação anterior:
Pode ser coincidência, mas as normas foram publicadas logo após um confronto entre o governo indiano e o Twitter, há duas semanas. Instado a remover e restringir centenas de contas devido ao conteúdo relacionado a um protesto de fazendeiros, o Twitter não atendeu inteiramente ao que a administração pública determinou, preservando os perfis de jornalistas, ativistas e políticos.
As empresas de mídia digital não comentaram. Mas em matéria publicada sobre a nova lei pelo Financial Times, uma fonte “próxima a uma grande empresa de tecnologia dos Estados Unidos” disse que o movimento equivale a um mecanismo de censura.
“Para consertar os problemas desses setores, o governo adotou uma abordagem que traz os riscos do controle político e da censura”, disse ele.
Intermediários responsáveis, não apenas os autores
O conjunto de normas chama-se “Regras de Tecnologia da Informação − Diretrizes do Intermediário e Código de Ética da Mídia Digital 2021”. Elas atualizam as diretrizes que vigoravam desde 2011.
Os provedores são classificados como intermediários, divididos em dois grandes grupos, com regras diferentes para cada um. Em sua justificativa, o Governo aborda diretamente o ponto central da discussão sobre regulamentação de mídias sociais: se cabe à plataforma ou ao autor da postagem a responsabilidade pelo conteúdo.
Se notarmos a evolução dos intermediários de mídias sociais, eles não estão mais limitados hoje em dia a desempenhar o papel de intermediários simplesmente, tornando-se muitas vezes editores. As novas regras combinam um abordagem liberal com uma estrutura leve de autorregulação. Funcionam em conjunto com as leis e estatutos aplicáveis ao conteúdo online ou offline já existentes do país.
Com relação ao jornalismo, espera-se que os editores sigam a conduta jornalística do Conselho de Imprensa da Índia e o Código do Programa de acordo com a Lei da Rede de Televisão a Cabo, que já são aplicáveis à mídia impressa e à TV”.
O primeiro grupo coberto pela nova lei é formado pelas mídias sociais como Facebook, Instagram e Twitter e pelos os serviços de mensagem WhatsApp, Signal e Telegram.A administração ficou a cargo do Ministério de Eletrônica e Tecnologia da Informação.
O segundo bloco é formado pela mídia digital de notícias e plataformas de streaming como Netflix, Amazon Prime e Disney. A supervisão está a cargo do Ministério da Informação e Radiodifusão.
Sob o argumento de incentivar inovações e permitir o crescimento de novos intermediários de mídia social sem sujeitar plataformas menores a requisitos de conformidade significativos, o Governo indiano fez na lei uma distinção entre intermediários de mídia social e intermediários de mídia social significativos, com base no número de usuários. Os maiores − leia-se as grandes plataformas globais − estarão sujeitos a exigências e fiscalização mais pesada.
Prazos mais apertados
Todos eles, grandes ou pequenos, passam a ficar obrigados a remover conteúdo sinalizado como ilegal dentro de um prazo específico após serem notificados por ordem judicial ou por uma agência de fiscalização do próprio Governo. Esse é um dos pontos mais sensíveis, pelo risco de uso político da prerrogativa por uma administração que vive às turras com a imprensa e com oposicionistas.
Segundo análise da Internet Freedom Foundation, as regras anteriores estabeleciam que as empresas de mídia digital deveriam “agir dentro de 36 horas e, quando aplicável, trabalhar com o usuário ou proprietário de tais informações” para retirá-las. Não havia um cronograma definido para fornecer informações às agências governamentais.
Pelas novas regras, elas ficam obrigadas a concluir o processo de remoção dentro de 36 horas. E sujeitas a um limite de de 72 horas para fornecer informações ao governo.
No caso de conteúdo ofensivo de caráter sexual o prazo para remoção é de 24 horas, mediante notificação da própria pessoa ou de terceiros em seu nome, como forma de “garantir a segurança online a dignidade dos usuários, sobretudo mulheres”. Foi classificado como material ofensivo sexual aquele que “expõe as áreas privadas de indivíduos, mostra esses indivíduos em nudez total ou parcial, em ato sexual ou representação fictícia de prática sexual, incluindo uso de imagens transformadas“.
Atendimento ao usuário e presença no país
A lei obriga todas as plataformas a estabelecerem um sistema para receber reclamações, com um funcionário designado formalmente para tal. Seu nome e contatos devem ser fornecidos ao Governo. A ele caberá registrar as reclamações recebidas em 24 horas e solucioná-la em 15 dias a partir do recebimento.
Para as plataformas maiores, as exigências também são maiores, fechando o cerco para as que operam no país sem estruturas locais.
Elas deverão nomear um diretor de conformidade, responsável por garantir a obediência às regras. Precisarão também indicar um representante (chamado de Nodal contact) para interagir 24 horas por dia, 7 dias por semana com as agências encarregadas da aplicação da lei. E apontar um oficial residente de reclamações, a quem caberá executar as medidas estabelecidas pela justiça ou pelo governo.
Todos precisam ser residentes no país. E as empresas terão que manter escritório físico na Índia, com detalhes do gestor responsável e endereço de contato publicados de forma destacada no site ou aplicativo.
Elas deverão ainda publicar um relatório mensal de conformidade, enumerando detalhes das reclamações recebidas e as medidas adotadas, bem como informações sobre os conteúdos removidos por iniciativa própria.
Caso isso ocorra, as plataformas ficam obrigadas a notificar o usuário que teve a postagem retirada, explicando as razões. E devem dar a ele “uma oportunidade adequada e razoável” para contestar a ação adotada.
Origem das mensagens e a criptografia de ponta
A requisição pode ser feita por ordem judicial ou pelo próprio Governo, o que abre a possibilidade de uso político da prerrogativa para identificar ativistas, jornalistas críticos ou opositores.
A Internet Freedom Foundation observa que, embora essas regras sejam explicitamente direcionadas a infrações graves, dão margem à subjetividade, já que “motivo de ordem pública” é um conceito amplo, podendo servir como argumento para muitas demandas.
A lei estabelece que as plataformas não serão obrigadas a divulgar o conteúdo de mensagens eletrônicas, informações adicionais em relação ao autor ou informações relacionadas a outros usuários.
Na interpretação da IFF, no entanto, as Regras de Decodificação de Tecnologia da Informação (uma outra lei já em vigor no país) dá ao Governo poderes para exigir informações sobre o conteúdo da mensagem:
“Usando as duas leis em conjunto, o Governo quebrará qualquer tipo de criptografia ponta a ponta para saber quem enviou qual mensagem e também conhecer seu conteúdo. Além disso, esse requisito específico quebrará os protocolos existentes para a implantação de criptografia ponta a ponta que foi desenvolvida por meio de testes rigorosos de segurança cibernética ao longo dos anos!”, exclamou (o ponto é deles, não nosso) a Fundação em sua análise.
Verificação “voluntária” de usuários de mídia social
As empresas de mídia social maiores devem agora permitir que seus usuários na Índia verifiquem “voluntariamente” suas contas, usando qualquer mecanismo apropriado, incluindo o número de celular indiano. E fornecer uma marca visível e demonstrável identificando a verificação. A IFF viu com preocupação essa obrigatoriedade:
“Isso pode levar a um cenário em que o voluntário torne-se obrigatório, como é o caso de muitas outras tecnologias que foram introduzidas como ‘voluntárias’, mas acabaram se tornando obrigatórias de forma indireta. E teria graves implicações para o anonimato e a privacidade, que são essenciais para usuários das plataformas, como dissidentes políticos. Além disso, muito mais preocupante, sem uma lei de proteção de dados, isso significa que as entidades de mídia social coletarão dados de nossas identidades governamentais sem qualquer órgão regulador, como uma autoridade de proteção de dados, para garantir que sejam usados apenas para verificação”.
Jornalismo digital e streaming
No arrazoado apresentando a regulamentação de conteúdo aplicável ao jornalismo digital e ao streaming de vídeos, o Governo indiano cita “a preocupação generalizada sobre questões relacionadas a conteúdos digitais”:
“A sociedade civil, cineastas, líderes políticos (incluindo o primeiro-ministro), organizações e associações comerciais expressaram suas preocupações e destacaram a necessidade imperiosa de um mecanismo institucional apropriado. O Governo também recebeu muitas reclamações da sociedade civil e de pais solicitando intervenções. Houve muitos processos judiciais no Supremo Tribunal e nos Tribunais Superiores, instando o Governo a tomar medidas adequadas”.
As questões relacionadas aos segmentos de mídia digital, streaming e outros programas criativos na internet serão administrados pelo Ministério da Informação e Radiodifusão, mas sua arquitetura geral ficou subordinada à Lei de Tecnologia da Informação, que rege as plataformas digitais. O Governo referiu-se a consultas públicas e análise de leis adotadas ou em estudo em outros países, com Cingapura, Austrália, União Européia e Reino Unido.
Os sites de notícias ficaram obrigados a observar um conjunto de “Normas de Conduta Jornalística do Conselho de Imprensa da Índia e o Código do Programa sob a Lei de Regulamentação de Redes de Televisão a Cabo”. Na apresentação, o governo diz ser necessário para fornecer “condições equitativas entre o offline (impressos e TVs) já submetidos a códigos legais, e a mídia digital”.
A regulamentação estabelece um mecanismo de três níveis, em um sistema apresentado pelo governo como “autorregulação pelos editores com interferência governamental mínima”. Não é exatamente o que pensa a IFF, ao examinar as regras.
O primeiro nível estabelece que mídia digital de notícias e as plataformas de streaming implantem um mecanismo de reparação de reclamações e nomeiem um Oficial de Reclamações, residente na Índia, que tomará a decisão sobre cada reclamação recebida em 15 dias. Se o reclamante não receber uma resposta satisfatória dentro do prazo, pode apelar para o Nível II, ou seja, o órgão de autorregulação.
No segundo nível, o órgão de autorregulação é uma entidade independente, constituída por editores ou suas associações e dirigida por um juiz aposentado da Suprema Corte, um membro da Suprema Corte ou uma pessoa independente relevante da mídia, radiodifusão, entretenimento, direitos da criança, direitos humanos ou outros campos associados.
Ele terá o poder de advertir, censurar, admoestar ou repreender o editor, de exigir pedido de desculpas, de reclassificar avaliações ou até mesmo de censurar o conteúdo, conforme julgar necessário. Se o editor não cumprir a determinação, a questão pode ser encaminhada ao Governo no terceiro nível do sistema.
Para a IFF, mesmo neste nível já existe interferência governamental, devido à presença de representantes do Poder Judiciário ou de personalidades que possam ser favoráveis ao governo.
Mas no terceiro nível a ingerência do Governo é direta. Ele consiste em um mecanismo de supervisão da autorregulação, a cargo de um comitê interdepartamental composto por representantes do Ministério da Informação e Radiodifusão, Ministério da Mulher e Desenvolvimento Infantil, Ministério da Justiça e Justiça, Ministério do Interior, Ministério da Eletrônica e Tecnologia da Informação, Ministério da Assuntos Externos e Ministério da Defesa. Ou seja, o Governo inteiro.
Esse grupo avaliará reclamações sobre as decisões tomadas nos Níveis I e II, e tem o poder de anular ou modificar a decisão sob a justificativa de “prevenir a incitação à prática de um delito passível de conhecimento relacionado à ordem pública”.
Na opinião da IFF, embora espere-se que os editores se autorregulem no primeiro nível, as disposições são muito complexas para que a autorregulação seja efetivamente cumprida na prática:
“Qualquer pessoa tem o poder de fazer uma reclamação ao editor, e o editor deve responder dentro de 15 dias, sob o risco de censura. Para o usuário regular da internet, isso significa que a mídia digital terá que editar sua cobertura levando em conta a maneira arbitrária como as restrições excessivas são aplicadas, sobretudo no que diz respeito a notícias desfavoráveis ao Governo. Além disso, plataformas como Netflix, Amazon Prime e Disney + Hotstar serão forçadas a aderir a normas de censura semelhantes às que valem para em filmes off-line e conteúdo de televisão.”
A entidade observou também que as regras conferem poderes de emergência nos casos em que “nenhum atraso é aceitável”. O comitê poderá “emitir instruções para o bloqueio de conteúdo online a pessoas, editores ou intermediários no controle da hospedagem de tais informações, sem lhes dar oportunidade de serem ouvidos”, afirma a entidade.
Rigor maior do que em outros países
A Índia não é o único país atento ao conteúdo nocivo que circula pelas redes. Reino Unido e União Europeia publicaram recentemente suas propostas para conter discurso de ódio, pornografia, terrorismo e extremismo nas mídias sociais, a serem aprovadas depois de tramitar nos parlamentos de Londres e de Bruxelas.
As perspectivas de que venham venham a ser derrubadas são pequenas. Os danos causados pela desinformação e pelo extremismo na Europa estão amplamente documentados.
No Reino Unido, a lei baseia-se no instituto jurídico do duty of care, ou dever de cuidar, que dá ao Estado a responsabilidade de intervir se uma pessoa vulnerável está sob risco.
Mas enquanto a Europa e o Reino Unido debatem seus projetos em parlamentos, a India se antecipou publicando seu pacote fechado. E ao ir além do que outros no controle do jornalismo digital, pode tornar-se um modelo inspirador para países que veem na regulamentação de conteúdo uma boa oportunidade para calar adversários, como já fez a Turquia.
Há impacto também sobre os negócios de empresas digitais de todos os tamanhos. Em entrevista ao Financial Times, Salman Waris, sócio do escritório de advocacia de tecnologia TechLegis, disse que as novas regras criaram uma “carga adicional” para as empresas, que enfrentariam uma série de “problemas de conformidade”.
Ele acha que as regras precisam ser esclarecidas porque não deram detalhes ou especificações sobre a implementação, podendo levar a muita confusão.
Com certeza, confusão é o que não vai faltar.