O futuro dos cookies de terceiros − pequenos arquivos de texto que ficam gravados no computador de quem entra em um site e podem ser usados para identificar e armazenar informações sobre o visitante − tem desafiado a indústria a encontrar novos caminhos, devido aos questionamentos e regulamentações para assegurar a privacidade dos usuários. Mas não há unanimidade quando a esse futuro, que interessa diretamente à industria de mídia, já que a sustentabilidade financeira é impensável sem a publicidade digital.
Na quarta-feira (3/3), o Google deu mais um passo anunciando em seu blog que não vai criar formas de identificação alternativas para rastrear os usuários do Chrome.
Segundo escreveu David Temkin, diretor de gerenciamento de produtos, privacidade de anúncios e confiança da plataforma, as pessoas não deveriam ter que aceitar ser rastreadas na web para obter os benefícios de uma publicidade relevante. E os anunciantes não precisam rastrear consumidores individuais na web para obter os benefícios de desempenho da publicidade digital. Temkin apresenta então o plano:
“É por isso que, no ano passado, o Chrome anunciou sua intenção de remover o suporte para cookies de terceiros e por isso temos trabalhado com a indústria no Privacy Sandbox, a fim construir inovações que protejam o anonimato ao mesmo tempo em que continuem entregando resultados para anunciantes e editores.
Mesmo assim, continuamos a ter dúvidas sobre se o Google se juntará a outros na indústria de tecnologia de publicidade que planejam substituir cookies de terceiros por identificadores alternativos no nível do usuário. Hoje, tornamos explícito que, uma vez que os cookies de terceiros sejam eliminados, não construiremos identificadores alternativos para rastrear indivíduos enquanto navegam na web, nem os usaremos em nossos produtos”.
A reação
No Reino Unido, a reação foi imediata. A organização britânica Marketers for Open Web havia pedido em novembro passado ao órgão regulador de concorrência do país para impedir o lançamento da Privacy Sandbox − a tecnologia alternativa do Google para substituir os cookies − até que projetos de lei em tramitação entrassem em vigor. E ontem reagiu furiosa ao anúncio da plataforma global, acusando o Google de “insincero”, em um comunicado assinado em conjunto com o US Save Journalism project:
“A gigante da tecnologia já possui mais dados sobre mais pessoas do que qualquer outra organização no planeta. Na realidade, ela está apenas interrompendo o uso de cookies de terceiros para aprimorar seus próprios interesses comerciais. O Google precisa de nossos dados para vender seus anúncios. Esse é o seu negócio principal. Ele deixará de nos anunciar com base nos dados que possui? Não. Ele continuará a usar a vasta gama de dados que possui a partir de mais de 90% de todos os históricos de pesquisa e uso do navegador e coletados do uso de todas as suas propriedades”.
O comunicado aponta que a corporação não está dizendo que vai parar com todas as práticas de coleta de dados. E afirma que os maiores perdedores serão os veículos de notícias regionais, locais e hiperlocais com uma base de leitores primários comparativamente menor, que sofrerão uma perda dramática de receita de publicidade se forem proibidos de usar dados de terceiros na publicidade.
James Rosewell, CEO da MOW disse:
“Todos concordamos que a privacidade é importante. As mudanças propostas pelo Google e suas soluções não tratam da privacidade − e não funcionam.
Um foco real na privacidade envolveria separar os identificadores individuais usados para publicidade da identidade real dos usuários finais. Isso foi sugerido como uma solução pelo CMA (órgão regulador de concorrência britânico) no ano passado − mas o Google não está olhando para isso, pois faz com que todos os usuários “façam login” ou “inscrevam-se” e aceitem seus termos de mineração de privacidade, como acontece quando quem utiliza o Android faz login pagando o preço de entregar seus dados pessoais.”
Tecnologia Ufinied ID 2.0 é alternativa
O Washington Post seguiu por um outro caminho, que pode ser uma referência para a indústria jornalística, a tecnologia Unified ID 2.0 da empresa The Trade Desk. Ao noticiar a decisão, em dezembro, o Financial Times descreveu o movimento como “uma das mais observadas tentativas de encontrar um sucessor para os cookies de terceiros – os controvertidos rastreadores entre sites que a Apple baniu e que o Google eliminará gradualmente até 2022”.
Pelo sistema criado pela The Trade Desk, os internautas passarão a utilizar uma identidade única, vinculada ao número de celular ou endereço de e-mail, para fazer login em vários sites, permitindo o rastreamento de seus passos em dispositivos diversos. Desta forma será possível acompanhar quem viu um anúncio e identificar os sites que geraram mais resultados para o anunciante.
O jornal também oferecerá o Unified ID 2.0 para integração com mais de 100 sites que utilizam o Zeus Performance, uma das três ferramentas de monetização desenvolvidas internamente pelo Post que compõem o Zeus Technology Suite. Com isso, o jornal influencia diretamente outros veículos e posiciona-se como referência para a indústria.
Opiniões divergentes sobre o movimento do Google
Ao anunciar a decisão sobre os cookies, Temkin afirma no blog do Google ser difícil conceber a internet que conhecemos hoje − com informações sobre todos os assuntos, em todos os idiomas, ao alcance de bilhões de pessoas − sem a publicidade como seu fundamento econômico. Mas que a proliferação de dados de usuários individuais em milhares de empresas para oferecer às pessoas anúncios relevantes, obtidos por meio de cookies de terceiros, levou a uma erosão da confiança.
O texto afirma que o desenvolvimento de relacionamentos sólidos com os clientes sempre foi fundamental para as marcas construírem um negócio de sucesso, e que isso se torna ainda mais vital em um mundo que prioriza a privacidade:
“Continuaremos a apoiar relacionamentos primários em nossas plataformas de anúncios para parceiros, nas quais eles têm conexões diretas com seus próprios clientes. E vamos aprofundar nosso suporte para soluções que se baseiam nessas relações diretas entre os consumidores e as marcas e editores com os quais eles se relacionam.”
Ele diz que é papel de todos trabalhar pela privacidade:
“Manter a internet aberta e acessível para todos exige que todos façamos mais para proteger a privacidade − e isso significa o fim não apenas dos cookies de terceiros, mas também de qualquer tecnologia usada para rastrear pessoas individuais enquanto elas navegam na web. Continuamos comprometidos em preservar um ecossistema vibrante e aberto onde as pessoas podem acessar uma ampla gama de conteúdo com suporte de anúncios com a confiança de que sua privacidade e escolhas são respeitadas. Estamos ansiosos para trabalhar com outros na indústria no caminho a seguir”.
Mas não foi apenas a MOW a entender que o anúncio do Google não significa que a plataforma vai parar de coletar dados e segmentar anúncios. Em artigo no Vox, Sarah Morrison deu sua visão:
“O que Google vai parar de fazer é vender anúncios na web direcionados aos hábitos de navegação de usuários individuais, e seu navegador Chrome não permitirá mais cookies que coletam esses dados. Mas ainda rastreará e direcionará usuários em dispositivos móveis, e direcionará anúncios para usuários com base em seu comportamento em suas próprias plataformas, que constituem a maior parte de sua receita e não serão afetadas pela mudança. Em outras palavras, embora o anúncio tenha enormes implicações para a indústria de publicidade digital, provavelmente não terá para o próprio Google”, observou.
Mitchel Clark, do The Verge, tem opinião semelhante:
“Apesar de toda a conversa sobre privacidade, o Google deixa claro que não está tentando se livrar da publicidade direcionada em geral. A empresa quer apenas substituir os métodos mais invasivos do passado por um novo de seu próprio design, que ele chama de Privacy Sandbox. Parte do trabalho do Privacy Sandbox é ocultar o indivíduo dentro de uma grande multidão de ‘grupos’ com interesses semelhantes aos quais os anúncios serão direcionados”.
As turbulências no caminho da Privacy Sandbox
Atualmente, os sites na internet associam conteúdo a indivíduos usando IDs armazenados em cookies, pequenos pedaços de texto que são colocados em nossos computadores para lembrar informações como preferências ou nome de login. A tecnologia que rege esses cookies é baseada em padrões comumente aceitos, que não são controlados por nenhuma organização comercial.
O processo de substituição dos cookies pelo Google começou em 2019, quando a empresa revelou os planos de adotar uma tecnologia própria, a Private Google Sandbox, recebida com reservas por empresas de mídia e entidades. Em janeiro de 2020, o Google anunciou que esperava bloquear cookies de terceiros no navegador Chrome até 2022 − uma mudança que outros navegadores, como Safari e Firefox, fizeram anos atrás.
O pedido feito em novembro passado pela organização Marketers for Open Web (MOW), formada por empresas jornalísticas e de TI, para que a agência de controle de concorrência britânica (CMA) determinasse ao Google o adiamento da tecnologia Privacy Sandbox foi feito na mesma semana em que o Governo anunciou a criação de um órgão regulador para as plataformas digitais, que ficará sob o comando da mesma CMA.
O que diz a Marketers for Open Web
Na época, James Rosewell, da MOW, justificou a solicitação:
“Os reguladores mundiais perceberam que o Google está tentando tomar conta da web, dominando áreas como busca, publicidade online e tecnologias de navegador. No entanto, seus esforços para mitigar esse poder de monopólio serão em vão se o Google conseguir consolidar seu domínio com a introdução do Privacy Sandbox antes das alterações recomendadas pelos reguladores à lei que está sendo implementada.
Se o Google lançar essa tecnologia, ele efetivamente tomará conta dos meios pelos quais as empresas de mídia, anunciantes e empresas de tecnologia alcançam seus consumidores. E essa mudança será irreversível”.
O grupo é formado por “empresas do ecossistema online que compartilham a preocupação de que o Google esteja ameaçando o modelo da web aberta, vital para o funcionamento de uma economia online e de mídia livre e competitiva”. Diz que seu objetivo é garantir igualdade de condições para permitir competição e inovação, cabendo aos reguladores intervir para criar um ambiente onde tal resultado seja alcançável.
Rosewell sustenta que a introdução da tecnologia não tem nada a ver com privacidade, apesar do nome. E que ela seria simplesmente uma manobra para tirar a publicidade digital da web aberta e o Google ficar fora do alcance dos reguladores. O que traria prejuízos a empresas jornalísticas:
“As mudanças negarão aos editores de notícias o acesso aos cookies que eles usam para vender publicidade, reduzindo assim suas receitas em cerca de dois terços (segundo um relatório do próprio órgão regulador), gerando perda de empregos e afetando sobretudo a imprensa regional”.
A MOW observou à época que que a própria CMA, bem como o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e a Comissão Europeia, reconheceram que o Google tem poder dominante sobre as principais partes da cadeia de valor da web e estão no processo de desenvolver ou propor soluções competitivas de longo prazo para mitigar isso. A carta pede que a introdução da Privacy Sandbox seja adiada até que tais medidas sejam implementadas.
A organização diz que a Privacy Sandbox substitui alguns desses cookies por um sistema proprietário do Google em seu navegador Chrome e ferramentas de desenvolvedor Chromium, o que significa que o Google controlará efetivamente como os sites podem monetizar e operar seus negócios.
“Isso tem implicações importantes a respeito de como as empresas jornalísticas podem usar a publicidade online para financiar suas operações e quais fornecedores da cadeia de suprimentos eles podem escolher para operar em seus sites. Também forçará as pessoas a fazer login em um site para obter acesso a informações relevantes ou à maioria das notícias”, avaliou a MOW.
Para ela, isso significa que qualquer empresa que compra ou vende publicidade dependeria do Google para uma parte do processo, querendo ou não. E isso reduziria a capacidade dos players independentes de competir com a plataforma, fortalecendo o monopólio do comércio online.
“O impacto na prática é que mais informações pessoais precisam ser entregues a um número menor de oligopólios americanos de trilhões de dólares. Também terá impacto em uma grande variedade de outras tecnologias baseadas em cookies em áreas como detecção de fraude e segurança online”, disse a organização.
O que diz o Google
Ao anunciar a novidade, em agosto de 2019, Justin Schuh, diretor de Engenharia do Chrome, explicou a ideia da Privacy Sandbox em um post (cuja íntegra pode ser lida aqui) intitulado “Construindo uma internet mais privada”.
“A privacidade é fundamental para nós, em tudo o que fazemos. Então, hoje estamos anunciando uma nova iniciativa para desenvolver um conjunto de padrões abertos para melhorar fundamentalmente a privacidade na web. Estamos chamando isso de Privacy Sandbox”.
No texto ele defende que “a tecnologia que editores e anunciantes usam para tornar a publicidade ainda mais relevante para as pessoas agora está sendo usada muito além de sua intenção original de design – a um ponto em que algumas práticas de dados não correspondem às expectativas do usuário quanto à privacidade. Recentemente, alguns outros navegadores tentaram resolver esse problema, mas sem um conjunto de padrões acordado, as tentativas de melhorar a privacidade do usuário estão tendo consequências indesejadas”.
E que a ideia da Privacy Sandbox é “encontrar uma solução que realmente proteja a privacidade do usuário e também ajude o conteúdo a permanecer acessível gratuitamente na web. (…) Coletivamente, acreditamos que todas essas mudanças irão melhorar a transparência, a escolha e o controle”, afirmou.
Segundo o site de tecnologia Gizmodo, a ideia não foi tão bem recebida. Em um artigo publicado em agosto do ano passado, o editor sênior Adam Clark Estes questionou a ideia:
“O Google quer as duas coisas. Seu anúncio recente veio envolto em muitas palavras alegres sobre a importância da privacidade e como o bloqueio de cookies impulsionaria a prática de impressão digital do navegador, um método relativamente raro de rastreamento online que usa métricas como fontes instaladas ou tamanho da tela para criar perfis exclusivos de cada usuário.
Logo após esse argumento, no entanto, o Google aponta que bloquear os cookies também impediria os editores de veicular anúncios relevantes e ganhar dinheiro, o que ‘compromete o futuro de uma web vibrante’. O Google falha em admitir aqui que seu principal negócio é vender esses anúncios para editores. Assim, no que dois pesquisadores de Princeton estão chamando de ‘privacidade gasosa’, o Google insiste que acredita na privacidade do usuário, mas se recusa a tomar as medidas necessárias para proteger a privacidade do usuário”.
Não vai ser um caminho fácil para o Google. As pedras estão espalhadas por todos os lados.
Leia também