A audácia do Facebook de suspender links de notícias na Austrália em reação à nova lei de mídia obrigando ao pagamento de conteúdo, no dia 18 de fevereiro, colocou em pauta a dependência do setor em relação às plataformas digitais globais.
Governo e Mark Zuckerberg acabaram se entendendo e os links voltaram. Mas os dias de blecaute serviram para mostrar uma queda de até 20% no tráfego de sites de notícias no país em alguns momentos, segundo a empresa de monitoramento Chartbeat.
A suspensão foi vista por muitos como um experimento do que pode acontecer a uma empresa de mídia sem o Facebook. Mas não é o único. Na vizinha Nova Zelândia, uma outra experiência vem mostrando que a dependência pode ser menor do que se imagina.
A CEO que comprou a empresa por 1 dólar
Sair do Facebook não é a única ousadia na história recente do Stuff. Em maio de 2020, quando a devastação trazida pela pandemia ao jornalismo provocava demissões, quedas de tiragem e fechamento de títulos em todo o mundo, o Stuff foi salvo da falência ao ser comprado por sua própria CEO, uma jornalista que começou na casa como repórter e fez carreira em grandes organizações globais, como Financial Times e Reuters, tendo atuado como correspondente em Londres.
Deu certo. O Stuff não fechou, equilibrou as contas e é a empresa que mais emprega jornalistas no país, com mais de 400 funcionários produzindo notícias para o portal stuff.co.nz e para outros jornais como Neighbourly, The Dominion Post, The Press, Waikato Times, Sunday-Star Times e TV Guide. Uma equipe leal à nova chefe, com boa parte dela tendo aceitado um corte de 15% nos salários para atravessar o pior da crise. Logo após a compra ela disse:
“Minha iniciativa (de comprar a empresa) é melhor do que não fazer nada. Não podemos acabar imediatamente com os desafios da mídia neste momento, mas assim temos mais chances de sucesso.”
Mesmo precisando desesperadamente recuperar as finanças do Stuff, ela decidiu em julho passado abrir mão do tráfego e da receita em potencial gerada pelo Facebook, onde o jornal tinha quase 1 milhão de seguidores, e mais 134 mil no Instagram. Na mesma época, outras grandes empresas globais também faziam boicotes à plataforma.
O Stuff apostou na confiança do público e no engajamento direto. Simultaneamente à saída do Facebook, lançou um programa de contribuições dos leitores semelhante ao do The Guardian. Os maiores picos de doações foram relacionados à cobertura da pandemia, ao projeto Our Truth (um pedido de desculpas pela cobertura histórica em relação a minorias) e à decisão de sair do Facebook.
Boucher diz não se arrepender da decisão de abandonar a rede social. Em uma entrevista ao Instituto Reuters para estudos do jornalismo, em fevereiro, a CEO contou como tem sido a experiência, mostrando que é possível sobreviver sem a plataforma. Ela conversou com Meera Selva, diretora do instituto, para uma série de webinars sobre jornalismo global. Aqui os principais pontos da conversa:
Stuff já vinha reduzindo parceria desde 2019
Boucher contou que em março de 2019, após o ataque terrorista a uma mesquita na cidade neozelandesa de Christchurch, transmitido ao vivo pelo Facebook, o Stuff considerou “profundamente insatisfatória” a resposta da gigante digital ao caso que chocou o mundo. Disse que naquele momento o jornal decidiu parar de impulsionar seu conteúdo na plataforma, porque não queria apoiar quem havia facilitado a exposição pública da violência.
“Essa ação teve efeito zero em nosso tráfego. Estávamos preparados para uma queda na audiência, mas isso não ocorreu. E nos fez perceber que devemos pensar mais sobre nossas decisões, em vez de comprar a ideia de que você é obrigado a estar em todas as plataformas de mídia social. ”
Tráfego no site cresceu 5% em 2020
A CEO disse que o número de visitantes únicos do Stuff cresceu 5% em 2020 em comparação ao ano anterior. No entanto, lembra que foi um ano de notícias fortes, e que o justo seria considerar que não houve de fato um crescimento significativo, e sim uma estabilidade:
“Levando em conta que as eleições gerais e a pandemia no país poderiam ter gerado um crescimento maior, acreditamos que estar fora do Facebook provavelmente nos custou entre 5% e 10% de aumento no tráfego. Mas não foi desastroso de forma alguma. Nosso tráfego direto e acessos provenientes de busca aumentaram. Mas ainda observamos entre 10% a 11% do tráfego sendo trazido organicamente pelo Facebook, porque os leitores compartilham links de matérias em seus próprios feeds de notícias.”
Preocupação é com usuários que se informam pelo Facebook
Sinead disse que as métricas mostram que o Stuff não está conseguindo chegar bem ao público das ilhas do Pacífico e Maori, que antes acessavam o jornal por meio de seus feeds de notícias:
“Do ponto de vista jornalístico, questionamos se estaríamos falhando em nossa missão ao não alcançar determinados grupos da população com notícias relevantes como as da Covid-19, por exemplo.”
A CEO disse ter entrado em contato com o Facebook para discutir esse problema, e que ainda estão em negociações sobre como poderiam continuar a alcançar populações carentes de informação de qualidade com conteúdo de notícias confiáveis.
“A resposta inicial da plataforma foi de que poderiam nos ensinar a alcançá-los com segmentação paga. Mas por que devemos pagar para ajudá-los a resolver seu problema de desinformação? Deve haver uma maneira, que não seja a segmentação paga, de levar o jornalismo de qualidade a pessoas que podem estar vendo desinformação. Não houve muita reação do Facebook, pois a Nova Zelândia não é realmente o centro de seu universo. Acho que eles entenderam nosso ponto de vista, mas Mark Zuckerberg não me ligou, não. ”
“Se o jornalismo não conseguir prosperar sozinho, não temos futuro”
Após a compra, no ano passado, o Stuff redefiniu suas métricas de sucesso para concentrar-se no crescimento da confiança do público como uma missão central.
“Isso deu aos nossos jornalistas a chance de se perguntarem: ‘Por que estou fazendo este trabalho? Isso vai gerar confiança?’. Conseguimos lançar projetos como o Our Truth, um revisão de todo o nosso conteúdo nos últimos 160 anos para avaliar se tinha sido racista. Isso levou-nos a fazer um pedido público de desculpas pelas falhas históricas em nossa cobertura.”
CEO encoraja outros a seguir exemplo
Sinead diz que quer sustentar, nutrir e desenvolver o jornalismo, mas que isso tornou-se cada vez mais difícil em um ambiente de informação em constante mudança.
“Temos um conjunto rígido de regras a seguir e enfrentamos plataformas que não operam com nada disso. E ainda controlam o público, a tecnologia e publicidade. Eu adoraria ver parte desse poder devolvido ao público”.
A CEO reconhece que o Stuff tem uma posição privilegiada para fazer a experiência por estar em um país pequeno e já contar com forte presença digital, o que facilita o sucesso da iniciativa de sair do Facebook. Mas encorajou outros meios de comunicação a experimentarem deixar as plataformas:
“Estávamos preparados para uma grande queda e isso não aconteceu. Em vez disso, ganhamos apoio enorme do público, mais confiança e uma equipe de redação mais feliz, que não está mais sendo submetida às seções de comentários indisciplinados do Facebook.
Mas uma pergunta permanece: o que fazer com o público que pode ter ficado para trás no Facebook?”
A entrevista completa (em inglês) pode ser assistida aqui.
Como foi a saída da plataforma
A decisão do Stuff foi formalizada por um e-mail interno enviado a toda a equipe e comunicada ao público em matéria veiculada no próprio jornal, informando que estavam encerrando todas as atividades no Facebook e em sua subsidiária Instagram, com efeito imediato e valendo para todos os títulos da empresa. O grupo não saiu do Twitter, sob a justificativa de que as atenções iniciais estavam voltadas para a plataforma maior e mais influente.
O e-mail mencionava a interrupção de anúncios na plataforma desde 2019 por causa do episódio de Christchurch, pelo fato de o jornal não querer desde o momento dos ataques terroristas colaborar financeiramente para uma plataforma que lucrava com a publicação de discurso de ódio e violência.
“Este é um teste inspirado por princípios mais do que qualquer outra coisa”.
A popular primeira-ministra Jacinda Ardern chegou a ser questionada em uma coletiva de imprensa sobre se o movimento do Stuff interferiria de alguma forma em seu relacionamento com o Facebook. Ela não demonstrou grande simpatia pela gigante digital, mas registrou a importância da plataforma para os políticos dialogarem com a população.
Alguns meios de comunicação têm a capacidade de compartilhar informações, de se envolver com o público em sua própria plataforma – o Stuff é um exemplo. Mas os políticos não têm a mesma opção. Parte de nosso trabalho é conversar com os eleitores, garantindo que as pessoas tenham uma forma de dialogar conosco. Mas vejo argumentos fortes para que as plataformas mudem, e vou continuar a cobrar responsabilidade delas”.
O chefe do programa de jornalismo da Massey University, James Hollings, disse na época duvidar que o boicote ocasionaria impacto negativo sobre os leitores e a receita de Stuff, como de fato não aconteceu.
“O Stuff está sendo inteligente ao se posicionar como um veículo de notícias com princípios. E é grande o suficiente para não precisar do Facebook para atrair público”.
Hollings observou que a iniciativa do grupo poderia não fazer diferença financeira para o Facebook, mas o simbolismo disso seria capaz de gerar um efeito cascata no jornalismo:
“ O Facebook não pode mais negar que é um editor de conteúdo, e isso implica em responsabilidade social. Quer gostem ou não, eles são editores. É simplesmente o maior jornal do mundo. E as pessoas estão começando a acordar para isso.”
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