As acusações de racismo feitas pelo príncipe Harry e por Meghan Markle na entrevista a Oprah Winfrey, atribuindo a preconceito racial a perseguição dos tabloides, abriram uma crise no jornalismo do país. O setor discute agora a céu aberto se é ou não racista e inclusivo. Uma discussão séria, em um país cuja pesada herança colonial é cada vez mais questionada depois dos protestos do movimento Black Lives Matter.
A crise atingiu o clímax com uma carta aberta publicada no Medium na quarta-feira (10/3). No documento, os mais de 200 jornalistas negros e integrantes de minorias que o assinam criticam o que chamaram de “indústria em negação”. Eles apontam preconceito na cobertura envolvendo não apenas negros, mas também outras minorias religiosas e étnicas. E também denunciam a falta de diversidade dentro das redações e a baixa representatividade das mulheres.
O manifesto foi uma reação à nota emitida na segunda-feira (8/3) pela Sociedade dos Editores (SoE), que reúne mais de 400 membros. Assinado pelo seu diretor-geral, Ian Murray, o texto negava haver racismo na imprensa do país.
Logo depois da reação, ele teve que renunciar porque o levante angariou apoio de todos os lados, incluindo executivos de grandes redações como as do Financial Times e The Guardian.
Murray deixou o cargo dizendo não concordar que a nota inicial da Sociedade por ele assinada − aparentemente em voo solo, pois conselheiros juntaram-se ao coro dos críticos − tenha de alguma forma defendido preconceitos. Mas admitiu que poderia ter sido mais claro na condenação ao racismo. O diretor assumiu a culpa e disse estar se afastando para que a entidade comece a reconstruir sua reputação.
Não vai ser fácil. Vários jornalistas importantes solidarizaram-se com os críticos à posição divulgada por Murray. Eles começaram um boicote ao National Press Awards, marcado para 31 de março e oferecido pela Sociedade dos Editores, que indicou apenas brancos nas suas listas de finalistas. A âncora da ITV News Charlene White anunciou que não mais apresentará a cerimônia. Outros jornalistas retiraram seus nomes e trabalhos da lista de inscritos.
Na tarde de quinta-feira (11) foi a vez do jornal Daily Mirror anunciar que deixaria de concorrer ao prêmio, em que foi indicado na categoria Diversidade, assim como o Bureau of Investigative Journalism. A editora do Mirror, Alison Philips, disse que o jorna “está dando passos positivos para melhorar a diversidade em nossa redação, mas ainda tem muito mais a fazer”, e que participaria dos debates com a Sociedade dos Editores para melhorar a situação em toda a indústria.
Um dos principais nomes que se manifestaram contra a posição de negar preconceito na mídia foi Eleanor Mills, que até o ano passado era diretora editorial do Sunday Times. Ela e é uma proeminente figura na defesa de mais espaço para mulheres e minorias no jornalismo e revelou que muitos da diretoria da Sociedade − da qual ela é conselheira − estavam “zangados”.
Outro membro do conselho da SoE, Oly Duff, disse que a defesa incondicional foi inapropriada. Em um artigo de opinião no jornal i ele observou que generalizações não refletem o conjunto da mídia do país, que inclui os tabloides e outros veículos que não adotam as mesmas práticas. Mas acha que “já passou da hora de a mídia britânica repensar sua cobertura envolvendo questões raciais.”
“No jornalismo, isso significa refletir nas redações e nas coberturas a realidade dos nossos leitores e de suas comunidades. Para isso, é preciso encarar o problema em cada ponto da carreira de um profissional: desde a divulgação da vaga, passando por recrutamento proativo de minorias, oportunidades iguais de carreira e e de indicação para postos de liderança”.
O manifesto: uma indústria em negação
Assinado por mais de 200 jornalistas negros e representantes de minorias raciais e étnicas de várias redações (muitos do The Guardian, mas também de organizações como Channel 4, Condé Nast e Newsweek), o manifesto vai além de uma reclamação vaga. Ele cita pesquisas e fatos que sustentam a denúncia de preconceito no jornalismo, tanto na cobertura quanto na composição das redações, e clama por mudanças.
“Nós, os jornalistas negros abaixo assinados, trabalhando em organizações de mídia do Reino Unido, deploramos e rejeitamos a declaração emitida pela Sociedade de Editores negando a existência de racismo e intolerância na imprensa do Reino Unido, em sua resposta à entrevista de Oprah Winfrey com o duque e a duquesa de Sussex.
Embora os comentários de Meghan tratem de suas próprias experiências pessoais de tratamento discriminatório, eles refletem a realidade deprimente de como pessoas de origens étnicas negras, asiáticas e minoritárias são retratadas diariamente pela imprensa do Reino Unido.
A Sociedade diz que as acusações “não contêm evidências que as suportem”, uma ignorância deliberada não apenas quanto ao tratamento discriminatório recebido por Meghan, mas também ao conferido a outros integrantes de minorias.
Por exemplo, em 2016, a agência de refugiados da ONU encomendou uma pesquisa à Cardiff University que mostrou que a cobertura da imprensa britânica era “excepcionalmente agressiva em suas campanhas contra refugiados e migrantes”.
Também em 2016, dois jornais ingleses foram acusados de ‘fomentar o preconceito’ em uma reportagem sobre o aumento da violência racista e do discurso de ódio no Reino Unido em um estudo da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI).
Uma pesquisa do MCB em 2018 mostrou que a maior parte da cobertura de muçulmanos nos meios de comunicação britânicos tem um viés negativo, concluindo que as notícias na grande mídia estão contribuindo para a islamofobia. Tem havido numerosos exemplos de queixas contra jornais por reportagens imprecisas contra muçulmanos, muitas vezes incluindo falsas acusações de extremismo.
Esses são apenas três exemplos, mas há muito mais evidências, se a Sociedade de Editores tivesse escolhido avaliar os fatos em vez de emitir uma resposta automática.
Em um momento em que muitas indústrias e empresas estão empenhadas em acertar as contas com racismo, motivadas pelos protestos Black Lives Matter, acreditamos que a Sociedade teria usado melhor seu tempo para refletir sobre a falta de diversidade, particularmente nos escalões mais altos da mídia do Reino Unido, fato que contribui para as narrativas negativas que foram destacadas.
Um estudo de 2016 da City University relatou que apenas 0,4% dos jornalistas britânicos são muçulmanos, muito abaixo da parcela de 5% que representam na população do Reino Unido. E apenas 0,2% são negros, em comparação com 3% da população do país. O Conselho Nacional para a Formação de Jornalistas afirma que 94% dos jornalistas são brancos, em comparação com 86% da população da Inglaterra e País de Gales.
Uma pesquisa da Women in Journalism revelou que apenas uma das 111 fontes que foram citadas nas primeiras páginas dos jornais britânicos em uma semana era negra. Das 174 matérias assinadas naquela semana, nenhuma era por um profissional negro e apenas seis tinham sido escritas por repórteres de outras minorias étnicas.
A Sociedade de Editores tem um histórico de pouca diversidade em relação a seus prêmios − muitas vezes reconhecendo as mesmas pessoas ano após ano e produzindo listas de finalistas exclusivamente compostas por homens brancos. Mesmo neste ano de Black Lives Matter e de impacto desproporcional de Covid-19 sobre as minorias, não indicou uma única pessoa não-branca em nenhuma de suas listas de finalistas.
Além disso, a lista de finalistas do prêmio “Impulsionando a Diversidade” inclui algumas organizações de péssima reputação no que tange a denunciar pessoas de origem étnica negra, asiática e de minorias.
A Sociedade de Editores deveria ter usado os comentários dos Sussex para iniciar uma discussão aberta e construtiva sobre a melhor maneira de prevenir a cobertura racista no futuro, incluindo a falta de representação na mídia do Reino Unido, particularmente em nível de comando. A recusa generalizada de aceitar que existe qualquer intolerância na imprensa britânica é ridícula, presta um péssimo serviço aos jornalistas negros e mostra uma instituição e uma indústria em negação.”
Falta de diversidade na TV
O que o manifesto aponta não é novidade. O Reino Unido tem um programa chamado Diamond, que acompanha a representatividade de negros e minorias étnicas, mulheres, LGB, transgêneros, maiores de 50 anos e pessoas com necessidades especiais nas telas e nos bastidores das TVs.
O relatório deste ano, cobrindo 2019/2020, mostrou que tanto os maiores de 50 anos como as pessoas com necessidades especiais, apesar dos pequenos avanços verificados, continuaram sub-representados nas telas e por trás das câmeras. O mesmo aconteceu com os transgêneros, só que para este grupo foi pior, pois viram sua participação diminuir ainda mais no vídeo.
O acompanhamento, que vem sendo feito desde 2016, é uma iniciativa notável, que vem colhendo frutos. Ele é apontado como o primeiro sistema de coleta de dados online a ter sido implantado no mundo para monitorar e apontar caminhos para aumentar a diversidade e a inclusão de uma indústria. Mas os resultados indicam que há um longo caminho a percorrer.