Nem todos são fãs do estilo de Galvão Bueno. Mesmo para os menos simpáticos a ele, porém, é difícil não reconhecer sua habilidade em fazer pessoas como eu, que não ligavam muito para automobilismo, prestarem atenção na TV com aquela narração eletrizante tomando conta da casa nas manhãs de domingo.
Mas Galvão não é o único no mundo com esse dom. Outro mestre em engajar até os desinteressados no esporte foi o britânico Murray Walker, que morreu no sábado (13/3), aos 97 anos. Para quem gosta de jornalismo esportivo e de história, ele deixou uma biografia que passeia por mais de 50 anos de F1 pelas lentes privilegiadas de quem observou as grandes mudanças no esporte e conheceu de perto suas maiores personalidades.
Aclamado como a voz da Fórmula 1 no Reino Unido, onde o esporte é paixão nacional, Walker narrou corridas entre 1949 e 2001 para BBC, ITV e Channel4. Começou no rádio em Silverstone, onde Senna viria a se consagrar.
O simpático e sorridente locutor não economizava entusiasmo ao transmitir as longas corridas, nem sempre eletrizantes da primeira à última volta. Um de seus truques era ficar de pé na cabine de transmissão para falar mais alto. Chegou a dizer em uma entrevista:
“Eu pareço um entusiasta um pouco exagerado, mas afinal é um esporte muito empolgante”.
Empolgante ou não, ele tinha a fórmula para fazer o esporte parecer empolgante. E não era por acaso, como revelou em uma entrevista em 2011:
“Eu sempre considerei como minha função não apenas informar, mas também entreter. Eu sabia que 95% do meu público não estavam interessados no diâmetro do parafuso. O que eles queriam era compartilhar a emoção que eu tinha a sorte de estar testemunhando.
E sorte é a palavra: meu trabalho me levou a conhecer o mundo e conviver com as pessoas que se destacaram no esporte. Tive uma sorte incrível. ”
O piloto David Coulthard disse uma vez que “ele fazia até a corrida de bicicleta mais chata parecer interessante”.
Motos antes dos carros
Carros não foram a primeira paixão de Walker. Quando jovem assistia a corridas de motocicleta na Ilha de Man, que seu pai Graham Walker disputou entre 1920 e 1934, tendo conquistado o título de campeão britânico. Ele nunca pilotou, mas dirigiu tanques na Segunda Guerra Mundial. Combateu na Batalha de Reichswald, na Alemanha, e chegou ao campo de concentração de Belsen logo depois da libertação.
Foram 52 anos narrando corridas, mas ele só conseguiu o emprego fixo na BBC em 1978. Chegou a ter uma carreira bem-sucedida em publicidade.
Um dos comentários mais famosos de Walker, lembrado em matérias sobre a sua morte, veio quando Damon Hill ganhou o campeonato mundial no Japão em 1996.
“Tenho que parar porque estou com um nó na garganta”.
Quem lembra do Galvão narrando as vitórias de Senna sabe bem o que é isso.
Murray Walker fez dupla com alguns pilotos nas transmissões, como James Hunt e com Martin Brundle, que o homenageou carinhosamente. Galvão Bueno também fez uma bonita homenagem nas redes sociais.
Os “murreyrismos”
Murray Walker entrou para a história da narração esportiva como como um profissional exemplar, que se preparava cuidadosamente para as corridas, pesquisando fatos e estatísticas. Em 2009 chegou a ser eleito “o maior comentarista esportivo de todos os tempos” em uma pesquisa realizada por fãs britânicos de esportes.
Isso não o livrou de ser notabilizado também gafes ou comentários um tanto óbvios, que viraram piada, apelidados de “murreyisimos”. Nos obituários, mutos desses exemplos foram lembrados, incluindo um que se refere a Nelson Piquet.
“Esta foi uma grande temporada para Nelson Piquet, como ele agora é conhecido, e sempre foi.”
“Com metade da corrida terminada, ainda falta metade da corrida.”
“E agora com licença enquanto eu me interrompo.”
“Não há nada de errado com o carro, exceto o fato de que está pegando fogo.”
“A liderança agora é de 6,9 segundos. Na verdade, são pouco menos de sete segundos. ”
“Esta será a primeira vitória da Williams desde a última vez que uma Williams venceu.”
“Stewart tem dois carros entre os cinco primeiros − Magnussen quinto e Barrichello sexto.”
“E aí vem Damon Hill no Williams. Este carro é absolutamente único − exceto pelo que está atrás dele, que é exatamente o mesmo. ”
“A diferença entre os carros é de 0,9 de segundo, o que é menos de um segundo.”
“E os primeiros cinco lugares são preenchidos por cinco carros diferentes.”
“Este é um circuito interessante, porque tem inclinações. E não só para cima, mas também para baixo.”
“A parte mais importante do carro é a porca que segura a roda.”
“As esperanças de Tambay, que antes eram nulas, agora são absolutamente nulas.”
“E não há danos ao carro. Exceto ao próprio carro.”
“Essa é a primeira vez que ele largou da primeira fila em um Grande Prêmio, depois de ter feito isso no Canadá no início deste ano.”
“Como você pode se chocar contra uma parede sem que ela esteja lá, está além da minha compreensão!”
“E Damon Hill está seguindo Damon Hill.”
“Michael Schumacher está liderando Michael Schumacher.”
“Jean Alesi é 4º e 5º.”
“Villeneuve está agora doze segundos à frente de Villeneuve.”
“É a volta 26 de 58, o que, a menos que eu esteja muito enganado, está no meio do caminho.”
“Ele obviamente fez um pit stop. Digo, obviamente, porque não consigo ver nada.”
“Ele está exatamente 10 segundos à frente, ou mais aproximadamente, 9,86 segundos.”
“Olhando para os quatro primeiros, o significativo é que Alboreto é o quinto.”
“Ele é o único homem na pista, exceto pelo carro.”
“E Michael Schumacher está realmente em uma posição muito boa. Ele está em último lugar.”
“Isso é história. Eu digo história porque aconteceu no passado.”
“Tudo acontece nas corridas de Grande Prêmio, e geralmente acontece.”
Neste vídeo estão algumas de suas tiradas mais célebres. Ele começa dizendo que não cometia erros, mas sim fazia profecias que imediatamente acabavam se demonstrando erradas.
As gafes viraram marca registrada. Mas um erro cometido ao narrar um lance envolvendo Rubens Barrichello, quando Walker trabalhava para a ITV, acelerou o fim da carreira. No Grande Prêmio da Alemanha de 2000, o locutor disse erroneamente que o piloto brasileiro havia batido, quando na verdade o acidente era com seu companheiro de equipe, Michael Schumacher .
No dia seguinte, o tabloide Daily Mail publicou uma dura matéria criticando a performance do narrador. Ele pediu então à ITV para se desligar, mas foi convencido a ficar por mais uma temporada. Acabou permanecendo até o GP dos Estados Unidos de 2001.
Um de seus bordões mais famosos foi “A menos que eu esteja muito enganado…”, que acabou virando título de sua autobiografia. Mas em uma de suas frases famosas, talvez ele não estivesse tão errado assim. Disse Murray:
“Senna em primeiro, Prost em segundo e Berger em terceiro − isso compõe os quatro primeiros”.
Seria uma alusão velada a Senna valer por dois?
Biografia que é um passeio por 50 anos de F1
A autobiografia “A menos que eu esteja muito enganado…. ” está disponível na Amazon e em outras livrarias online.
O locutor escreve sobre sua infância e a influência que o pai teve em sua carreira. Ele fala também sobre as transformações na F1 nos últimos 50 anos, em especial as questões de segurança que vieram à tona após a trágica morte de Ayrton Senna, que ele presenciou.
Sua parceria com o piloto James Hunt dividindo as transmissões é tema de anedotas hilárias. O livro reúne também suas opiniões sobre lendas do esporte como Stirling Moss, Jackie Stewart, Damon Hill e Michael Schumacher.
E histórias de corridas célebres, como o triunfo de James Hunt sobre Niki Lauda em 1976 e a disputa entre Ayrton Senna com Alain Prost em 1992, ano em que o título acabou nas mãos de Nigel Mansell.
A apresentação do livro diz que ele foi o torcedor da F1 que por acaso recebeu as chaves da cabine de transmissão e nunca quis devolvê-las.