Acostumados a estar em lados opostos do espectro político, dois grandes jornais britânicos trocaram farpas nos últimos dias por outro motivo: a ideia de remunerar os jornalistas com base em métricas como a audiência de suas matérias e os cliques para venda de assinaturas a partir delas.
O projeto é do Daily Telegraph, alinhado ao Partido Conservador. E ganhou destaque nas páginas do The Guardian, de esquerda, desencadeando intenso debate nas redes sociais e nos meios jornalísticos sobre o risco de estimular o sensacionalismo e de prejudicar quem escreve sobre temas menos populares, que passaria a ganhar menos do que colegas escalados para grandes pautas.
O Guardian teve acesso a um e-mail enviado por Chris Evans, editor do Telegraph, à equipe da redação, na semana passada, parabenizando pelos resultados obtidos. No final, o editor revelava a possibilidade de, “no devido tempo”, vincular a remuneração às medições do sistema Stars, que pontua matérias com base em cliques e assinaturas geradas e destina-se a apoiar o jornal em suas metas comerciais.
Em matéria publicada no dia 15/3, o Guardian disse que a possibilidade “alarmou e consternou” os profissionais do jornal, que temem o risco de “distorcer seriamente as prioridades editoriais”. E que vários teriam manifestado abertamente a indignação em reuniões internas.
O assunto tomou conta das redes sociais, onde Evans contestou a matéria do concorrente e tentou desfazer a má impressão. Disse que o Guardian tinha “entendido tudo errado”, e que, mesmo tendo explicado ao repórter, a matéria não refletia a real intenção.
O editor afirmou que as análises do Telegraph “destinam-se a estabelecer o que os leitores inteligentes pagarão e pelo que continuarão a pagar, o que é oposto de clickbait”. E sugeriu que o Guardian é que tinha feito uma matéria clickbait.
Nos debates via Twitter, Evans teve que responder a críticos que associaram algumas das matérias bombásticas recentes do Daily Telegraph com a tentativa de gerar audiência. Uma delas, que havia saído no mesmo dia, é a que traz fotos inéditas de Shamima Begum, jovem que tenta voltar para o Reino Unido depois de ter fugido para se unir ao Estado Islâmico, sem véu e com aparência ocidental.
Programa Stars no centro da controvérsia
O Stars é um programa utilizado pelo Daily Telegraph para alcançar sua ambiciosa meta de 1 milhão de assinaturas até 2025. Dan Silver, diretor de inovação do jornal, também entrou no debate, ironicamente “agradecendo” ao The Guardian por ter popularizado seu projeto.
Mas a coisa não está tendo muita graça.
Segundo o Guardian, o editor do Daily Telegraph escreveu em sua carta que “parece justo que aqueles que atraem e retêm mais assinantes sejam os mais bem pagos”, mas admitiu que resolver os detalhes seria “complicado”, então “não estamos prontos para fazer isso… ainda”.
Sem citar nomes, o Guardian revelou conversas de bastidores com jornalistas do Telegraph. Um deles teria dito que depois da publicação da matéria os executivos “tentaram convencer a todos de que é apenas uma ideia experimental, nada muito importante”.
Outro contou que todos estavam revoltados, sentindo o risco de seu trabalho vir a ser comprometido, e que esperavam ser “apenas mais uma das ideias malucas que acabam no lixo”. Um terceiro levantou o risco de criar uma casta de privilegiados na redação:
“Se você está escrevendo grandes matérias, notícias políticas ou cobrindo o coronavírus, ou se é famoso, alcançará números altos de audiência. Mas a maioria dos repórteres está à mercê dos editores e não é culpa deles se estão recebendo pautas chatas. E agora isso afetará seu pacote salarial”.
O Guardian afirma ter visto também conversas via WhatsApp refletindo esse mesmo sentimento, com a equipe atacando o sistema como confuso, injusto e capaz de desencorajar um bom trabalho.
No e-mail citado pelo The Guardian, Evans procurou tranqüilizar a equipe sobre os planos. Disse que “os artigos com boa pontuação no Stars variam de novos formatos que usam palavras com imagens de maneiras originais até formatos consagrados pelo tempo, como página de texto. O que todas essas matérias têm em comum é a qualidade. Eles são obviamente imaginativas, inteligentes e distintas”.
Algumas das opiniões anônimas reproduzidas pelo The Guardian revelam diversos ângulos sobre o projeto:
“Ele pode falar o que quiser, mas a realidade é que as assinaturas são movidas pelas histórias que fazem as pessoas espumarem pela boca. Isso irá deformar seriamente nossas prioridades editoriais”.
“A ideia de que sou punido com uma determinada pauta, e enquanto isso, um colunista escrevendo sobre a cultura do politicamente correto ganha um bônus é realmente irritante. Quem faz críticas literárias ou matérias sobre meio ambiente está ferrado.”
“É grotesco. O comissionamento algorítmico vinculado ao pagamento é um crime contra o jornalismo. Isso derrubará o Telegraph em um ralo clickbait.”
O sindicato também não gostou. Ao Guardian, Michelle Stanistreet, secretária-geral do Sindicato Nacional de Jornalistas do Reino Unido, disse que a medida “mostra pouca consideração pela importância do jornalismo de qualidade” e “desmoralizaria maciçamente os jornalistas”. Ela foi dura ao comentar a ideia:
“O plano do Telegraph de introduzir a pontuação clickbait para pagar e recompensar jornalistas é insensível e mostra pouca consideração pela importância do jornalismo de qualidade. Para uma empresa jornalística que pretende atuar sob altos padrões jornalísticos, esta é uma jogada tola que irá minar sua reputação e desmoralizar os jornalistas cujo trabalho é o cerne do negócio.”
Não é a primeira controvérsia envolvendo métodos administrativos do Daily Telegraph. Em 2016 o jornal instalou rastreadores de movimento nas mesas dos repórteres, sob o argumento de medir o uso de energia. Mas a equipe não gostou da vigilância que mostraria quem estava ausente da mesa e por quanto tempo, levando ao fim da experiência depois de matéria publicada pelo BuzzFeed.
Desconforto
Mesmo sem vinculação ao pagamento, o Stars não é uma unanimidade. Segundo o The Guardian, profissionais da casa já se sentem desconfortáveis com um sistema que permite que seus chefes vejam um controle que classifica quem lidera os comentários em cada artigo, o tempo que os leitores passam em uma matéria ou o número de visualizações, entre outras métricas.
Chris Evans discorda. Para ele, o sistema que destaca um jornalismo de qualidade é uma das muitas tentativas nas redações, inclusive no Guardian, de entender o que os leitores mais valorizam. Os defensores de tal abordagem argumentam que é uma questão de justiça dizer que os jornalistas mais populares deveriam ser pagos de acordo.
O Guardian, um jornal que não tem paywall e aposta na qualidade do seu jornalismo para angariar recursos por meio de membership e doações dos leitores, não discordou em sua matéria que as métricas sejam essenciais para o sucesso do jornalismo digital. Mas levantou o temor de que, “ao seren usadas para orientar as decisões sobre salários ou prioridades editoriais, possam levar a uma abordagem que desmoraliza a equipe e os incentiva a burlar o sistema”.
O Telegraph tem 600.000 assinantes online no total, com 150.000 adicionados em 2020 e uma meta de 1 milhão até 2023. Fundado em 1855, é um dos lendários jornais britânicos. Sua ligação com o Partido Conservador é forte.
O atual primeiro-ministro, Boris Johnson, que é jornalista, escrevia uma coluna semanal remunerada no Telegraph até assumir o posto.
O jornal tem um histórico de furos e prêmios e forte presença digital. Em 2004, foi comprado por dois empresários com interesses em áreas como hotelaria, navegação e varejo, os irmãos Frederick e David Barclay. Em 2019 circularam notícias de que eles planejavam colocar o título à venda. David morreu em janeiro passado, aos 86 anos.
Escrito nas estrelas
Em um artigo no site da IMMA (International News Media Association), Dan Silver, diretor de inovação do Daily Telegraph, apresentou o case do Stars, implantado em 2019. O sistema alimenta relatórios diários e centros de dados de autoatendimento usados por toda a equipe editorial e registra as metas diárias, semanais e mensais alocadas a todos os editores. Tudo é medido em tempo real pela plataforma analítica proprietária do The Telegraph, a Pulse.
Segundo ele, o sistema foi projetado não apenas para informar a redação, mas também para alterar sua mentalidade e melhorar sua compreensão do negócio de assinaturas.
“Resultado de uma colaboração entre o diretor de Inovação de Redação do Telegraph e seu departamento de Insight & Analytics, esta supermétrica sob medida é derivada de três métricas de alimentação que identificam e recompensam o conteúdo que não apenas converte novos assinantes (Aquisição), mas também ajuda a mantê-los inscritos (Retenção) e ressoa com registrantes e novos usuários (engajamento) − assinantes em potencial.”
Ele salienta que, quando usadas adequadamente, as métricas são ferramentas poderosas para ajudar a equipe editorial a tomar as decisões que irão ajudar o The Telegraph a atingir sua meta de um milhão de assinantes pagantes e 10 milhões de usuários registrados até o final de 2023. E com uso inadequado, métricas ruins levam a decisões ruins.
Segundo Silver, durante o primeiro ano, a métrica mais usada na redação foi a conversão de assinantes. E, embora conquistar novos clientes pagantes fosse obviamente importante para o negócio, seria ineficiente concentrar esforços em empurrar as pessoas pela porta, mas não verificar se havia uma saída pelo outro lado. “Cada editor na redação poderia recitar seus 10 artigos mais convertidos das últimas 24 horas, mas poucos estavam realmente cientes dos níveis de retenção de assinantes ou da taxa de rotatividade”, disse.
“O molho especial do Stars é uma fórmula que pondera a contribuição dessas métricas alimentadoras com base em registros de novos assinantes e assinantes fiéis, ao mesmo tempo em que leva em consideração a receita de publicidade, mas garante que nenhum componente domine injustamente os outros.”
O diretor observou, no entanto, que para provar-se verdadeiramente transformacional, o Stars precisava ser simples o suficiente para ser compreendido por todos os repórteres, oferecendo ao mesmo tempo informações suficientes para guiar as decisões estratégicas dos editores.
“Para impulsionar essa adoção, técnicas de visualização de dados simples, mas atraentes, foram usadas nos relatórios do Google Data Studio para enfatizar como os três pilares da estratégia se correlacionam com a estratégia geral de negócios. Em outra parte desse resultado da web versátil de autoatendimento, desenvolvido de forma personalizada por membros de nossa equipe de Insight and Analytics, aqueles com um interesse mais aguçado poderiam examinar os dados da maneira que considerassem adequados para mergulhos mais profundos.
Também analisamos dados históricos de 18 meses para criar escalas de como seria bom para diferentes verticais de conteúdo, com a editoria de política operando em uma escala diferente da de editorias menos visitadas, como estilo de vida e jardinagem, por exemplo.”
Dan Silver escreveu que o Stars “ainda está em sua infância e, como tal, ainda estamos examinando a riqueza de insights que ele tem a oferecer. No entanto, já está iluminando a maneira como diferentes tipos de conteúdo servem a diferentes propósitos”.
Segundo ele, antes de o sistema ser inplantado, matérias com altas taxas de conversão dominaram as estratégias de conteúdo. E que, depois dele, adotou-se um novo foco no conteúdo que incentiva os assinantes existentes a retornarem, ou que impulsiona maior engajamento com assinantes e visitantes. Silver afirmou que desde os primeiros dias houve sinais de que as taxas de assinaturas estavam se movendo na direção certa.
Mas que provavelmente o maior sucesso do Stars seria fazer toda a redação pensar sobre a importância do engajamento e retenção e como eles se relacionam com o conteúdo que produzem. E vaticionou que o sucesso do programa de assinaturas do Telegraph estava escrito no Stars, em um trocadilho com a palavra estrelas.
Talvez nem todos na redação estejam tão convencidos disso, pelo menos no que diz respeito a vincular remuneração a métricas do sistema.