A palavra grilled em inglês tem dois significados: o de algo frito em uma chapa, ou de alguém submetido a um interrogatório intenso. Foi o que aconteceu nesta quinta-feira ( 25/3) com os CEOs das três principais Big Techs no Congresso americano, em uma sessão que indica possíveis caminhos da regulamentação das plataformas digitais globais.
Durante seis longas horas, eles foram “grelhados”, em tradução literal, por parlamentares durante uma audiência que havia sido convocada em janeiro pelo Comitê de Energia e Comércio após a invasão do Capitólio. O nome da sessão é revelador das intenções: Nação da desinformação: o papel da mídia social na promoção do extremismo e da desinformação,
A trinca que comanda Facebook (Mark Zuckerberg), Google (Sundar Pichai) e Twitter (Jack Dorsey) foi chamada para falar dos esforços feitos pelas plataformas para controlar as alegações de fraude eleitoral e para reverter a onda de ceticismo sobre as vacinas contra o coronavírus. E para explicar de que maneira os algoritmos influenciam as opiniões sobre esses assuntos.
O resultado prático da audiência é nenhum. Embora existam várias leis em estudo que afetam as plataformas, a sessão desta quinta-feira não está associada a nenhuma delas. E não haverá consequência imediata do que se discutiu na casa.
Mas merecem ser observadas as posições dos três homens que dominam as tecnologias de informação e conexão sem as quais o mundo hoje não funcionaria, e dos parlamentares da nação mais poderosa do mundo que sedia as matrizes dessas companhias. São conversas que indicam para onde os ventos regulatórios devem soprar.
Posições divergentes
Uma das observações é que mais uma vez os três CEOs não se mostraram alinhados. Dorsey, do Twitter, admitiu a responsabilidade da plataforma nos eventos de janeiro. Já Mark Zuckerberg e Sundar Pichai não responderam a questão.
Zuckerberg preferiu chutar cachorro morto, culpando Donald Trump e o “ambiente político e de mídia que separa os americanos”. Disse que o Facebook “fez a sua parte para garantir a integridade da eleição. E então, em 6 de janeiro, o presidente Trump fez um discurso … convocando as pessoas a lutar”.
Divisão parecida entre as gigantes tinha sido vista na Austrália há algumas semanas. Lá o Google abriu diálogo com o governo local em torno da nova lei de pagamento a empresas jornalísticas por conteúdo, e fechou contrato com veículos. Enquanto isso, o Facebook partiu para o confronto, suspendendo os links de compartilhamento de notícias e provocando uma revolta global – embora no final tenha conseguido concessões que entraram na lei.
A recusa em responder aos congressistas foi mal recebida. Fadi Quran, diretor da ONG Avaaz e membro do grupo Real Facebook Oversight Board, disse:
“O Sr. Zuckerberg e os outros CEOs de tecnologia não conseguiram sequer dizer um ‘sim’ ou ‘não’ para a simples questão de se eles são responsáveis pela forma como suas plataformas amplificaram a desinformação que alimentou a insurreição. Eles não vão assumir a responsabilidade. Há pouca esperança de que eles façam o que for preciso para proteger os americanos das mentiras tóxicas e conspirações que poluem suas plataformas. ”
CEO do Twitter não foi unanimidade
Mas a posição honesta de Dorsey sobre o papel do Twitter nos eventos de janeiro em Washington não significa que ele foi o bonzinho do dia. Causou controvérsia o fato de ele ter passado parte do tempo da audiência tuitando abertamente, algumas vezes de forma provocativa.
O CEO do Twitter disse que as perguntas poderiam ser melhores e criticou o formato de “sim ou não” da parte inicial da audiência, chegando a fazer uma enquete irônica.
Ele também expôs sua visão sobre as iniciativas para regular as plataformas de maneira uniforme, o que considera inadequado por reduzir inovação e impedir escolhas individuais.
Em seu depoimento por escrito à casa parlamentar, reiterou sua defesa da moderação de conteúdo conduzida pelo usuário e da “criação de melhores configurações e ferramentas que permitam personalizar a experiência online”.
Por sua vez Sundar Pichai, do Google, abordou igualmente as políticas de conteúdo em seu manifesto por escrito. Defendeu regras mais claras e mais facilidade para os usuários apelarem das decisões sobre remoção.
Para onde os ventos sopram
A longa audiência serviu também para indicar os rumos que as propostas regulatórias podem tomar. Em sua cobertura, a CNN Business fez uma análise da orientação assumida por cada lado do espectro político.
Para a rede, os democratas concentraram seu questionamento nos algoritmos das plataformas tecnológicas e na maneira como sua busca pelo lucro supostamente leva a resultados negativos para os usuários e a sociedade. Os republicanos introduziram uma nova linha de ataque, com foco em como as práticas das plataformas são particularmente tóxicas para a saúde mental de crianças e adolescentes.
Desinformação em espanhol
Cárdenas citou o exemplo de sua sogra, que segundo ele não queria tomar a vacina porque viu nas redes sociais em espanhol que um chip seria colocado em seu braço.
“Pelo amor de Deus, para mim é inacreditável que ela receba essas informações em plataformas de mídia social”, disse ele. “Claramente, a desinformação do idioma espanhol é um problema.”
Zuckerberg seguiu o protocolo, com uma resposta no melhor estilo statement corporativo. Disse que o Facebook tem um programa internacional de checagem de fatos com funcionários em mais de 80 países que falam “vários idiomas”, incluindo espanhol. E lembrou que a plataforma oferece informações sobre as vacinas traduzidas para várias línguas.
Discurso de ódio contra asiáticos
O discurso de ódio contra asiáticos, que ganhou ainda mais evidência depois do massacre de Atlanta, também entrou na pauta. A congressista Doris Matsui, da Califórnia, perguntou diretamente a Dorsey e a Zuckerberg o que eles estão fazendo para lidar com isso. E indagou por que demoraram a remover hashtags racistas culpando os asiáticos americanos pela pandemia.
Ela citou um estudo mostrando aumento de ataques a asiáticos nas redes sociais depois que Donald Trump usou o termo “gripe da China” em um tweet.
Dorsey rebateu dizendo que não banirá as hashtags racistas de uma vez porque “muitas delas contêm contra-discurso”, ou postagens refutando o racismo que as hashtags iniciaram.
Zuckerberg seguiu a mesma linha. Afirmou que as políticas de discurso de ódio no Facebook são “matizadas” e que eles têm a obrigação de proteger a liberdade de expressão.
Esta semana, o jornal britânico The Guardian teve acesso a um documento de 300 páginas estabelecendo as regras para os moderadores da plataforma, que inclui a permissão para ataques a políticos e jornalistas, até mesmo com postagens pedindo a morte deles.
A Seção 230
Assim como em outros países e regiões, como Reino Unido e União Européia, há de tudo nas propostas em análise nos Estados Unidos para regulamentar a atuação das Big Techs: controle de seu domínio econômico, pagamento por conteúdo, práticas anticompetitivas, transparência nas políticas de moderação, privacidade de dados, controle do discurso de ódio e desinformação.
Mas um dos principais temas em jogo é a mudança na Seção 230 do Communications Act de 1934. Trata-se de um princípio legal que garante imunidade às plataformas com relação ao que nelas é postado pelos usuários. Se a lei for mudada, elas passam a responder também por esse conteúdo, a exemplo do que já acontece com qualquer empresa jornalística.
Em seu depoimento escrito submetido à Comissão antes da audiência, Mark Zuckerberg sinalizou um apoio à redução do escopo da Seção 230. Ele disse que o Facebook “é a favor de uma forma de responsabilidade condicional, em que as plataformas online possam ser processadas pelo conteúdo do usuário se as empresas não cumprirem certas práticas recomendadas estabelecidas por um terceiro”.
Não foi a primeira “grelha” dos CEOs das Big Techs, e nem deve ser a última. À medida em que os projetos de lei avançarem, novas audiências devem ocorrer. E o que se aprovar nos Estados Unidos tem grandes chances de valer para usuários das plataformas em todo o mundo.