O Washington Post reverteu na segunda-feira (29/3) uma medida injusta criticada por seus próprios funcionários: a de proibir a repórter política Felicia Sonmez de trabalhar em matérias envolvendo assédio sexual por ter sido vítima de agressão semelhante.

Em uma de suas postagens no Twitter sobre o caso, Sonmez conta que era posta de lado de reportagens relacionadas a assédio sexual pelo menos uma vez cada semana ou duas, às vezes até mais frequentemente.

A direção do jornal alegava que a experiência anterior da jornalista poderia afetar sua isenção e gerar conflitos de interesse. Os críticos da medida contra-argumentavam que, justamente por ter sido vítima, ela poderia agregar uma visão única aos casos, impossível para quem não passou pelo problema.

Devido a essa proibição, Sonmez foi mantida à parte de coberturas relevantes, como as que envolviam as recentes acusações de assédio contra o governador democrata de Nova York, Andrew Cuomo e o ex-governador republicano do Missouri, Eric Greitens.

A mudança de orientação ocorreu depois que Felicia Sonmez expôs mais uma vez seu caso no Twitter no fim de semana.

Na segunda, a porta-voz do Post, Kris Coratti, emitiu um comunicado informando que Sonmez passava a estar livre novamente para escrever qualquer matéria, incluindo as de pessoas acusadas de assédio. Ela se recusou a dizer quais editores tomaram a decisão ou seus motivos.

“Após uma discussão na redação há duas semanas, os editores começaram a reavaliar as limitações do escopo do trabalho de Felicia. Eles concluíram que tais limitações são desnecessárias.”

Tratamento diferente para correspondente na Casa Branca

A discussão mencionada no comunicado da porta-voz do Post ocorreu numa reunião de toda a redação via Zoom, na qual ficou evidenciado um tratamento diferente do jornal em relação ao assédio sofrido por outra jornalista.

Nesse encontro se tratou do assédio online de cunho racista sofrido dias antes pela correspondente do Post na Casa Branca, Seung Min Kim, norte-americana de origem coreana.

Os participantes observaram que o editor nacional Steven Ginsberg emitiu uma declaração em apoio a Kim, considerando-a um modelo de liderança na redação.

A diferença de tratamento magoou Sonmez, que se dirigiu a todos os colegas na função de bate-papo durante a reunião:

“Gostaria que os editores tivessem me apoiado publicamente da mesma forma quando eu estava sendo assediada, em vez de me suspender”. 

Ela também expôs suas críticas numa postagem do Twitter, na qual disse que o ataque que sofrera por um exército de trolls misóginos não afetava tanto o jornal como a agresssão racista sofrida por Kim.

Restrição ao trabalho da jornalista começou em 2018

Nos primeiros três meses de trabalho no Washington Post, Sonmez não enfrentou qualquer restrição. Ela escreveu matérias sobre o movimento#MeToo sem problemas.

Foi em setembro de 2018 que ela sofreu a proibição pela primeira vez. Os editores do jornal decidiram que, devido ao assédio sexual sofrido, ela não poderia cobrir as audiências que deliberavam sobre a nomeação do juiz da Suprema Corte Brett Kavanaugh, acusado de agressão. A restrição durou alguns meses, mas foi retirada.

Suspensa por post sobre assédio praticado por Kobe Bryant

A questão envolvendo Sonmez explodiu novamente em janeiro de 2020, depois que o astro do basquete Kobe Bryant, sua filha e outras sete pessoas morreram em um acidente de helicóptero. 

Poucas horas depois de a notícia ser divulgada, Sonmez tuitou um link para  um artigo do Daily Beast de 2016  detalhando as alegações de estupro contra Bryant em 2003. Não adicionou qualquer opinião ou comentário. Mas o tuíte gerou uma reação negativa online, incluindo ameaças de morte contra ela, que teve seu endereço postado online.

Em virtude disso, a jornalista teve que se esconder num quarto de hotel, que era pago pelo jornal, que também fornecia segurança. Mas o então editor executivo do Post, Martin Baron, decidiu afastar Sonmez de suas funções. Ele a colocou sob licença remunerada, argumentando que suas postagens “exibiam um julgamento ruim que prejudicava o trabalho de seus colegas”. 

A licença temporária viria a ser revogada depois que mais de 300 funcionários do Post assinaram uma carta em apoio a Sonmez. Mas a proibição de escrever sobre casos envolvendo assédio não foi retirada. 

Em maio passado, ela enviou um e-mail para seus editores protestando contra a proibição:
“’É humilhante ter de dizer repetidamente a meus colegas e editores que não tenho permissão para fazer meu trabalho integralmente porque fui assediada. Acredito que seja importante para vocês saberem que a decisão do Post teve repercussões negativas para mim no passado. . . . São as explicações torturantes que tenho que dar sempre que há notícias que não tenho permissão de cobrir.”
Numa tuíte do último fim de semana, Sonmez diz que implorou sem sucesso várias vezes aos editores para que fosse levantada a proibição, que já durava mais de um ano. No dia seguinte a esse post, a situação finalmente mudou.

Funcionários do Post comemoram, mas lamentam demora 

Embora saudando a mudança de posição, o sindicato que representa os funcionários do Washington Post criticou a sua demora:

“Estamos felizes em ver o Post reverter sua postura e permitir que nossa colega Felicia Sonmez faça livremente seu trabalho. Mas essa decisão só veio depois de muitas críticas públicas e às custas da saúde mental de Felicia. O Post deve atuar melhor. A empresa ainda tem muito trabalho a fazer para reconstruir a confiança – interna e externamente – e cultivar um local de trabalho inclusivo para todos”.

Sonmez, em entrevista, disse que não recebeu desculpas ou explicações de seus editores com a notícia da revogação de sua proibição na segunda-feira. Ela disse que era uma boa notícia, mas à custa de um alto dano emocional depois de anos de angústia e que pretendia tirar um tempo para se recuperar e avaliar sua situação.

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Proibição vai, mas sofrimento fica

Em outro tuíte, a jornalista fala de uma conversa em que foi perguntada se passara a se sentir apoiada pelo Post depois que que Baron, o editor executivo que suspendeu, se aposentou no mês passado. Sua reação:

“Eu simplesmente me derramei em lágrimas.”

 

 

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