O relatĆ³rio final de um grupo de trabalho formado pelo Governo britĆ¢nico apĆ³s os protestos do Black Lives Matter para formular um plano de combate Ć s desigualdades raciais, publicado na Ćŗltima quarta-feira (31/3), gerou forte reaĆ§Ć£o negativa por ter, entre outras coisas, negado a existĆŖncia de racismo estrutural no paĆs. Mas em pelo menos um ponto houve consenso: o reconhecimento do racismo online e a cobranƧa de medidas urgentes das plataformas e do governo para resolver o problema.
Outra de suas propostas que nĆ£o encontrou reaĆ§Ć£o negativa foi uma mudanƧa na forma de se referir Ć s minorias. A comissĆ£o recomendou que nĆ£o se use mais a sigla BAME (Black, Asian, and minority ethnic), uma generalizaĆ§Ć£o que engloba todas as pessoas nĆ£o brancas. O motivo Ć© a diferenƧa entre as realidades dos grupos.
Mas no restante o documento virou objeto de ataques de todos os lados. O lĆder da comissĆ£o, Tony Sewell, passou a ser ele prĆ³prio atacado nas redes sociais, chegando a ser comparado ao chefe da propaganda nazista Goebbels e Ć Ku Klux Klan. O principal assessor do governo para diversidade, Samuel Kasumu, pediu demissĆ£o na quinta-feira (1/4). E autores de estudos cientĆficos citados no trabalho manifestaram discordĆ¢ncia quanto ao uso de suas pesquisas ou de seus nomes como consultores.
As mĆdias sociais “amplificam visƵes racistas”
Ainda que nĆ£o admita o racismo estrutural na sociedade britĆ¢nica, no capĆtulo que trata de crime o relatĆ³rio afirma que as mĆdias sociais “amplificam enormemente as visƵes racistas”. E que as minorias Ć©tnicas, em particular, sĆ£o desproporcionalmente afetadas por assĆ©dio online, trolagem e cyberbullying.
A comissĆ£o cita nominalmente Twitter, Facebook, YouTube e Instagram como plataformas com “significativo impacto”.
Seja para um indivĆduo comum ou para uma figura pĆŗblica de destaque, sofrer abuso online na seguranƧa de sua prĆ³pria casa, com o potencial de ser exposto mundialmente, causa medo e um tormento Ćŗnico.
Em plataformas como o Facebook e o YouTube, com mais de 1 bilhĆ£o de usuĆ”rios, o racismo online viraliza rapidamente. Elas proporcionaram aos racistas uma maneira nova e mais abrangente de infligir dor Ć s suas vĆtimas.
Em muitos casos, o perpetradores se aproveitam do anonimato permitido por essas e outras plataformas para atacar pessoas que nĆ£o seriam atingidas Ć luz do dia.
Em outro trecho, critica a eficĆ”cia das iniciativas adotadas pelas gigantes de mĆdia digital para combater o racismo online. E faz a ressalva de que medidas de combate nĆ£o implicam censurar o debate e a liberdade de expressĆ£o:
As maiores plataformas de mĆdia social alegam atualmente proibir o abuso racista. Mas com muita frequĆŖncia nĆ£o empregam medidas para enfrentĆ”-lo.
NĆ³s consideramos que Ć© possĆvel fazer isso de uma forma que tambĆ©m proteja o uso legĆtimo do anonimato online por grupos como defensores dos direitos humanos, denunciantes e vĆtimas de abusos.
Na verdade, Ć© preocupante ver que ativistas que fazem campanha contra o racismo online descobriram que seus sites foram removidos por evidĆŖncias de discurso racista descontextualizadas.
O documento diz ainda que as empresas de mĆdia social muitas vezes nem mesmo fazem cumprir seus prĆ³prios termos e condiƧƵes, devendo enfrentar “penalidades substanciais, denĆŗncias pĆŗblicas e vergonha”.
As empresas de mĆdia social tĆŖm uma responsabilidade social, o que inclui o dever de cuidar de seus usuĆ”rios. Este dever deve implicar em obrigĆ”-las a lidar com o abuso online por meio de sistemas e processos eficazes.
Pedir a elas a aplicaĆ§Ć£o transparente e consistente de seus prĆ³prios termos e condiƧƵes Ć© certamente um requisito mĆnimo.
O nĆ£o cumprimento deve, na opiniĆ£o da ComissĆ£o, conduzir a penalidades substanciais. E ao pĆŗblico cabe denunciar e envergonhar as empresas por sua aparente intransigĆŖncia Ć dor que o racismo causa Ć s suas vĆtimas.
O relatĆ³rio engrossa o coro dos que criticam o anonimato nas redes sociais:
Ser anĆ“nimo online nĆ£o dĆ” a ninguĆ©m o direito de abusar de outras pessoas. A polĆcia tem poderes legais para identificar e processar indivĆduos que tentam usar o anonimato para escapar das sanƧƵes por abuso online.
No final, apela para a colaboraĆ§Ć£o.
A ComissĆ£o convida as empresas de mĆdia social a trabalharem em conjunto com o governo para remover conteĆŗdo racista abusivo ilegal. O governo deve avaliar os poderes atuais para ver se eles sĆ£o suficientes para combater o abuso online – incluindo o abuso anĆ“nimo.
E reforƧa a recomendaĆ§Ć£o ao governo para utilizar a sua futura legislaĆ§Ć£o sobre seguranƧa online para lidar com o racismo online. Em dezembro passado, o governo britĆ¢nico apresentou um projeto de lei para regulamentar conteĆŗdo nas plataformas digitais, O projeto Ć© fundamentado na proteĆ§Ć£o Ć s crianƧas, Ć luz do fundamento duty of care (dever de cuidar), que dĆ” ao Estado a responsabilidade de proteger vulnerĆ”veis.
Discurso de Ć³dio, incluindo racismo online, faz parte do projeto, que estĆ” em tramitaĆ§Ć£o e nĆ£o deve demorar a entrar em vigor, diante de uma forte pressĆ£o social.
Racismo nas mĆdias sociais e no jornalismo
O documento de 248 pĆ”ginas da ComissĆ£o de Desigualdade Ćtnica e Racial saiu na mesma semana em que uma estrela do esporte, o ex-jogador de futebol Thierry Henry, ganhou as manchetes mundiais ao desplugar todos os seus perfis em redes sociais.
Ele fez isso para cobrar das plataformas digitais globais medidas mais enĆ©rgicas contra o racismo online e o anonimato daqueles que perpetram ataques pelas mĆdias digitais.
O debate sobre racismo no Reino Unido chegou tambĆ©m Ć s redaƧƵes. ApĆ³s a entrevista do PrĆncipe Harry e Meghan Markle a Oprah Winfrey, em que acusaram a imprensa do paĆs de racista, a Sociedade dos Editores publicou uma nota contestando a opiniĆ£o.
Houve uma revolta, com um manifesto de jornalistas negros acusando a posiĆ§Ć£o de “ato de uma indĆŗstria em negaĆ§Ć£o“, o desligamento de uma das principais jornalistas do paĆs da entidadee o adiamento de seu prĆŖmio anual depois que vĆ”rios finalistas debandaram.
E hĆ” duas semanas, um relatĆ³rio do Instituto Reuters para Estudos do Jornalismo mostrou que todos os editores principais dos veĆculos de maior audiĆŖncia no Reino Unido sĆ£o brancos. O Brasil Ć© um dos cinco paĆses examinados pela pesquisa onde isso tambĆ©m acontece, ao lado da Alemanha.
O documento da ComissĆ£o
Apesar de conter propostas sĆ³lidas que podem ajudar a reverter as desigualdades, como mais horas de estudo para crianƧas desfavorecidas por fazerem parte de minorias raciais e Ć©tnicas, o documento tornou-se alvo de ataques de todos os lados.
Os especialistas de diversas Ć”reas concluĆram que o Reino Unido nĆ£o tem um sistema que discrimine minorias deliberadamente. E sustentam que outros fatores impactam mais as oportunidades de vida do que a discriminaĆ§Ć£o:
Simplificando, nĆ£o vemos mais uma GrĆ£-Bretanha onde o sistema Ć© deliberadamente manipulado contra grupos Ć©tnicos e minorias. Os impedimentos e disparidades existem, sĆ£o variados, mas ironicamente, poucos tĆŖm relaĆ§Ć£o direta com o racismo.
Muitas vezes, “racismo” Ć© a explicaĆ§Ć£o geral, e pode ser simplesmente aceito implicitamente em vez de examinado explicitamente. As evidĆŖncias mostram que geografia, influĆŖncia familiar, situaĆ§Ć£o socioeconĆ“mica, cultura e religiĆ£o tĆŖm impacto mais significativo nas oportunidades do que o racismo.
Dito isso, nĆ³s levamos a sĆ©rio a realidade do racismo e nĆ£o negamos que ele seja uma forƧa real no Reino Unido.
O trabalho sustenta que o Reino Unido ainda nĆ£o Ć© um “paĆs pĆ³s-racial”. Mas que seu sucesso na remoĆ§Ć£o da disparidade racial na educaĆ§Ć£o e, em menor medida, na economia, “deve ser considerado um modelo para outros paĆses de maioria branca”.
Tony Sewell, uma figura polĆŖmica
A posiĆ§Ć£o expressa no relatĆ³rio causou controvĆ©rsia, mas pode nĆ£o ter sido surpresa para alguns. Quando o Governo anunciou o nome de Tony Sewell para presidir a comissĆ£o, em 2020, ativistas reagiram negativamente, porque ele jĆ” havia questionado anteriormente a ideia de racismo estrutural.
E teve que se desculpar por comentĆ”rios depreciativos sobre homossexuais feitos em 1990, quando o jogador de futebol Justin Fashanu (que viria a cometer suicĆdio em 1998) anunciou ser gay, trazidos Ć tona pela imprensa quando ele foi nomeado. Sewell dirige a ONG Generating Genius, de apoio educacional a crianƧas negras.
Em entrevista Ć rĆ”dio BBC na quarta-feira (31), ele defendeu a posiĆ§Ć£o do relatĆ³rio. Suas declaraƧƵes geraram debates acalorados nas redes sociais.
Uma das crĆticas a Sewell Ć© sua ligaĆ§Ć£o com o governo de Boris Johnson, o que para alguns teria influenciado uma posiĆ§Ć£o que enaltece o Reino Unido diante de outras naƧƵes. De fato, em pontos do relatĆ³rio essa impressĆ£o Ć© reforƧada por afirmaƧƵes de tom ufanista – e nĆ£o necessariamente embasado por fatos:
HĆ” uma muita atenĆ§Ć£o Ć igualdade racial no Reino Unido na formulaĆ§Ć£o de polĆticas e na mĆdia, o que raramente Ć© encontrado em outros paĆses europeus.
Citando o poeta e ativista Linton Kwesi Johnson, o trabalho divide a presenƧa negra no Reino Unido em duas eras.
A primeira foi a chegada da chamada geraĆ§Ć£o Windrush, em alusĆ£o ao navio que trazia imigrantes das colĆ“nias do paĆs no Caribe. Ć chamada de “perĆodo “herĆ³ico”, quando literalmente as portas se fechavam nos rostos dos novos colonos negros”.
A segunda Ć© classificada de “era da āparticipaĆ§Ć£o”, na qual “o Reino Unido mudou fundamentalmente desde aqueles perĆodos no passado e tornou-se uma sociedade mais aberta”.
NĆ³s falamos neste relatĆ³rio sobre como o Reino Unido estĆ” aberto a todas as suas comunidades. Mas estamos perfeitamente cientes de que a porta pode estar apenas meio aberta para alguns, incluindo a classe trabalhadora branca.
A este respeito, apontamos como o paĆs pode se tornar mais inclusivo e justo em educaĆ§Ć£o, emprego, saĆŗde e policiamento”.
A referĆŖncia Ć classe trabalhadora branca, equalizando suas dificuldades Ć das minorias Ć©tnicas e raciais, nĆ£o estĆ” sendo bem digerida. Desde a publicaĆ§Ć£o do trabalho, a polĆŖmica sĆ³ faz crescer.
A controvĆ©rsia pode acabar por ofuscar ideias boas contidas no trabalho da comissĆ£o. E afastar gente que pode contribuir para as mudanƧas, como Samuel Kasumu. E outros que parecem nĆ£o querer proximidade com o estudo que se tornou radioativo.
A Ćntegra do relatĆ³rio estĆ” aqui.
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