Depois do movimento ousado de fechar, no início do ano, todas as suas contas em Instagram, Twitter, Facebook e até na rede social chinesa Weibo, uma das mais célebres grifes internacionais de moda foi além. A italiana Bottega Veneta troca as redes sociais por uma revista digital própria. 

A Issue, aposta da marca para comunicar-se diretamente com seus fãs, foi lançada na quarta-feira (31/3). Será trimestral, acompanhando as coleções sazonais.

O nome tem duplo sentido. A palavra issue é sinônimo de edição, remetendo ao número de uma revista. E também de “questão”, um tópico para debate ou discussão. 

Mas o lançamento não quer dizer que a marca italiana tenha declarado guerra às redes. Sua estratégia de presença nas mídias sociais é incentivar os fãs e embaixadores a falarem dela, sem precisar ter contas. A revista é parte dessa estratégia.

Ainda que seja uma publicação online e não em papel, a iniciativa é um sinal de que as clássicas revistas, que para alguns morreriam no mundo do jornalismo digital, não perderam a sua importância. E podem se reinventar com outros formatos. 

Na mesma semana, a atriz americana Drew Barrymore (a inesquecível menina do clássico ET) também anunciou o lançamento de sua revista, só que impressa. Ela se disse apaixonada por revistas desde criança. A publicação será feita pela editora Bauer, para ser vendida em bancas e na rede de supermercados Walmart. 

Uma revista sem texto 

O primeiro número da Issue é resultado do trabalho coletivo de 28 artistas e não tem texto. A edição consiste em uma combinação de vídeos, música, narrações e fotos. A ideia é proporcionar uma experiência sensorial de cores, texturas, sons e imagens, em um estilo que lembra a linguagem das mídias sociais, dos videoclipes e dos ensaios fotográficos clássicos, só que em movimento. 

Uma das atrações da edição de estreia é um videoclipe com a rapper Missy Eliott usando roupas e acessórios da marca, produzido pelo fotógrafo Derek Blanks. Seguindo o roteiro esperado, o vídeo foi compartilhado por ela em suas redes sociais e repostado por fãs. 

A decisão chama a atenção porque a Bottega Veneta vinha sendo uma das grifes mais populares nas redes sociais, com quase 3 milhões de seguidores no Instagram, desde que o estilista britânico Daniel Lee tornou-se diretor de criação da marca milanesa há menos de três anos. Os concorrentes acompanham com atenção o resultado, que pode inaugurar uma nova tendência, não apenas no mundo da moda.

Lee, que em 2019 ganhou quatro prêmios de moda britânicos – um recorde não igualado nem mesmo por estilistas célebres como Alexander McQueen, Vivienne Westwood ou Stella McCartney –, não considera nenhuma proeza cortar laços com a mídia social. Ele próprio não mantém contas pessoais e disse ao jornal The Guardian:

“As mídias sociais representam a homogeneização da cultura. Todos veem constantemente o mesmo fluxo de informações.

Como criador, acho isso muito limitante, pois as mídias sociais simplificam demais. Na Bottega Veneta, nosso objetivo é promover a individualidade. Então, decidimos fazer do nosso jeito. ”

Direção oposta do resto da indústria

A Bottega Veneta é uma grife em ascensão, cuja receita cresceu 4,8% no ano passado, quando a maioria das marcas de luxo sofreu forte impacto. Uma das peças mais simples atualmente à venda, uma camiseta de algodão, custa quase R$ 3 mil.

Ela faz parte do grupo francês Kering, que também possui as marcas Gucci, Saint Laurent, Balenciaga e Alexander McQueen.

Com a imersão das companhias nas mídias sociais estimulada pela pandemia, a Bottega pode estar liderando o retorno a rotas mais tradicionais de consumo de moda.  

Analistas destacam que o luxo é definido pela arte e exclusividade. E que a desconexão da Bottega vai nessa direção.

Samantha Conti, da revista WWD, analisou o movimento: 

“Como uma marca consegue manter sua reputação de luxo quando seus produtos são compartilhados em excesso nas redes sociais? Essa é uma nova fórmula de autenticidade da marca na era da pandemia. A Bottega Veneta pode estar estabelecendo o padrão do que significa ser luxuoso e desejável na era digital.”

 

Desfile não digital

Lee já vinha apostando nessa desconexão há algum tempo. Seu último desfile não foi digital, como os das outras marcas. Um pequeno grupo de celebridades, apenas a convite, assistiu à apresentação em outubro da coleção de primavera/verão “Salon 01 London,” no Sadler’s Wells Theatre, na capital britânica.

As fotos e vídeos das tendências vistas na passarela foram postadas pelo público. O evento foi transformado em um livro e em um filme lançados em dezembro. Na época, o diretor criativo da Bottega falou sobre reafirmar os códigos da marca “com um toque humano”.

A primeira edição

A edição de estreia da Issue reúne trabalhos de designers, criativos, fotógrafos, cineastas, músicos e artistas.

Inclui obras de arte, como esculturas com balões de soprar. Muitas das imagens brincam com texturas, cores e tecidos.

A edição celebra o Salon 01, a coleção mais recente da Bottega Veneta. Mas apresenta roupas anteriores fotografadas ao lado de peças da nova temporada. “O que faz sentido”, diz Lee. “Há longevidade nas peças que fazemos”.

Além de Missy Elliot, participaram também outros artistas como Tyler Mitchell, Tyrone Lebon, Sue Webster e Bindi Steel. A patinadora berlinense Oumi Janta gira em seus patins em um vestido com franjas de seda.

Um curta metragem frenético captura as acrobacias ousadas sobre telhados feitas pelos integrantes do grupo britânico Storror.

No meio de tudo isso, joias são destacadas nas mãos de um violinista e de uma saxofonista.

Aparecem roupas em madeira, pedra e concreto. O leitor é convidado a ouvir os sons metálicos de joias dançantes. E a verificar como ficam as bolsas ou as clássicas botas lug da marca em versão gelatinosa, movendo-se sobre a mesa de um restaurante, com o som de pratos e conversas ao fundo. 

Ensaios artísticos são entremeados por imagens das peças da marca, como em uma sofisticada revista de moda. 

E para não dizer que não há texto algum, uma entrevista com a artista plástica britânica Sue Webster foi feita em forma de “rascunho”, como um manuscrito em que ela responde a perguntas antes de ser editado. 

 

Contraste com o Instagram

Segundo Lee, o contraste com o Instagram é intencional:

“Há um clima de bullying de playground nas redes sociais que eu realmente não gosto. Eu queria fazer algo alegre em vez disso. Não somos apenas uma marca, somos uma equipe de pessoas que trabalham juntas e não quero conspirar em uma atmosfera que parece negativa. ”

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Resultados agradaram ao CEO 

Na apresentação de resultados do quarto trimestre realizada na última quarta-feira, o CEO do Kering, François-Henri Pinault, disse que a mudança na estratégia da Bottega tem valido a pena:

“Devo dizer que depois de um mês e meio fora das redes, os resultados são bastante convincentes em termos de visibilidade da Bottega Veneta, e estamos monitorando com bastante precisão”.

O CEO não acha que a Bottega esteja desaparecendo das redes sociais, mas apenas usando-as de forma diferente:

“A Bottega decidiu apoiar-se muito mais em seus embaixadores e fãs, dando-lhes o material de que precisam para que eles falem pela marca por meio de suas várias redes sociais”.

A julgar pelo impacto que alguns desses embaixadores alcançam nas redes, o caminho faz sentido. Uma das mais engajadas é Kylie Jenner, megacelebridade que fez fama ao participar do reality show Keeping Up with the Kardashians. Tem mais de 200 milhões de seguidores no Instagram. 

Um post dela em outubro passado, usando peças da marca, teve mais de 5 milhões de visualizações. Outras que a Vogue chama de “obcecadas pela BV” são Rihanna e Rosie Huntington-Whiteley.

Próximos passos

Os analistas ainda se dividem sobre os próximos passos. Alguns avaliam que a Bottega pode ter feito esse movimento para voltar a ficar online com uma imagem totalmente nova. Acreditam que marca pode ter se afastado das mídias sociais para causar ondas de choque na indústria da moda e chamar atenção para sua nova revista digital.

Outros acham que é uma iniciativa que veio para ficar. E observam que a Bottega Veneta está na invejável posição de continuar a se beneficiar de uma grande exposição nas mídias sociais sem precisar ter contas.

Além das “obcecadas” famosas, há uma miríade de sites e páginas de fãs. No Instagram destacam-se newbottega, bottegaveneta.by.daniellee e bottegaveneta_international. Só a @newbottega tem meio milhão de seguidores.

Esse é o intuito do diretor de criação Lee:

“Estou muito feliz por estar no Instagram de outras pessoas. Essa conversa com os fãs pelas contas deles é incrível”.

Exemplo para outras marcas

Samantha Conti vê no movimento da Bottega uma inspiração para outras marcas:

“A Bottega Veneta estaria nos dizendo que precisamos nos afastar dos nossos telefones? Pode ser. Mas ela também está abrindo um precedente para marcas na era digital, pedindo a todos nós que nos desconectemos.

Como acontece com qualquer tendência, quanto mais saturada ela se torna, mais os gostos começam a se deslocar na direção oposta”. 

A revista pode ser vista aqui

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