A desinformaรงรฃo em torno da vacina contra a Covid-19 รฉ um dos maiores desafios para o jornalismo em tempos recentes. As fake news estรฃo por todos os lados. O medo tambรฉm. As incertezas aumentaram ainda mais no momento em que dรบvidas sรฃo levantadas sobre a seguranรงa de uma das principais vacinas contra a Covid-19, a da AstraZeneca.
Muitas entidades ligadas ao jornalismo tรชm se dedicado a ajudar a imprensa nessa missรฃo.
O Knight Center para o Jornalismo nas Amรฉricas, dirigido pelo brasileiro Rosental Calmon Alves, รฉ uma delas. Estรก em andamento um curso essencial para quem cobre a pandemia: Cobertura da Vacina Covid-19โ o que os jornalistas precisam saber, ministrado por Maryn McKeena, uma renomada jornalista de saรบde e autora de livros sobre ciรชncia.
Os participantes podem acessar as aulas (com legendas em portuguรชs) nos dias e horรกrios mais convenientes. Sรฃo quatro mรณdulos por semana. O curso รฉ gratuito.
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Artigo da IJNet traz boas recomendaรงรตes para quem cobre a pandemia
A IJNet (International Journalists Network) publicou um artigo sobre o problema, com orientaรงรตes รบteis para quem precisa navegar nesse mar de desinformaรงรฃo. O texto รฉ assinado por Sherry Ricchiardi, instrutora de mรญdia que trabalhou com jornalistas em todo o mundo em reportagens de conflitos, trauma e questรตes de seguranรงa.
Ela abre com uma frase do jornalista Gary Schwitzer, que na รฉpoca era editor do HealthNewsReview, um blog dedicado a esclarecer mitos em torno de informaรงรตes sobre saรบde. Ele resumiu o momento vivido pela imprensa:
“A mรญdia estรก navegando na tempestade perfeita de desinformaรงรฃo pandรชmica”.
Uma de suas recomendaรงรตes รฉ: โPor favor, nรฃo dรช certeza onde a certeza simplesmente nรฃo existeโ.
No artigo da IJNet, Schwitzer lembra sobre o cuidado que os jornalistas devem ter em relaรงรฃo a informaรงรตes transmitidas por empresas farmacรชuticas e polรญticos. E observa que os efeitos colaterais reduzidos apresentados em estudos clรญnicos podem nรฃo significar nada para algumas pessoas, mas serem devastadores para quem tem algum problema de saรบde.
Ao mesmo tempo, adverte a imprensa a evitar o pรขnico ao escrever sobre as vacinas contra a Covid-19, o que sรณ reforรงa as teorias da conspiraรงรฃo em torno delas:
โEstamos enfrentando questรตes avassaladoras sobre confianรงa e vacinas. A distinรงรฃo entre o que sabemos e o que ainda nรฃo entendemos deve ser explicada com mais frequรชncia e de forma mais clara em nossa cobertura.โ
Ele recomenda que os jornalistas que cobrem a pandemia cultivem relacionamentos com fontes tรฉcnicas. E tenham entre as suas fontes um especialista em estatรญstica, um epidemiologista, um clรญnico geral e um virologista.
โSe vocรช tiver esses quatro em sua lista de fontes, suas matรฉrias serรฃo muito mais bem fundamentadas”.
Schwitzer sugere no artigo da IJNet que a imprensa dรช mais atenรงรฃo a alguns tรณpicos:
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Foto: Hakan Nural/Unsplash O que significa quando um estudo diz que uma vacina tem 95% de eficรกcia?
- Qual รฉ a diferenรงa entre eficรกcia e efetividade?
- Quanto tempo dura a imunidade de qualquer uma das vacinas sendo testadas? Quando as doses de acompanhamento sรฃo necessรกrias?
- Os estudos em diferentes ensaios de vacinas tรชm diferentes maneiras de medir o sucesso. Como julgamos quais sรฃo mais confiรกveis?
- Como os resultados da vacina no mundo real serรฃo comparados aos resultados dos testes? Eles podem diferir visivelmente e por quรช?
Sherry Ricchiadi tambรฉm apontou casos em que os jornalistas desmascararam mitos e desmistificaram o vรญrus com eficiรชncia. Um deles foi o do repรณrter do New York Times Carl Zimmer que explorou as complexidades da eficรกcia da vacina, explicando de forma clara aos leitores o que eles precisavam saber e apontando o que ainda era desconhecido.
โUma eficรกcia de 95% รฉ certamente uma evidรชncia convincente de que uma vacina funciona bem. Mas esse nรบmero nรฃo informa quais sรฃo as suas chances de ficar doente se vocรช for vacinado. E, por si sรณ, tambรฉm nรฃo se a vacina derrubarรก a Covid-19 nos Estados Unidosโ, escreveu Zimmer.
A matรฉria do New York Times esclareceu que eficรกcia e efetividade estรฃo relacionadas entre si, mas nรฃo sรฃo a mesma coisa. A eficรกcia รฉ uma medida feita durante um ensaio clรญnico. A eficรกcia รฉ o quรฃo bem a vacina funciona no mundo real, explicou Zimmer, que tambรฉm รฉ um autor cientรญfico.
Outro exemplo destacado รฉ o de uma reportagem da jornalista de saรบde Helen Branswell para o STAT sobre o maior esforรงo de vacinaรงรฃo da histรณria mundial, baseada em entrevistas com mais de duas dezenas de fontes da รกrea de saรบde pรบblica, epidemiologistas, membros do governo e especialistas em bioรฉtica. Foi publicada em dezembro, quando a vacina contra a Covid-19 ia comeรงar a ser distribuรญda.
โA situaรงรฃo que estรก prestes a se desenrolar รฉ absolutamente sem precedentesโ, escreveu ela. โNunca houve um momento em que vรกrias vacinas novas, feitas com diferentes abordagens, algumas nunca usadas antes, chegaram aos mercados ao redor do mundo em um perรญodo de tempo relativamente curto.โ
Veja tambรฉm:
Orientaรงรตes para desvendar estudos clรญnicos
Em outro artigo, escrito antes da pandemia, Sherry Ricchiardi aborda a dificuldade de os jornalistas escrevem sobre ciรชncia a partir dos estudos clรญnicos. A autora comparou a tarefa a “andar na ponta dos pรฉs em um campo minado”. E isso foi antes da Covid-19 e suas incertezas.
Ela salienta que os relatรณrios mรฉdicos estรฃo cheios de informaรงรตes contraditรณrias. E usa como exemplo uma matรฉria publicada pelo jornal The Guardian afirmando:โOs amantes do cafรฉ que bebem atรฉ 25 xรญcaras por dia podem ficar tranquilos, pois a bebida nรฃo faz mal ao coraรงรฃo, dizem os cientistasโ.
Mas a mesma matรฉria tambรฉm dizia: โAlguns estudos anteriores sugeriram que o cafรฉ endurece as artรฉrias, colocando pressรฃo sobre o coraรงรฃo e aumentando a probabilidade de um ataque cardรญaco ou derrame, com os bebedores advertidos para reduzir seu consumoโ. Ricchiardi pergunta:
Em que o leitor deve acreditar?
Em maio de 2019, segundo a autora, um painel na conferรชncia anual da Association of Healthcare Journalists (AHCJ) forneceu diretrizes para ajudar os repรณrteres a dominar os meandros dos estudos mรฉdicos e decidir quais sรฃo interessantes.
No painel, a escritora e professora Regina Nuzzo, da Universidade Gallaudet, foi crรญtica em relaรงรฃo aos trabalhos cientรญficos: โMetade dos estudos estรก errada ou hackeadaโ, referindo-se ร manipulaรงรฃo de dados para mostrar relevรขncia estatรญstica. E recomendou:
“Os jornalistas devem ser cรฉticos.โ
O artigo do IJNet listou tambรฉm orientaรงรตes de Tara Haelle, membro da Associaรงรฃo de Jornalistas de Saรบde americana. Ela sugere perguntas essenciais que devem ser feitas para determinar o valor e o enfoque da matรฉria:
- Como este estudo se encaixa no quadro geral?
- Como ele se compara a outros estudos sobre o mesmo assunto?
- ร realmente novo?
- Quem o patrocinou?
- Como isso se soma ร pesquisas anteriores?
- Qual รฉ a relevรขncia clรญnica, se houver, do estudo?
- Como isso mudarรก a prรกtica mรฉdica ou a maneira como o leitor pode escolher se comportar?
- As descobertas do estudo sรฃo importantes para os leitores agora e, em caso afirmativo, como?
Embora as recomendaรงรตes tenham sido anteriores ร crise, sรฃo mais vรกlidas do que nunca no momento em que a cobertura se concentra na vacina contra a Covid-19 e nas suas chances de colocar um fim na pandemia.
Leia tambรฉm:
https://mediatalks.com.br/2021/03/25/as-regras-de-ouro-da-seguranca-digital-de-profissionais-de-imprensa-segundo-o-comite-de-protecao-dos-jornalistas/