As ameaรงas ร liberdade de imprensa praticadas pela China saรญram das fronteiras do paรญs e chegaram ao jornalismo em lรญngua portuguesa. As determinaรงรตes para o uso de “linguagem patriรณtica” pelos profissionais da rede pรบblica Teledifusรฃo de Macau (TDM), anunciadas em marรงo, estรฃo causando revolta.
A nova regra diz que os jornalistas devem aderir ao “princรญpio do patriotismo” e do “amor a Macau”. Como resultado, jรก teriam provocado pelo menos seis demissรตes. As reaรงรตes contrรกrias vieram de todos os lados: sindicatos, associaรงรตes de classe, entidades como a Repรณrteres sem Fronteiras e atรฉ do Governo de Portugal, por envolver a ex-colรดnia que retornou ao controle da China em 1999.
Questรฃo jurรญdica
Mais do que a liberdade de imprensa, estรก em jogo tambรฉm uma questรฃo jurรญdica, o que acabou levando o caso para a esfera diplomรกtica. Em declaraรงรฃo ร Agรชncia de notรญcias Lusa depois de uma conferรชncia de cรบpula em Bruxelas, em marรงo, o Ministro dos Negรณcios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, exigiu “o respeito pela Declaraรงรฃo Conjunta”. O documento รฉ um tratado assinado entre Lisboa e Pequim em 1987, que definiu regras para Macau apรณs a transiรงรฃo de administraรงรฃo.
De acordo com a Lei Bรกsica de Macau, que funciona como uma miniconstituiรงรฃo do territรณrio e vigorarรก atรฉ 2049, โos residentes de Macau gozam da liberdade de expressรฃo, de imprensa, de ediรงรฃo, de associaรงรฃo, de reuniรฃo, de desfile e de manifestaรงรฃoโ.
Primeiro embate entre Portugal e China
Segundo um advogado ouvido pela rede alemรฃ DW, รฉ a primeira vez que o Governo portuguรชs toma posiรงรฃo explรญcita contra a China.
A politizaรงรฃo do caso estรก ocorrendo tambรฉm em Macau. No dia 5 de abril o site da prรณpria emissora publicou a notรญcia sobre uma manifestaรงรฃo diante de seu prรฉdio liderada pela Associaรงรฃo Novo Macau, uma entidade prรณ-democracia, cobrando explicaรงรตes da TDM e apontando o desrespeito ร Lei Bรกsica. Na matรฉria veio a explicaรงรฃo da emissora e do Governo negando quebra dos princรญpios legais.
Mas a turma do deixa-disso jรก entrou em campo. Um debate no Parlamento portuguรชs na รบltima terรงa-feira (6/4), motivado por uma carta assinada por 150 cidadรฃos residentes no paรญs, encabeรงada por ex-jornalistas, chegou ร conclusรฃo de que hรก liberdade de imprensa em Macau e que “nรฃo vale a pena criar caso” e colocar em risco as relaรงรตes com a China,
Um desdobramento da crise de Hong Kong
O caso de Macau parece estar diretamente associado aos conflitos em Hong Kong, a ex-colรดnia britรขnica devolvida ร China em 1997. Em 2019 o paรญs foi tomado por protestos prรณ-democracia, levando o governo chinรชs a impor em junho do ano passado uma severa lei de seguranรงa nacional.
O cerco apertou mais desde entรฃo. Hรก duas semanas o empresรกrio de mรญdia Jimmy Lai, de Hong Kong, foi condenado junto com outros notรณrios ativistas, sem direito a fianรงa.
Nem veรญculos internacionais estรฃo sendo poupados. A BBC virou alvo de ataques por causa da discordรขncia polรญtica entre os dois paรญses e teve que retirar seu correspondente de Pequim ร s pressas no dia 31 de marรงo. O paรญs jรก expulsou tambรฉm correspondentes do New York Times, Washington Post e Wall Street Journal.
Pouco antes da interferรชncia nos canais em portuguรชs de Macau, o governo de Hong Kong havia anunciado uma reforma na emissora pรบblica RTHK para reverter seu “viรฉs antigovernamental”. E a mรญdia em portuguรชs de Macau fez ampla cobertura dos protestos em Hong Kong, o que pode ter ajudado a colocรก-la na mira de Pequim.
Primeira interferรชncia direta sobre mรญdia em portuguรชs
O caso de Macau รฉ emblemรกtico pelo pioneirismo. Segundo a agรชncia Reuters, รฉ a primeira vez que meios de comunicaรงรฃo em lรญngua portuguesa da ex-colรดnia foram alvo de interferรชncia direta das autoridades chinesas.
A histรณria comeรงou no dia 10 de marรงo, quando dois jornalistas com cargo de chefia na TDM anunciaram em uma reuniรฃo com a equipe as novas regras editoriais obrigando a “promover o amor, o patriotismo e o respeito pela China”. A Reuters diz ter recebido a informaรงรฃo de dois jornalistas que estavam presentes na reuniรฃo.
O caso tem sido acompanhado com atenรงรฃo por veรญculos de comunicaรงรฃo de vรกrios paรญses. A alemรฃ Deutsche Welle publicou uma matรฉria citando um jornalista portuguรชs que trabalha na TDM. Sem se identificar, ele disse que notou impacto imediato das novas diretrizes na linha editorial dos noticiรกrios. E reclamou de violaรงรตes aos princรญpios do jornalismo:
“As orientaรงรตes violam o estatuto de jornalista, e nos foram transmitidas pela prรณpria direรงรฃo que, supostamente, deveria cumprir com os mesmos princรญpios รฉticos dos jornalistas e protegรช-los”.
A DW disse ter entrado em contato com a Comissรฃo Executiva da Teledifusรฃo de Macau para falar sobre o caso, sem resposta. Mas o Gabinete de Comunicaรงรฃo Social do Governo da regiรฃo disse por e-mail ร rede alemรฃ que a situaรงรฃo da TDM “รฉ um assunto interno que apenas diz respeito ร estaรงรฃo”, rejeitando que tenha cometido qualquer violaรงรฃo ร Lei Bรกsica.
Segundo a DW, o Chefe do Executivo de Macau, Ho lat Seng, negou ter dado instruรงรตes ร TDM, sublinhando que a emissora “รฉ integralmente subsidiada pelo Governo” e que “todos da mรญdia seguem o princรญpio de ser patriota, amar o paรญs e Macau”.
A reaรงรฃo da Associaรงรฃo de Imprensa em Portuguรชs e Inglรชs de Macau
Uma das entidades que se posicionou oficialmente contra as determinaรงรตes envolvendo a TDM foi a Associaรงรฃo de Imprensa em Portuguรชs e Inglรชs de Macau. Um comunicado no site da entidade afirma que o ato nรฃo estรก em conformidade com o Artigo 4o da Lei de Imprensa, que estabelece ser “livre a discussรฃo e crรญtica, designadamente de doutrinas polรญticas, sociais e religiosas, das leis e dos actos dos รณrgรฃos de governo prรณprios do Territรณrio [Regiรฃo] e da administraรงรฃo pรบblica, bem como do comportamento dos seus agentesโ.
O comunicado aponta tambรฉm a contradiรงรฃo com o manual editorial da emissora, que estabelece que “a regra das duas fontes” deve ser aplicada rigorosamente pelos [nossos] jornalistas quando transmitem uma notรญcia ou informaรงรฃo importanteโ.
A Associaรงรฃo diz ter apurado que na reuniรฃo os profissionais foram informados de que o descumprimento das novas regras resultaria em demissรฃo por justa causa, o que classificou de injustificรกvel e inaceitรกvel.
O que disse a rede TDM
Pode ser que isso nรฃo aconteรงa em todos os casos, mas pelo menos na matรฉria da prรณpria rede TDM, sobre a manifestaรงรฃo realizada pela Associaรงรฃo Novo Macau, a regra das duas fontes foi colocada em prรกtica. O texto publicado no dia 5 de abril comeรงa dizendo que “em favor da liberdade de imprensa, a Associaรงรฃo Novo Macau realizou esta tarde uma reuniรฃo ร porta da sede da TDM”, e registra a presenรงa de duas dezenas de pessoas, incluindo deputados, com cartazes dizendo โnรฃo [ร ] censura de notรญciasโ ou โrespeite o profissionalismo do jornalismoโ.
Informa que a Novo Macau entregou uma carta dirigida ร Comissรฃo Executiva da TDM, e que a associaรงรฃo pediu uma reuniรฃo com a Comissรฃo Executiva da emissora, โpara confirmar se existe alguma instruรงรฃo que viola a livre expressรฃo de pontos de vista por parte dos jornalistasโ. E deu espaรงo a todas as manifestaรงรตes da entidade, como a de “que tem havido autocensura e interferรชncias de chefias para restringir a liberdade de imprensa dos jornalistasโ.
Seguindo a regra de duas fontes, o texto traz tambรฉm a posiรงรฃo da emissora, que em comunicado, declarou que โrespeita o exercรญcio dos direitos legรญtimos”, mas tambรฉm โreitera que presta o serviรงo pรบblico de radiodifusรฃo televisiva e sonora, como รณrgรฃo de comunicaรงรฃo social da Regiรฃo Administrativa Especial de Macau, assumindo a responsabilidade social que lhe cabe, com a implementaรงรฃo da liberdade de imprensa consagrada na Lei Bรกsicaโ.
E registra que depois da manifestaรงรฃo, o Governo de Macau emitiu um comunicado no qual defendeu que โa liberdade de imprensa tem sido sempre respeitada e garantidaโ no territรณrio, afirmou que a empresa โopera de forma independente e em conformidade com o prรณprio estatutoโ. E que โtodos os รณrgรฃos de comunicaรงรฃo social de Macau tรชm autonomia e linhas editoriais independentes” com o Governo continuando โa respeitar e a garantir a liberdade de imprensa consagrada na Lei Bรกsicaโ.
A posiรงรฃo de Portugal
Nรฃo รฉ o que pensa Portugal. A posiรงรฃo do Ministro dos Negรณcios Estrangeiros do paรญs, Augusto Santos Silva, de exigir o respeito ao tratado que definiu as regras para Macau apรณs a transiรงรฃo de administraรงรฃo foi considerada atรญpica.
Em entrevista ร DW, o advogado Jorge Menezes, hรก mais de 20 anos no territรณrio chinรชs, comentou que a reaรงรฃo de Portugal foi uma decisรฃo inesperada.
“Foi a primeira vez que Portugal, em 20 anos, criticou a Repรบblica Popular da China e exigiu, em linguagem polรญtica, que a China cumprisse o acordo bilateral de direito internacional que tem com Portugal, que garantia que Macau respeitasse os direitos fundamentais, designadamente a liberdade de imprensa durante 50 anos”, disse.
Menezes, que tem escrito e falado sobre a erosรฃo dos direitos em Macau para vรกrios meios de comunicaรงรฃo locais, de Hong Kong e Portugal, lamentou o silรชncio de outros representantes legais de Portugal no territรณrio e da comunidade portuguesa.
“O medo que as pessoas tรชm de falar รฉ um reflexo nรฃo da sua forรงa ou falta de forรงa, nรฃo da sua coragem ou falta de coragem, mas da opressรฃo que de fato vai aumentando em Macau. Portanto รฉ o sinal dos tempos em relaรงรฃo ao que se passou recentemente em Macau e em Hong Kong”, considera.
Parlamento portuguรชs nรฃo quer “criar um caso”
Ele parece estar certo, pois jรก hรก um movimento para colocar รกgua na fervura. A notรญcia sobre o debate no Parlamento portuguรชs no dia 7 de abril foi publicada em vรกrios jornais de lรญngua portuguesa em Macau, o que pode arrefecer protestos.
O presidente da Comissรฃo de Negรณcios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, Sรฉrgio Sousa Pinto, disse que parlamento portuguรชs considera que a China tem cumprido โcom boa-fรฉโ os seus compromissos na transiรงรฃo de Macau.
Ele afirmou que โo parlamento nรฃo tem de tomar posiรงรฃo sobre todos os temas. E que “empolar e dramatizar esta questรฃo neste momento nรฃo serve nem Macau nem os portugueses em Macau nem as relaรงรตes entre Portugal e a Repรบblica Popular da Chinaโ.
O parlamentar socialista Paulo Pisco considerou que โnรฃo vale a pena criar um problema onde ele nรฃo existeโ.
โA imprensa portuguesa exerce a profissรฃo com toda a liberdade, inclusivamente contrariando posiรงรตes oficiais da China, sem qualquer problema”. Para Paulo Pisco, houve um โexcesso de zeloโ de โalguรฉm da administraรงรฃoโ da TDM, mas depois houve โum nรญtido recuoโ e โas coisas foram depois postas no seu lugarโ.
Tambรฉm o deputado social-democrata Josรฉ Cesรกrio afirmou que hรก 20 anos visita anualmente a regiรฃo e nunca verificou limitaรงรตes ร liberdade de expressรฃo. โHรก uma polรชmica criada mas, nรฃo me parece haver razรตes para existir em Macauโ, comentou, apรณs recordar que a China financia vรกrios รณrgรฃos de comunicaรงรฃo social em lรญngua portuguesa sem interferir nas questรตes editoriais.
Para Cesรกrio, โeste nรฃo รฉ o momento de criar um facto polรญtico, porque nรฃo รฉ correto nem justo pelo modo quase exemplar como a China tem cumpridoโ as suas obrigaรงรตes previstas na Declaraรงรฃo Conjunta Luso-Chinesa sobre a transiรงรฃo de Macau para a administraรงรฃo chinesa, concretizada em dezembro de 1999.
Joรฃo Oliveira, do PCP, declarou estar em curso uma โtentativa de desestabilizaรงรฃo da situaรงรฃo em Macau, com transposiรงรฃo da situaรงรฃo de Hong Kong e alguma mimetizaรงรฃo de processos e expedientesโ e alertou para โas consequรชncias que podem advir para a comunidade portuguesa residente em Macau, que pode ser apanhada num fogo cruzadoโ. โO Estado portuguรชs nรฃo deve acompanhar a acรงรฃo de outros Estados no sentido de exacerbar esses elementos de desestabilizaรงรฃoโ, salientou.
Sรณ o deputado do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, assumiu uma posiรงรฃo diferente, recordando que a denรบncia dos ex-jornalistas foi secundada pela organizaรงรฃo Repรณrteres sem Fronteiras, โpelo que merece uma atenรงรฃo em particularโ. โFaz sentido que o Governo portuguรชs indague sobre o que aconteceu e que a Assembleia da Repรบblica tome uma posiรงรฃo rejeitando qualquer intromissรฃo na liberdade de imprensa, seja em Macau seja em qualquer parte do mundoโ.
A posiรงรฃo da Repรณrteres sem Fronteiras
O responsรกvel dos Repรณrteres Sem Fronteiras (RSF) na รsia disse ร agรชncia Lusa que o canal pรบblico de rรกdio e televisรฃo Teledifusรฃo de Macau pode converter-se num “รณrgรฃo de propaganda” da China, devido ร “censura da direรงรฃo”.
“Sabemos como as coisas se passam na China e percebe-se o espรญrito deste tipo de ordem, que รฉ o de obrigar os jornalistas a alinharem-se com as decisรตes do partido”, afirmou.
“Seria uma regressรฃo enorme que Hong Kong e Macau perdessem os seus รณrgรฃos de comunicaรงรฃo pรบblicos e que estes se tornassem รณrgรฃos do Estado, ao serviรงo da propaganda dos respetivos Governos, alinhados com o Governo central da China”, acrescentou, sublinhando a importรขncia da independรชncia dos canais pรบblicos.
Alviani referiu que “รฉ preciso lembrar que um meio de comunicaรงรฃo pรบblico pertence ao pรบblico, existe para informar o pรบblico, livre dos constrangimentos comerciais de outros รณrgรฃos, e deve ser mais independente que um รณrgรฃo privado”, e nรฃo “um รณrgรฃo controlado pelo Estado, para exibir sua propaganda”.
Chris Yeung, Presidente da Associaรงรฃo de Jornalistas de Hong Kong e um dos crรญticos da nova legislaรงรฃo imposta no paรญs, disse ร DW acreditar que Macau e Hong Kong sรฃo as faces mais visรญveis de uma “abordagem endurecida” das autoridades chinesas na forma como lidam com a mรญdia.
“Vemos situaรงรตes semelhantes aqui, como รฉ o caso da RTHK [Radio Television Hong Kong], a emissora pรบblica do Governo que enfrenta cada vez mais pressรฃo na cobertura e na linha editorial”.
O jornalista admite que, no passado, os meios de comunicaรงรฃo em lรญngua inglesa gozavam de maior liberdade, mas o cenรกrio tem se agravado com a guerra entre os paรญses ocidentais e o Governo chinรชs em torno de questรตes” como a situaรงรฃo da minoria uigur em Xinjiang ou o movimento prรณ-democracia em Hong Kong.
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