A execuĆ§Ć£o com dez tiros em plena luz do dia do repĆ³rter e apresentador grego Giorgios Karaivaz, um dos mais conhecidos do paĆ­s, causou comoĆ§Ć£o nĆ£o apenas na GrĆ©cia e expĆ“s os riscos do jornalismo investigativo atĆ© na Europa. O caso ocorrido na sexta-feira (9/4) repercutiu nas agĆŖncias de notĆ­cias e nos principais jornais de todo o mundo.

E motivou uma manifestaĆ§Ć£o da presidente da UniĆ£o Europeia, Ursula von der Leyen. Ela classificou os assassinatos de jornalistas como um ato desprezĆ­vel e covarde:

ā€œA Europa representa a liberdade. E a liberdade de imprensa Ć© talvez a mais sagrada de todas. Jornalistas devem ser capazes de trabalhar com seguranƧa.ā€

 

O International Press Institute (IPI) disse em comunicado que, se confirmada a motivaĆ§Ć£o relacionada ao trabalho, este serĆ” o primeiro assassinato direcionado a um jornalista na UniĆ£o Europeia desde o do jornalista eslovaco JĆ”n Kuciak, em 2018. A entidade classificou o episĆ³dio como um dia sombrio para a liberdade de imprensa na UniĆ£o Europeia.

Os riscos para o jornalismo investigativo na regiĆ£o tĆŖm aumentado, mas o crime eleva o nĆ­vel das preocupaƧƵes. Em outubro de 2020, o Conselho Europeu publicou um estudo dedicado Ć  jornalista maltesa Daphne Galizia, assassinada em 2017 com a explosĆ£o de uma bomba em seu carro, e a todos os profissionais de imprensa que perderam suas vidas no exercĆ­cio da profissĆ£o.

17 jornalistas assassinados sĆ³ este ano

O caso de Karaivaz soma-se a uma preocupante estatĆ­stica: atĆ© 10 de abril, a Press Emblem Campaign, organizaĆ§Ć£o baseada em Genebra, jĆ” computou 17 jornalistas mortos, com o maior nĆŗmero de ocorrĆŖncias no AfeganistĆ£o (4), Bangladesh e PaquistĆ£o (2 cada).

Nesse levantamento, sĆ³ hĆ” um caso ocorrido na Europa, na Turquia, que ainda nĆ£o faz parte da UniĆ£o Europeia. AlĆ©m disso, o caso estĆ” ligado a motivos religiosos. No dia 9 de marƧo passado, o jornalista Hazım Ɩzsu, da Rahmet FM (MisericĆ³rdia FM, em portuguĆŖs), foi assassinado a tiros em sua casa, na provĆ­ncia de Bursa.

O jornalista apresentara um programa naquele dia. O autor foi preso seis dias depois e aguarda julgamento. Ele confessou o crime e disse que queria ā€œcalar a vozā€ de Ɩzsu por nĆ£o gostar de alguns de seus comentĆ”rios sobre valores religiosos.

No ano passado, o levantamento da Press Emblem Campaign contabilizou 92 jornalistas assassinados, incluindo dois no Brasil.

Brasil Ć© oitavo na impunidade de assassinatos de jornalistas

A GrĆ©cia e nenhum paĆ­s da UniĆ£o Europeia fazem parte do ranking da Impunidade de Assassinatos de Jornalistas, que inclui 12 paĆ­ses, entre eles o Brasil.  

Segundo o ranking elaborado pelo CPJ (ComitĆŖ de ProteĆ§Ć£o aos Jornalistas), 277 jornalistas foram assassinados no perĆ­odo de 10 anos encerrado em 31 de agosto de 2020 e que em 83% desses casos ninguĆ©m foi condenado.

Do total de casos nĆ£o esclarecidos, 80% se concentram nos 12 paĆ­ses apontados e o Brasil ocupa a 8ĀŖ posiĆ§Ć£o do ranking, que considera o nĆŗmero de jornalistas mortos cujos crimes nĆ£o foram esclarecidos em proporĆ§Ć£o Ć  populaĆ§Ć£o de cada paĆ­s:

Dez tiros Ć  queima-roupa

O jornalista, um rosto familiar que aparecia diariamente na Star TV, era especializado em coberturas policiais e investigaƧƵes criminais. Ele foi baleado ao sair de seu carro, quando chegava em casa, situada na parte sul de Atenas.

Karaivaz tinha 52 anos e voltava da gravaĆ§Ć£o do programa ā€œVerdades com Zinaā€, no qual trabalhava desde 2017. Ao longo da carreira de vĆ”rias dĆ©cadas, trabalhou em diversos veĆ­culos, e por mais tempo no jornal Eleftheros Typos. TambĆ©m fundou o site de notĆ­cias Bloko, especializado em investigaĆ§Ć£o criminal. Seu assassinato foi a manchete do Ćŗltimo fim de semana com o tĆ­tulo: ā€œA triste despedidaā€.

 

Os assassinos se aproximaram com uma scooter, que foi abandonada em seguida numa rodovia. O garupa fez os disparos a uma distĆ¢ncia de menos de cinco metros. NĆ£o foram ouvidos tiros, porque foi utilizada uma pistola 9mm com silenciador.

Dezessete cartuchos de balas foram encontrados no local. Segundo o jornal grego Kathimerini, a autĆ³psia revelou que o jornalista foi atingido por dez balas, duas na cabeƧa, seis no peito, uma no pescoƧo e uma na palma da mĆ£o que usou na tentativa de se proteger.

CĆ¢maras flagraram assassinos

Falando no local do crime, Maria Antoniadou, presidente do sindicato dos jornalistas, disse:

ā€œQuem pensa que desta forma pode silenciar os jornalistas estĆ” enganado. HĆ” outros 6.099 que vĆ£o investigar e exigir saber o que aconteceu.ā€

CĆ¢meras de seguranƧa flagraram a dupla. A investigaĆ§Ć£o se concentra nos Ćŗltimos trabalhos do jornalista, que jĆ” havia escrito vĆ”rias vezes sobre a forƧa do crime organizado no paĆ­s. Numa delas, denunciou sua influĆŖncia nas decisƵes dentro da prĆ³pria polĆ­cia.

AlĆ©m das imagens das cĆ¢meras, estĆ£o sendo analisadas as mais recentes reportagens do jornalista na TV e no site e seus contatos via celular e computador. Uma das linhas de investigaĆ§Ć£o avalia se os matadores teriam sido contratados no exterior e jĆ” teriam fugido do paĆ­s.

Ao saber da notĆ­cia, Katia Makri, Ć¢ncora da Star TV, declarou:

ā€œĆ‰ o nosso Giorgos Karaivaz … que o pĆŗblico vĆŖ todos os dias, que durante todos esses anos trabalhou em muitos assuntos difĆ­ceis, com quem juntos fizemos vĆ”rias apuraƧƵes sobre crimes. Ɖ muito difĆ­cil atĆ© mesmo acreditar que algo assim aconteceu. Ɖ uma notĆ­cia que realmente nos chocou.ā€

No mesmo dia, jornalista detido na RĆŗssia

No mesmo dia da morte de Karaivaz, outra notĆ­cia de desrespeito Ć  liberdade de imprensa veio da RĆŗssia.

LĆ”, a sexta-feira marcou a detenĆ§Ć£o de um dos principais jornalistas investigativos da RĆŗssia, Roman Anin. Ele Ć© o fundador do site de notĆ­cias iStories e um dos repĆ³rteres russos que trabalharam nas investigaƧƵes do Panama Papers. Com os documentos vazados, ele expĆ“s o funcionamento interno do Kremlin e de pessoas prĆ³ximas a Putin.

Os policiais vasculharam o apartamento de Anin em Moscou e apreenderam telefones e outros equipamentos eletrƓnicos e documentos. O caso mereceu um post da ComissƔria de Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic:

 

ApĆ³s a busca em seu apartamento, Anin foi levado a uma delegacia de polĆ­cia. Ele se recusou a responder Ć s perguntas e foi liberado Ć  noite, mas foi convocado para novo interrogatĆ³rio nesta segunda-feira.

A detenĆ§Ć£o estĆ” ligada Ć  investigaĆ§Ć£o feita por Anin em 2016 sobre um aliado prĆ³ximo de Vladimir Putin, cuja esposa, ele escreveu, parecia estar usando um super iate estimado em mais de 100 milhƵes de dĆ³lares. O Novaya Gazeta, jornal que publicou o artigo intitulado ā€œO segredo da princesa Olgaā€, foi processado com sucesso em um tribunal russo pelo presidente da Rosneft, Igor Sechin, que disse que o artigo prejudicou sua reputaĆ§Ć£o. No mĆŖs passado, a polĆ­cia retomou a investigaĆ§Ć£o e listou Anin como testemunha.

A redaĆ§Ć£o do Novaya Gazeta, jornal que publicou o artigo do iate, escreveu que Anin estava sendo alvo de vĆ”rias investigaƧƵes criminais, incluindo outra movida pela Sechin contra a iStories. ā€œTudo o que estĆ” acontecendo agora com Roman Anin Ć© vinganƧaā€, escreveu o jornal.

No ano passado, a iStories publicou e-mails vazados enviados e recebidos pelo ex-genro de Putin, expondo o estilo de vida rico de uma das filhas de Putin. No mĆŖs passado, a iStories publicou um artigo alegando ligaƧƵes entre um comandante sĆŖnior do FSB e o submundo do crime.

Ao ser liberado na sexta-feira, Anin confirmou que o caso estava relacionado Ć  histĆ³ria do super iate, acrescentando que a matĆ©ria foi baseada em fotografias pĆŗblicas disponĆ­veis no Instagram. Em declaraƧƵes aos jornalistas, ele disse que os investigadores levaram tudo de seu apartamento:

ā€œEles levaram todos os documentos, cartƵes de memĆ³ria, e todos os computadores e celulares, incluindo aqueles que nĆ£o eram meus.ā€

ƚltimo jornalista assassinado na GrĆ©cia em 2010

A GrĆ©cia ocupa a 65ĀŖ posiĆ§Ć£o no ƍndice de Liberdade de Imprensa da RepĆ³rteres sem Fronteiras, Ć  frente do Brasil, que aparece no 107Āŗ lugar.

O Ćŗltimo assassinato de um jornalista na GrĆ©cia tinha ocorrido hĆ” mais de dez anos, em 2010, de forma muita parecida com a execuĆ§Ć£o de Karaivaz. Naquela ocasiĆ£o, o repĆ³rter investigativo Sokratis Giolias foi baleado na porta de casa em Atenas por agressores mascarados que atiraram nele dezesseis vezes, na frente de sua esposa grĆ”vida.

Giolias, na Ć©poca com 37 anos, estava prestes a lanƧar uma sĆ©rie investigativa sobre corrupĆ§Ć£o na rĆ”dio na qual trabalhava. O grupo de extrema esquerda Seita dos RevolucionĆ”rios assumiu a responsabilidade, mas ninguĆ©m jamais foi preso.

Em julho passado, o proprietĆ”rio de um tabloide local, Stefanos Chios, foi baleado no pescoƧo e no peito, mas sobreviveu. Ele estava do lado de fora de casa, quando foi alvejado por um homem encapuzado. O caso ainda estĆ” sob investigaĆ§Ć£o.

Kuciak era o Ćŗltimo jornalista morto na UE

O jornalista investigativo eslovaco JƔn Kuciak foi morto a tiros em sua casa, junto com sua noiva, em fevereiro de 2018.

Kuciak trabalhava para o site Aktuality.sk, e vinha fazendo uma sĆ©rie de reportagens sobre fraudes fiscais envolvendo empresĆ”rios e o partido governante do paĆ­s. O assassinato ocorreu na casa do jornalista na aldeia de VeľkĆ” Mača, a cinco quilĆ“metros da capital Bratislava. Kuciak foi baleado no peito e sua noiva Martina KuÅ”nĆ­rovĆ” foi baleada na cabeƧa.

Cinco meses antes do crime, Kuciak registrara queixa informando que fora ameaƧado pelo empresĆ”rio Marian Kočner, um dos alvos de suas reportagens. Pouco mais de um mĆŖs depois da queixa, ele reclamou em sua conta no Facebook que nada estava sendo feito:

ā€œJĆ” se passaram 44 dias desde que apresentei uma reclamaĆ§Ć£o contra MK por me ameaƧar, Kuciak escreveu em sua pĆ”gina do Facebook. E meu caso provavelmente nem foi atribuĆ­do a um oficial especĆ­fico ainda.”

O crime chocou o paĆ­s. Os protestos levaram Ć  renĆŗncia do entĆ£o ministro do Interior Robert Kalinak e, posteriormente, do ex-primeiro-ministro Robert Fico e do chefe de polĆ­cia Tibor GaÅ”par.

Em 27 de setembro de 2018, sete meses apĆ³s o assassinato, a polĆ­cia eslovaca deteve um grupo de oito pessoas.

Uma delas foi identificada como TomĆ”Å” S, que trabalhava como investigador de polĆ­cia na cidade vizinha de KomĆ”rno. Junto com ele foi preso seu primo Miroslav M.

TambƩm em KomƔrno foi presa Alena Z, que confirmou ter trabalhado como intƩrprete para o empresƔrio Marian Kocner. De acordo com o jornal Dennik N, Alena Z teria agido como intermediƔria entre quem ordenou o assassinato e os homens contratados para executƔ-lo.

Em outubro de 2018, o procurador-geral JaromĆ­r ČižnĆ”r, que JĆ”n Kuciak foi morto em troca de uma quantia de 70 mil euros, mas nĆ£o confirmou se Marian Kočner era o principal suspeito. O caso ainda nĆ£o foi encerrado.

ExplosĆ£o matou jornalista no ano anterior

A morte de Kuciak ocorreu menos de um ano depois da de Daphne Caruana Galizia, jornalista maltesa que morreu em outubro de 2017 quando o carro que ela dirigia explodiu em Bidnija, perto de Mosta.

Quinze dias antes da explosĆ£o que despedaƧou seu veĆ­culo, Galizia tinha registrado uma queixa na polĆ­cia dizendo que estava sendo ameaƧada, relatou o Malta Times.

Galizia conduziu uma sĆ©rie de investigaƧƵes de corrupĆ§Ć£o e sofreu vĆ”rios processos por causa delas. Numa sĆ©rie de artigos sobre Silvio Debono, proprietĆ”rio da empresa de investimentos imobiliĆ”rios DB Group ela revelou que ele fechara um acordo irregular com o governo de Malta para assumir uma grande extensĆ£o de terreno pĆŗblico.

Debono planejava construir no local um Hard Rock Hotel e duas torres de apartamentos para venda, e apĆ³s as reportagens ajuizou 19 processos por difamaĆ§Ć£o contra a jornalista.

Galizia tambĆ©m conduziu uma investigaĆ§Ć£o ligando o entĆ£o Primeiro Ministro Joseph Muscat e sua esposa ao escĆ¢ndalo do Panama Papers.

Leia tambĆ©m: 

https://mediatalks.com.br/2020/11/11/estudo-liberdade-imprensa-europa/

https://mediatalks.com.br/2021/03/24/jornalistas-entre-figuras-publicas-que-politica-de-moderacao-do-facebook-permite-atacar-ou-ter-morte-pedida/