A Reportagem Fotográfica do ano premiada pela World Press Photo, cujos resultados foram anunciados nesta quinta-feira (14/4) em Amsterdam, mostra em imagens a luta das mulheres palestinas para serem mães ou aumentarem suas famílias apesar de não terem direito a visitas íntimas a seus maridos presos em Israel.

O trabalho, realizado desde 2015 pelo fotógrafo italiano Antonio Faccilongo, retrata as histórias de amor de casais que venceram as grades para ter seus filhos, tendo como pano de fundo um dos conflitos mais longos e complicados da história contemporânea.

Atualmente existem cerca de 4.200 famílias palestinas nessa situação, de acordo com relatório de fevereiro de 2021 da organização de direitos humanos B’Tselem. Os acusados de terrorismo ou crimes contra a segurança de Israel não têm direito a contato com suas esposas.

A superação dessa situação é o tema de “Habibi”, que em árabe significa “meu amor”.

 

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As fotografias que ilustram esta matéria são as da série premiada, que é também um retrato da obstinação dessas mulheres palestinas, que recorrem à fertilização in vitro do sêmen contrabandeado das prisões para conquistar uma vida normal sob a ocupação israelense que já dura mais de 50 anos.

Para Liv Hansson, especialista dinamarquesa que investigou a fertilidade na Palestina, a prática do contrabando de esperma ressalta o espírito de resistência à ocupação:

“Uma famosa frase do líder palestino Yasser Arafat afirma que os ventres das mulheres palestinas são a maior arma da Palestina.”

Como nasceu a reportagem

Antonio conta que sempre se interessou pelo conflito palestino-israelense, e que este foi o maior trabalho de sua carreira.

Depois de se formar em ciências da comunicação e obter um mestrado em fotojornalismo, ele cobriu questões sociais, políticas e culturais na Ásia e no Oriente Médio. Sua primeira visita a Israel e à Palestina ocorreu em 2008.

E sete anos ele começou a fotografar o cotidiano das famílias de presos palestinos para realizar Habibi.

Antonio fala de suas dificuldades iniciais:

“No primeiro momento, não foi fácil estabelecer contato com algumas dessas mulheres. Elas estão sozinhas, somos de culturas diferentes, sou um homem ocidental. Então, não foi fácil.”

Aos poucos, o fotógrafo foi ganhando a confiança tanto das mães como dos filhos, acompanhando suas brincadeiras:

“Quando acompanhava a história, às vezes me via naquelas crianças.”

         

“A estrutura da família é tudo para os palestinos”

Essa foi uma das principais lições aprendidas com o trabalho. Antonio conta que começou acompanhando o dia a dia das mulheres, mas concluiu que não era suficiente:

“Percebi que era muito importante ter algumas imagens evocativas. Assim, as pessoas podem entender mais os sentimentos e emoções das pessoas envolvidas nesta história.”

Suas imagens mostram como os condenados, apesar de presos num local distante, continuam a estar presentes na vida de suas famílias, com suas fotos penduradas em local de destaque da casa.

Os objetos e roupas dos maridos presos são exibidos com orgulho na casa.

Narrativa da luta humana 

Um dos jurados da World Press Photo, Ahmed Najm, assim classificou o trabalho:

“A perspectiva fotojornalística, juntamente com a singularidade da história, criaram uma obra-prima. Esta é uma narrativa da luta humana no século 21.”

Contrabando a partir da década de 2010

A prática do contrabando de sêmen passou a ser feita pelos presos com penas mais longas a partir da década de 2010.

São comuns os casos de condenados há vários anos longe da família e que ainda permanecerão muito tempo afastados.

O prisioneiro palestino mais antigo está há mais de quatro décadas na prisão, cumprindo prisão perpétua. É Al-Barghouthi, marido de Iman Nafi, retratada na reportagem.

Contato físico proibido

A foto de uma televisão velha de uma das casas das famílias acompanhadas, incapaz de captar sinal, sugere as dificuldades de comunicação entre os homens na prisão e suas famílias.

Para visitar um prisioneiro palestino em uma prisão israelense, os visitantes precisam superar uma série de limitações resultantes de leis de fronteira, regulamentos penitenciários e restrições estabelecidas pela Agência de Segurança de Israel (ISA).

Os familiares, principalmente mulheres e filhos, viajam por várias horas para ver os presos por 45 minutos, através de uma divisória transparente. A conversa é por telefone.

O contato físico é proibido, exceto para crianças menores de dez anos, que têm dez minutos no final da visita para abraçar os pais.

Como acontece o contrabando

É nesse breve contato com os filhos que o sêmen é enviado, sem que eles saibam.

Segue dentro de presentes para os filhos, como tubos de canetas, embalagens plásticas de doces ou barras de chocolate.

Os filhos ignoram os obstáculos extraordinários que o esperma de seu pai terá que superar a partir daí para alcançar os óvulos de sua mãe. 

Fertilização in vitro

O sêmen é levado a uma clínica especializada da Faixa de Gaza ou da Cisjordânia. Se chegar em boas condições (até no máximo 48 horas, dependendo de como for conservados), é congelados para a realização do tratamento da fertilização in vitro.

É necessário que um membro da família ateste a procedência do sêmen. Além disso, as mulheres são aconselhadas a a contar sobre o procedimento a todos de sua família e do povoado onde vivem, para evitar comentários maldosos.

Com o apoio dos meios de comunicação, das autoridades religiosas e das autoridades palestinas, a prática se tornou menos arriscada para as mulheres.

As mulheres se submetem a meses de procedimentos rígidos, mas dizem que todas as dificuldades valem a pena.

Em fevereiro de 2021, o Middle East Monitor relatou que o 96º bebê palestino havia nascido com esperma contrabandeado de prisões israelenses. Trata-se de Mujahid, filho de Muhammad Al-Qidra, de 35 anos, preso em 2014 na Faixa de Gaza e condenado a 11 anos de prisão.

Antonio retratou uma das mulheres que conseguiu superar todas essas dificuldades para posar orgulhosa com seus dois gêmeos. Ao lado da poltrona, a foto do marido preso.

 

O fotógrafo conta que ele próprio foi tocado pela reportagem:

“Para mim, esse projeto representa uma reconexão com minha mãe e com minha avó.”

 Tratamento diferenciado para condenados israelenses

Os palestinos reclamam do tratamento diferenciado a condenados israelenses. O exemplo mais citado é o de Yigal Amir, extremista israelense condenado à prisão perpétua pelo assassinato do primeiro ministro de Israel Yitzhak Rabin, em 1995.

Apesar da gravidade de seu crime, Yigal foi autorizado a se casar e a receber visitas íntimas, que resultaram no nascimento de seu filho em 2007.

Após a conclusão de Habibi, Antonio tem se dedicado às aulas que dá como professor de fotografia na Rome University of Fine Arts e na American University of Rome. Ele é autor de vários projetos exibidos nos mais importantes concursos e exposições internacionais.

Para realizar realizar Habib, ele utilizou a verba de prêmios e bolsas e assim define seu trabalho:

 “Minha fotografia tem a ambição de ser uma ponte cultural para aproximar as pessoas.”

 

Além de ser apontada como a Reportagem do Ano, Habibi ganhou também na categoria de Projetos de Longo Prazo, aberta a projetos realizados ao longo de pelo menos três anos diferentes. A presidente do júri, Nayan Kakshapati, explicou o que norteou a escolha de Habibi como Reportagem do Ano:

“Queríamos algo que tocasse fundo, mas que também olhasse para o passado, para o presente, e de alguma forma para o futuro.”

         

Sobre as pessoas com quem conviveu durante os anos em que produziu Habibi, o fotógrafo diz:

“Eles não querem ser esquecidos pelo resto do mundo. Isso é fundamental. Porque se você pensa que não é importante para as outras pessoas, você perde a esperança.”

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