O caso de George Floyd, julgado em 20/4 nos Estados Unidos, colocou em evidรชncia os desafios do jornalismo policial, com muitos debates sobre o tom certo e as prรกticas mais adequadas para a cobertura de crimes. Um dos problemas universais รฉ que, pressionados pela urgรชncia em noticiar casos rumorosos, muitas vezes os jornalistas reproduzem, sem questionar, declaraรงรตes iniciais de autoridades policiais que depois acabam sendo confrontadas com informaรงรตes de outras fontes, como familiares de vรญtimas ou advogados.

Esse foi tema de um artigo de Danielle K. Kilgo, professora de Jornalismo, Diversidade e Igualdade da Universidade de Minnesota, publicado no portal de textos acadรชmicos The Conversation. Ela critica a dependรชncia excessiva da imprensa para com a polรญcia e avalia o quanto isso pode ser prejudicial para a credibilidade da mรญdia. 

Estudiosa da cobertura sobre casos policiais e protestos, Kilgo escreveu que existe um “ponto cego no jornalismo policial: uma tendรชncia de seguir a narrativa disse a polรญcia sem questionar se ela estรก certa”. Para fundamentar sua opiniรฃo, ela apresentou exemplos de casos policiais nos quais o relato de autoridades policiais acabou divergindo do que disseram posteriomente outras fontes. 

O caso de Adam Toledo, de 13 anos, baleado e morto por um policial em marรงo deste ano em Chicago, รฉ um exemplo citado pela professora:

“A morte de Adam Toledo poderia muito bem ter virado manchete internacional em 29 de marรงo de 2021 se a narrativa inicial fosse diferente” 

Arma encontrada na cena do crime em que Toledo foi assassinado (Foto: Twitter/Departamento de Polรญcia de Chicago)

A estudiosa faz um histรณrico do caso, lembrando que as primeiras notรญcias do incidente foram baseadas em um comunicado da polรญcia que dizia que Toledo morreu em um “confronto armado“. A imagem de uma arma recuperada na cena do crime tambรฉm foi liberada. 

Durante uma audiรชncia de fianรงa para o homem que estava com Toledo quando a perseguiรงรฃo comeรงou, os promotores disseram que uma arma estava na mรฃo da crianรงa quando a polรญcia o matou a tiros. 

Ela lembra que semanas depois, imagens registradas por uma cรขmera lanรงaram dรบvidas sobre a precisรฃo do comunicado divulgado pela polรญcia. O videoclipe divulgado mostra uma perseguiรงรฃo que termina com Toledo voltando o corpo em direรงรฃo ao policial, de braรงos erguidos.

E observa que nรฃo hรก arma em suas mรฃos quando o tiro รฉ disparado. O gabinete do procurador do condado de Cook disse que o promotor โ€œnรฃo se informou totalmenteโ€ antes de falar. Outros vรฃo mais longe, dizendo que o promotor mentiu. De qualquer forma, a filmagem da cรขmera corporal mudou a narrativa, na avaliaรงรฃo de Kilgo. 

Fontes nรฃo confiรกveis?

Ela reconhece que os jornalistas acabam sendo obrigados a fazer rapidamente uma primeira leitura da histรณria. Para isso, na grande maioria das vezes dependem de relatos e declaraรงรตes feitas por fontes oficiais.

“Autoridades costumam ser mais acessรญveis sob a pressรฃo do prazo, especialmente se os amigos e familiares da vรญtima forem difรญceis de contactar ou nรฃo estiverem dispostos a falar com a imprensa.

E mesmo que as autoridades estejam erradas ou digam algo difamatรณrio, um jornalista  pode muitas vezes relatar o que dizem com imunidade legal .”

Para a pesquisadora, isso dรก ร s fontes policiais a oportunidade de moldar a versรฃo inicial do evento, de modo a levar sua versรฃo da histรณria ร  consciรชncia pรบblica antes que as vรญtimas, familiares e seus apoiadores possam fazรช-lo. O problema รฉ que nem sempre a versรฃo condiz com a realidade, como ela descreve:  

 “Muitas vezes os policiais transmitem sua versรฃo de maneira incompleta, enganosa ou alinhada a razรตes estratรฉgicas. As declaraรงรตes oficiais podem, intencionalmente ou nรฃo, reter ou omitir informaรงรตes. 

No caso de Toledo, o depoimento original dado ร  mรญdia no dia do tiroteio mencionava que ‘um agressor armado’, um ‘homem’, fugiu da polรญcia e ocorreu um ‘confronto’. ‘O policial disparou sua arma atingindo o agressor no peito’.”

Ela ressalta que nรฃo hรก menรงรฃo de que, como mais tarde foi revelado, aparentemente a arma foi lanรงada e que Toledo estava levantando as mรฃos. A matรฉria sobre o incidente apresentou Toledo como um “John Doe” [pseudรดnimo usado quando o nome verdadeiro de um homem รฉ desconhecido], com idade entre 18 e 25 anos. “Nรฃo revelou que Toledo era uma crianรงa”, observa. 

Foto: Mike Von/Unsplash

A professora diz que algo semelhante aconteceu no caso George Floyd. Fontes policiais de Minneapolis divulgaram ร  imprensa um comunicado cujo tรญtulo era  “homem morre apรณs incidente mรฉdico durante interaรงรฃo policialโ€. 

O texto destacava que o “suspeito” havia “resistido fisicamente” e morreu depois de “sofrimento mรฉdico”. Nรฃo diz que um oficial manteve Floyd imobilizado no chรฃo com um joelho no pescoรงo por mais de nove minutos.

Alรฉm disso, ela lembra que normalmente a polรญcia americana nรฃo divulga a filmagem de cรขmeras imediatamente,  se รฉ que divulga. A maioria das filmagens รฉ mantida em sigilo por semanas para investigaรงรฃo interna antes de se tornar acessรญvel ao pรบblico.

E atรฉ que sejam divulgadas, o pรบblico pode jรก ter sido alimentado com uma narrativa sobre o que aconteceu e as origens dos envolvidos, segundo Kilgo. 

“Jornalistas sรฃo criticados por serem rรกpidos demais em confiar na polรญcia ao relatar as histรณrias das vรญtimas. ร‰ por isso que o pรบblico tende a saber mais sobre as histรณrias criminais das vรญtimas e suas famรญlias, especialmente logo apรณs um incidente, do que sobre as histรณrias dos policiais que atiraram nelas.”

Fracasso do jornalismo?

Depois de publicar matรฉrias policiais incompletas, enganosas ou totalmente erradas com muita frequรชncia, repรณrteres e editores estรฃo agora se manifestando sobre o problema.  Para a professora, รฉ notรกvel que os jornalistas estejam entre os mais crรญticos da resposta da mรญdia ao assassinato de Toledo.

Nikole Hannah-Jones, do The New York Times, tuitou: “ร‰ por isso que os jornalistas devem parar de reproduzir relatos de policiais como fatosโ€.

https://twitter.com/nhannahjones/status/1382795807368286211

Jรก Chris Geidner, o diretor executivo do The Appeal, um site de mรญdia sobre lei e justiรงa criminal, foi alรฉm: โ€œ(…) Qualquer narrativa baseada em ‘a polรญcia disse’ รฉ uma falha do jornalismo.

 

Danielle destaca uma pesquisa Gallup de agosto de 2020 que revelou que a confianรงa na polรญcia caiu nos Estados Unidos para seus nรญveis mais baixos desde que o estudo comeรงou a registrar o problema, em 1993.  Apenas 48% dos entrevistados disseram ter grande confianรงa na polรญcia.

Da mesma forma, a confianรงa na mรญdia atingiu um novo nรญvel. E o Instituto Reuters para Estudos do Jornalismo na Universidade de Oxford analisou a situaรงรฃo da confianรงa na imprensa em quatro paรญses, incluindo o Brasil, e apontou os caminhos os jornalistas recuperarem essa confianรงa. 

Para Daniele Kilgo, tratar as fontes policiais com o ceticismo necessรกrio e apropriado pode fornecer ao pรบblico um quadro mais completo de incidentes como tiroteios envolvendo policiais e mudar uma realidade que privilegia algumas vozes em detrimento de outras. Ela lembra que nรฃo รฉ uma ideia radical: 

“Questionar e verificar informaรงรตes sempre fez parte do trabalho do jornalista.”

Leia tambรฉm

https://mediatalks.com.br/2021/04/20/brasil-cai-quatro-posicoes-no-ranking-mundial-de-liberdade-de-imprensa/