Poucas indústrias foram tão desafiadas pelas novas tecnologias e pela digitalização como a de notícias, tornando a mudança cultural nas organizações jornalísticas uma questão de sobrevivência para as empresas e para o próprio setor. Mas por onde começar? Como transformar mentalidades e substituir processos que rodam da mesma forma há décadas? 

Para responder a essas perguntas, a Wan-Ifra (World Association of News Publishers) acaba de publicar um guia destinado a ajudar redações a iniciarem processos de mudança. O manual resume as principais lições do Programa de Mudança Cultural para Editores de Notícias da América Latina, realizado entre outubro de 2020 e janeiro de 2021. 

Organizado pela Wan-Ifra e pelo Facebook Journalism Project, o programa reuniu 30 executivos de meios de comunicação latino-americanos em encontros virtuais com nove líderes de transformação digital de dentro e de fora da indústria jornalística. Ao longo de oito sessões, os participantes exploraram os diversos aspectos da mudança cultural e compartilharam experiências. 

As sessões guiaram os participantes na reflexão sobre como fazer mudanças profundas na operação de suas organizações, envolvendo a  forma de pensar em si mesma, em seu papel na sociedade, na forma de trabalhar, competir e monetizar.

Entre os veículos que fizeram parte do programa estavam os grupos Globo, Record, Band, SBT e Gazeta do Povo, do Brasil. Mas as ideias contidas no documento não são úteis apenas para grandes redações. São valiosas para organizações de qualquer tamanho ou mesmo para profissionais que dirigem iniciativas independentes, que estão no mesmo barco navegando no mar revolto da digitalização que revolucionou da propaganda à forma de acessar e consumir notícias. 

“Queimar navios”

Foi justamente uma analogia marítima utilizada pela Wan-Ifra para ilustrar a capa do guia, simbolizando a mudança inevitável. A ideia é explicada no início do documento: 

Alguns historiadores atribuem a decisão de “queimar os navios” a Hernán Cortés na Conquista de México. Outros, a Alexandro Magno, mais de 1000 anos antes, na costa fenícia.

Quem tenha sido o autor da ideia, ele decidiu atear fogo à sua frota para que seus homens não pudessem fugir do que era uma missão quase impossível.

O impacto da internet é dividido em duas fases. Na primeira, os líderes dos meios de comunicação tradicionais não se viram obrigados a tomar decisões tão drásticas diante da chegada da rede mundial, por não terem dado a ela a importância que merecia. E que por isso as redações digitais não eram levadas muito em conta há 20 anos.

Para a Wan-Ifra, isso foi positivo, pois as equipes digitais puderam experimentar com tranquilidade. E assim surgiu uma grande variedade de produtos inovadores e de qualidade.

Isso duraria até o fim da primeira década do século 21, quando o modelo de negócio tradicional dos meios de comunicação baseado na circulação e na publicidade sofreu uma ruptura. E a forma de consumir notícias se tornou cada vez mais digital e através de dispositivos móveis.

Isso fez com que os meios de comunicação se vissem obrigados a reduzir pessoal, abandonar as plataformas tradicionais de papel, concentrar seus esquemas de propriedade ou até mesmo fechar.

Para a Wan-Ifra, muitas empresas de mídia em nível mundial têm tomado medidas acertadas para se adaptar a esta nova era, mas é preciso avançar: 

“Para se adaptar à complexidade e à rapidez da era digital, para se manter relevante e necessário, é preciso parar, pensar e transformar integralmente a forma como se faz o produto jornalístico. Queimem os navios”.

“A mudança é uma amiga, disfarçada de inimiga”

A frase foi usada pelo consultor digital Dmitry Shishkin, membro do conselho do World Editors Forum, no prefácio do guia, para exemplificar o quanto mudar não é fácil. Tendo excercido anteriormente cargos de chefia na BBC e na Culture Trip, ele lembra que está acostumado a lidar com mudança cultural em organizações, que demandam lidar com resistência, incerteza e ansiedade.

E acha que é preciso ajuda e apoio para a adaptação. 

 “A organização é como o corpo humano. Precisa de vírus, para que o corpo possa aprender a sobreviver e se manter forte”. Esta citação japonesa de autor desconhecido descreve perfeitamente o principal componente da mudança cultural.

Cconhecemos muitos exemplos da vida real nos quais as empresas não se adaptaram porque eram estruturalmente incapazes de aceitar e incorporar as mudanças visíveis ao seu redor.

Shishkin cita outra frase, “Prefiro estar verde e crescendo do que estar maduro e pronto para apodrecer”, escrita por John Maeda, um designer, tecnólogo e professor americano, que a seu ver manda aos líderes a mensagem sobre a necessidade de reconhecer coisas que não são óbvias à primeira vista: 

A mudança começa em você. No entanto, a mudança cultural adota diferentes significados para cada pessoa. Trata-se de pessoas: fazer com que o staff vista a camisa, empoderar os agentes da mudança, dizer não com empatia.

Também trata-se de processos: se concentrar no público, fracassar e aprender com isso, aplicar as necessidades do usuário a tudo o que se faz, alinhar as áreas de conteúdo e de produto, estabelecer as metas de crescimento, deixar que outros te levem até lá através de objetivos e resultados conjuntos.

O consultor recomenda a leitura do relatório tanto por quem ocupa cargos de liderança de alto nível ou se prepara para isso quanto para pensa em dirigir outras pessoas.

“transformação digital não tem fim. Todo mundo deve desempenhar seu papel nela, primeiro mudando sua própria mentalidade, e depois mudando a dos outros.”

As lições do guia

O guia está dividido em quatro lições principais. Cada capítulo dá detalhes – de forma prática e visual – sobre cada lição, dando conselhos e exemplos dos especialistas do programa. Veja aqui um resumo:

Capítulo 1 – Colocar o usuário no centro

Em um mercado saturado de notícias, o público pode encontrar em um click o que busca, quer, precisa. A missão das empresas é criar produtos que atendam as necessidades dos usuários, encontrar o diferencial. Para isso, primeiro é preciso saber quais são essas necessidades. A mudança cultural começa colocando os usuários no centro da estratégia da empresa.

Dmitry Shishkin observou que:

“Os públicos passam o dia todo no celular, mas dedicam só 5% do seu tempo no celular às notícias. As “hard news” não são suficientes para atrair as pessoas com regularidade ou com compromisso suficiente.

As notícias estão em todos os lugares: a relevância e o engajamento são o diferencial. Há uma defasagem entre o que o público quer no digital (informação, sim, mas também compreensão, inspiração, utilidade, diversão) e o que os meios oferecem.

O crescimento acontece quando as diferentes necessidades dos usuários são atendidas de maneira constante, criativa e estratégica. Não se trata de não cobrir os fatos noticiosos, e sim de cobri-los de outra forma”.

 

Capítulo 2: Adotar uma mentalidade de produto

Os meios de comunicação que avançam na mudança cultural não desenvolvem conteúdos, desenvolvem produtos. Produtos centrados nas necessidades dos usuários, criados por equipes interdisciplinares e alinhados com a estratégia e os objetivos da empresa. O produto está na interseção da área editorial, da área tecnológica e da área de negócios.

Anita Zielina, Diretora de Inovação e Liderança da Faculdade de Jornalismo Craig Newmark da CUNY (E.U.A.), contou aos participantes do Cultural Change Ignition Program a pergunta que Jeff Bezos, dono da Amazon, fez quando entrou pela primeira vez na redação do Washington Post: “Quem é o responsável pelo produto?”. Ninguém respondeu, porque nem sequer sabiam ao certo qual era o produto.

Anita Zielina tem sua própria definição de ‘produto’:

“O produto é uma função na interface entre a área editorial, a área tecnológica e a área de negócios, que garante ativamente que todos os produtos e serviços que uma organização de mídia cria satisfazem as necessidades dos usuários, oferece uma experiência excelente ao usuário e permite o avanço da estratégia geral dos negócios”.

Capítulo 3: Implementar uma liderança efetiva

Os líderes assumem totalmente a decisão e a execução da mudança cultural que a transformação digital exige. E reúnem todos os integrantes da empresa nessa direção. A mudança cultural deve atravessar a organização, de cima para baixo. Líderes positivos e empáticos se concentram nas pessoas que querem implementar a mudança: as guiam, as capacitam, e trazem os talentos que a organização precisa.

Os líderes têm um papel fundamental: se não estiverem preparados para o desafio, ninguém vai segui-los.

Para Borja Echevarría, Diretor Adjunto do El País, Espanha, que passou pela transformação digital nas redações desde o início, sabe que a mudança cultural deixa de ser uma ideia abstrata quando todos na organização compreendem do que se trata e agem de acordo:

“Mudança cultural parece muito etéreo, uma expressão que pouca gente entende. Como se traduz em realidade?”. Para Echevarría, a mudança cultural se põe em prática por meio de três eixos:

  • Liderança – A responsabilidade de avançar rumo ao futuro e explicar a todos por que é necessário ir em determinada direção.
  • Visão clara e comunicada – Comunicar a todos o plano estratégico. Não saber ou não entender o rumo pode gerar muita frustração.
  • Romper compartimentos – É preciso trabalhar com diversas áreas, que precisam estar envolvidas no processo desde o início, não se trata de somá-las no final.

Capítulo 4: Criar uma estratégia baseada em dados

A mudança cultural é um processo. Organizar e cumprir as etapas permite alinhar toda a empresa em uma mesma direção e alcançar os objetivos estratégicos. A organização avança em um plano estratégico de transformação construído com base nos dados. Todos conhecem os objetivos, os avanços e as conquistas que vão sendo alcançadas.

Para realizar a mudança cultural, é necessário saber para onde vamos e gerir os recursos nessa direção. Um plano estratégico orienta todos para avançar nas sucessivas etapas.

 O guia indica 7 passos para criar e implementar uma estratégia

Conclusão

A análise baseada em dados e com o olhar nos usuários permite traçar uma estratégia sólida, clara e com objetivos mensuráveis.

Por sua vez, uma liderança transparente e evangelizadora e uma empresa que saiba identificar, atrair e reter os talentos necessários são fundamentais para romper muralhas, ativar transformações e manter toda a equipe alinhada.

Finalmente, adotar uma mentalidade de produto permite inovar, adaptar-se mais rápido e melhor às mudanças permanentes da era digital, e ao mesmo tempo não perder os objetivos do negócio.

Ao ser perguntada se existe um fim para a transformação digital de uma empresa, Anita Zielina responde:

“Nunca”

Mas ela tranquiliza, assegurando que no futuro será menos estressante:

“Em um determinado momento, nos sentiremos mais à vontade com nossas habilidades para a mudança. Ser capaz de mudar, de transformar, é um esquema mental, não é um projeto de seis meses.

Estamos em uma indústria que vai continuar evoluindo. As habilidades e a tecnologia vão mudar, mas para que a organização não tenha problemas no futuro, é preciso ensinar a mudar”.

O guia completo, que inclui indicações de leitura sobre mudança cultural nas organizações e liderança, está aqui. 

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