As violações à liberdade de imprensa que vêm sendo registradas desde o golpe militar em Mianmar, em 1º de fevereiro, atingiram um novo patamar. O jornalista japonês Yuky Kitazumi, de 45 anos, detido desde abril, foi indiciado na segunda-feira (3/5) sob acusação de espalhar notícias falsas e pode pegar até três anos de cadeia, de acordo com o código penal que entrou em vigor depois da derrubada do governo eleito comandado pela vencedora do Prêmio Nobel da Paz Aung Sun Kyi.

É a primeira vez que a junta militar acusa formalmente um jornalista estrangeiro de crime relacionado ao seu trabalho no país, embora outras investidas contra veículos internacionais tenham ocorrido. Em março, um repórter da rede britânica BBC em Mianmar, Aung Thura, havia sido detido quando fazia uma matéria diante de um tribunal na capital, Nay Pyi Taw, mas foi libertado três dias depois. E Thein Zaw, um jornalista da agência Associated Press, ficou preso por mais de três semanas devido a reportagens sobre as manifestações. 

Yuky Kitazumi, que trabalhou anteriormente no jornal Nikkei, com sede em Tóquio, vinha cobrindo protestos antigovernamentais em Mianmar como freelance e postou em suas mídias sociais informações que não agradaram aos militares. Ele já havia sido preso temporariamente pelas forças de segurança durante uma manifestação em 26 de fevereiro.

O indiciamento do jornalista japonês mostra que a junta militar não teme a repercussão internacional ou diplomática de seus atos para silenciar a imprensa. A informação sobre Kitazumi foi revelada pela agência japonesa Kyodo e confirmada pelo governo japonês, que disse estar fazendo gestões para libertá-lo desde sua detenção em uma prisão na cidade de Yangon, a maior do país, conhecida por abrigar presos políticos. 

Sem banda larga e sem jornais independentes 

Desde o golpe em Mianmar, medidas para suprimir a liberdade de expressão e de imprensa vêm se sucedendo no país, a antiga Birmânia, no Sudoste asiático. No dia 4 de abril o governo decretou bloqueio total do sinal de internet sem fio em banda larga, dificultando as comunicações por mídias sociais e o acesso a notícias por causa das conexões mais lentas. Não há mais jornais independentes em funcionamento, tendo restado apenas sites de notícias e publicações estatais. 

A morte da mídia independente do país foi decretada em 18 de março pelo site de notícias Myanmar Now, um dos poucos que continua a operar depois do golpe. Na véspera, a junta militar havia suspendido o The Standard Time (San Taw Chain). Antes dele, tinham sido fechados os jornais The Myanmar Times, The Voice, 7Day News e Eleven, restando apenas os online.

Na matéria, o jornal disse que a data seria lembrada como “o dia em que a breve era de liberdade de imprensa de Mianmar – por mais parcial e imperfeita que tenha sido – realmente morreu”. 

Na semana passada, segundo o Myanmar News, a junta militar revogou a licença de publicação de outro meio de comunicação, o Myitkyina News Journal. E o Voice of Myamar também anunciou que suspenderia suas operações uma semana depois que seu editor-chefe e um repórter foram detidos pelo regime. 

O jornal afirma que pelo menos 84 jornalistas foram presos desde o golpe em Mianmar e 50 deles ainda estão detidos.  

Outra forma de pressão tem sido a execração pública. A organização Repórteres sem Fronteiras denunciou que desde 4 de abril o governo inaugurou a prática de publicar listas de jornalistas procurados por transmitirem informações sobre os protestos pró-democracia, juntamente com figuras conhecidas procuradas por expressarem publicamente apoio aos protestos.

A lista atualizada dos que “espalham notícias para afetar a estabilidade do Estado” é transmitida todas as noites em noticiários de TV e publicada na mídia impressa estatal. Os nomeados são apresentados como “acusados ​​de acordo com o código penal, que estabelece penas para a divulgação de informações contrárias aos interesses das Forças Armadas, que podem chegar a três anos de prisão.

Um centro para promover a “liberdade de expressão”

Ao mesmo tempo em que suprime a mídia independente, a junta dá novos passos na direção de controlar as informações. Em comemoração ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, inaugurou em 2/5 um complexo estatal de mídia. O Myawady Media Center tem entre suas atividades a transmissão de notícias por TV e foi apresentado pelo comandante da junta, Min Aung Hlaing, como “uma força que muito contribuirá para a cultura nacional e para os interesses nacionais do país”. 

Uma reportagem no site de notícias governista Global New Light of Mianmar informou que o centro de mídia “visa tornar a mídia pública confiável, contribuir para o desenvolvimento da vida social das pessoas de acordo com a ética da mídia e disseminar técnicas de mídia modernas em linha com a ética e com padrões internacionais”.

O discurso nem de longe lembra o de um país governado por uma junta militar por meio de um golpe. O comandante afirmou: 

“Cada país é bem fundamentado por pilares executivos, legislativos e judiciais por meio de um sistema de verificação e equilíbrio. Essa é a essência da prática democrática. A mídia é o quarto pilar para monitorar os três pilares mencionados.”

Mas alertou que “a mídia local deve “prevenir a infiltração mais ampla” de ideias e cultura de “países desenvolvidos”, em um recado claro para quem, estrangeiro ou local, tentar desafiar o regime. 

Mianmar no ranking da Repórteres sem Fronteiras

No último ranking de liberdade de imprensa da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras, o país ficou na 140ª posição entre 180 países. No relatório, divulgado em abril deste ano, a entidade lamentou o retrocesso na liberdade de imprensa a partir do golpe, depois de um período de breve liberdade iniciado em fevereiro de 2011, quando tinham sido deixados para trás 50 anos de governo militar. As reformas adotadas na época haviam feito com que Mianmar subisse 20 posições no ranking da RSF entre 2013 e 2017.

Para a organização, a atual junta militar levou esse frágil progresso a um fim abrupto, voltando dez anos no tempo.

Os jornalistas enfrentam novamente ameaças sistemáticas de prisão e censura. Muitos se resignam a trabalhar clandestinamente para poderem reportar o que está acontecendo e escaparem da polícia. Este golpe não foi uma surpresa total, visto que o clima para a liberdade de imprensa já havia piorado novamente nos últimos três anos.

Segundo a RSF, o maior sinal de que a situação estava começando a mudar foi a prisão, em 2018, de dois repórteres da agência de notícias Reuters que investigavam um massacre de civis da etnia Rohingya. Eles foram perdoados depois de mais de 500 dias de prisão, mas a condenação com base em evidências forjadas, de acordo com a entidade, serviu como um aviso para todos os jornalistas pensarem duas vezes antes de tentarem reportagens investigativas que poderiam aborrecer o governo civil ou “Tatmadaw, como são conhecidas as forças armadas. 

Leia também

Nunca tantas jornalistas foram vítimas da violência online, alerta Unesco