Um artigo publicado na última quinta-feira (6/5) na seção de opinião do Washington Post pela CEO da revista americana Washingtonian, Cathy Merrill, sugerindo sem muita sutileza que os funcionários que se recusassem a voltar para a redação “corriam riscos”, mostrou como não está sendo fácil para empresas de todos os tipos encontrarem soluções para o fim do trabalho remoto depois que a pandemia começa a ser controlada nos países em que a vacinação já avançou. 

O título do tuíte do Washington Post sobre o texto de Merril não deixou muitas dúvidas sobre o tom de ameaça do artigo: “Como CEO, quero que meus funcionários entendam os riscos de não voltar a trabalhar no escritório”.

No artigo, a CEO falou de sua preocupação com a intenção de funcionários quererem continuar trabalhando de casa e ir ao escritório de vez em quando. Ela disse que o trabalho remoto apresenta aos executivos da indústria de mídia “uma opção econômica tentadora, da qual os funcionários podem não gostar”.

Depois de destacado no Twitter do jornal, o artigo despertou indignação e levou os funcionários a fazerem uma paralisação em protesto. A CEO teve que se retratar, obrigando o próprio Washington Post a alterar o título do artigo polêmico para:

“Como CEO, me preocupo sobre a erosão da cultura da redação com mais trabalho remoto.”

Economia para a empresa

A Washingtonian  é uma revista da capital federal americana com dicas para viver, trabalhar e se divertir na região, publicando guias   “100 restaurantes excelentes”, “Melhores médicos” e “Ótimos lugares para se viver”. Declara que sua edição impressa é lida por mais de 400 mil pessoas por mês, e que o site supera um milhão de leitores únicos todos os meses. A Washingtonian ganhou cinco vezes  National Magazine Award.

Em seu artigo, a CEO da Washingtonian parte da premissa de que de casa o funcionário não participa de atividades que impulsionam a cultura da redação. E conclui que isso seria um forte incentivo para que em vez de receber um salário fixo, os contratados passem a receber apenas pelo trabalho que realizem, além do perderem benefícios como assistência médica. Ela também inclui na conta a possibilidade de economia com a redução do espaço do escritório e taxas de estacionamento.

Mas a parte mais polêmica foi a frase em que Merrill levanta a hipótese de desligamento dos funcionários que se mantenham afastados, trabalhando de suas casas. O texto foi ressaltado no Twitter do Washington Post para atrair atenção para o artigo:

“Embora possa haver algumas dores e ansiedade ao voltar para o escritório, o maior benefício para os trabalhadores pode ser a simples segurança no emprego. Lembre-se de algo que todo gerente sabe: as pessoas mais difíceis de dispensar são aquelas que você conhece ”.

Funcionários reagem com resposta coordenada no Twitter e paralisação

Diante da ameaça pública feita pelas páginas de um dos principais jornais do país, os membros da redação da Washingtonian optaram por uma reação também pública no dia seguinte ao da publicação do artigo: todos responderam ao mesmo tempo por suas contas do Twitter, com um texto padrão. As respostas foram postadas num intervalo de apenas dois minutos:

           

 “Como membros da equipe editorial da Washingtonian, queremos que nossa CEO compreenda os riscos de não valorizar nosso trabalho. Estamos consternados com a ameaça pública de Cathy Merril aos nosso meio de subsistência. Não publicaremos nada hoje.”

A reação ganhou repercussão nacional na conta do Twitter do Washington Post, que comentou:

“Os membros do staff da revista Washingtonian lançaram um dia de protesto em resposta ao artigo publicado na coluna de opinião do Washington Post escrito por sua chefe, no qual ela alertou que continuar trabalhando em casa enquanto a pandemia diminui pode tornar os funcionários menos valiosos e mais fáceis de dispensar.”

Houve quem usasse a reação coordenada dos funcionários para ironizar a preocupação da CEO com a cultura corporativa, como o blogueiro Thomas Hogglestock:

“Parece que Cathy Merril não tinha nada com que se preocupar. Sua equipe tem a camaradagem afinada, mesmo trabalhando de casa.”

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E-mail de desculpas

O protesto conjunto no Twitter teve o efeito desejado. Merrill recuou, emitindo uma declaração e também enviando um e-mail para toda a equipe esclarecendo que não pretendia demitir ninguém, cortar benefícios ou rebaixá-los para freelances.

Ela enfatizou que poderá fazer isso por ser a Washingtonian uma pequena empresa familiar. Por outro lado, disse que se preocupa sobre como a questão do trabalho remoto poderá afetar empresas maiores e o próprio país. E que esse foi o motivo de ter escrito o artigo.

Ela diz que o retorno ao escritório seguirá todas as medidas de segurança, não apenas por obrigação legal, mas por se preocupar com cada um dos membros da equipe. E finaliza dizendo-se orgulhosa pela cultura que a empresa tem, conforme exibido pelo “heroico trabalho executado por todos durante este período terrível”.

Polêmica foi parar na coluna do crítico de mídia do Washington Post

A repercussão fez com que o crítico de mídia do Washington Post, Erik Wemple, escrevesse sobre o assunto em sua coluna. Ele ouviu o editor sênior da Washingtonian, Andrew Beaujon, que disse que a surpresa foi maior porque a equipe fora avisada de que a revista havia atravessado a pandemia em boa forma:

“Foi difícil para nós, como para muitas outras publicações, mas a mensagem que recebemos no início do ano foi que as coisas estavam voltando aos trilhos.”

Beaujon contou que a publicação do artigo foi ainda mais difícil de entender porque há um comitê de reabertura que está justamente discutindo como a equipe voltará ao escritório.

Volta em nem todos os dias da semana

Além da comunicação desastrada, o crítico de mídia levanta também a questão de que as ideias da CEO são difíceis de implantar do ponto de vista jurídico. Ele ouviu Matt Pearce, repórter do Los Angeles Times e líder sindical que representa os profissionais de seu jornal e de várias redações da Califórnia, Arizona e do Texas. Pearce disse que uma das opções discutidas é a diminuição de dias na redação:

“Nossos associados nos dizem que preferem voltar ao escritório alguns dias por semana. Muito do trabalho é feito entrevistando, escrevendo. Essas últimas funções requerem foco no produto, e não em seus colegas de trabalho.

Há mais vantagens no debate entre as partes do que em um artigo com repreensão pública sugerindo como você vai reduzir seus funcionários a contratados, se você não acha que eles estão trabalhando duro demais. ”

A retratação da CEO no jornal

Wemple também entrou em contato com a CEO Merrill, e recebeu dela o seguinte posicionamento:

“A Washingtonian adota uma cultura na qual os funcionários são capazes de se expressar abertamente. Valorizo ​​cada membro da nossa equipe não só no nível profissional, mas também pessoal. Eu não poderia estar mais orgulhosa de seu trabalho e realizações nas circunstâncias incrivelmente difíceis do ano passado.

Garanti à nossa equipe que não haverá alterações nos benefícios ou no status do emprego. Lamento se o artigo de opinião fez com que parecesse qualquer outra coisa”.

O crítico ressalta ao fim de sua coluna uma autoavaliação feita por Merrill na conversa por telefone, que também foi destacada no Twitter do jornal:

“Todo mundo precisa de um editor. Gostaria que meu artigo tivesse sido revisado pelo meu”.

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