Uma eficiente estratĂ©gia de imprensa − que inclui programas de treinamento para jornalistas, viagens patrocinadas e acordos de compartilhamento de conteĂșdo jornalĂ­stico em idiomas locais − estĂĄ fazendo com que a China consiga reverter a imagem negativa gerada no inĂ­cio da pandemia pelo fato de o coronavĂ­rus ter se originado na cidade de Wuhan. A conclusĂŁo Ă© de uma pesquisa realizada por trĂȘs pesquisadores australianos em 50 paĂ­ses, destinada a mapear a influĂȘncia da China sobre a mĂ­dia global. 

O estudo The Covid-19 Story: Unmasking China’s Global Strategy (A histĂłria da Covid-19-Desmascarando a EstratĂ©gia Global da China)  foi encomendado pela Federação Internacional de Jornalistas (IFJ), sediada em Bruxelas, e apresentado em um seminĂĄrio virtual no dia 12 de maio.

Ele mostra que a Covid-19 foi habilmente transformada de problema em oportunidade, com a China ativando seus canais de disseminação de informaçÔes no exterior para inundar os meios de comunicação estrangeiros com ofertas de notícias nacionais e internacionais em idiomas locais, semeando matérias positivas sobre como administrou a pandemia.

Para chegar aos resultados, os pesquisadores Louise Lim e Julia Bergin, da University of Melbourne, e Johan Lidberg, da Monash University, entrevistaram jornalistas e organizaçÔes setoriais em dezembro de 2020 e janeiro de 2021 para ouvir as impressĂ”es e conhecer os mĂ©todos utilizados pelo governo chinĂȘs na disseminação de mensagens positivas.

Segundo os pequisadores, mais da metade dos entrevistados disse que a cobertura da China em sua mĂ­dia nacional foi mais positiva desde o inĂ­cio do pandemia. A porcentagem de naçÔes que relatam que a China tem uma presença visĂ­vel na imprensa do paĂ­s subiu de 64% para 76% em um ano. Apenas 20% acham que nĂŁo mudou. 

Dos paĂ­ses pesquisados, 42 % utilizam vacinas chinesas contra a Covid-19. Uma anĂĄlise mais detalhada descobriu que paĂ­ses destinatĂĄrios das vacinas foram mais propensos a tratar de forma positiva a forma como a China lidou com a pandemia, com representantes do paĂ­s moldando as narrativas da mĂ­dia.

Dois terços das naçÔes que adquiriram as vacinas chinesas relataram que a cobertura tornou-se mais positiva no ano passado, consolidando a influĂȘncia da China. A narrativa dominante na mĂ­dia nacional foi “a ação rĂĄpida da China contra a Covid-19, assim como sua diplomacia mĂ©dica”.

O relatório identificou uma abordagem mais intervencionista por parte de Pequim, com quase um em cinco países relatando exposição maior de embaixadas e dos embaixadores localmente:

Os embaixadores tornaram-se mais ativos, expressando crĂ­ticas Ă  cobertura da mĂ­dia local e atĂ© mesmo sobre polĂ­tica, fortalecendo assim a influĂȘncia da China na mĂ­dia alĂ©m de suas fronteiras. 

A influĂȘncia da China foi vista de forma mais positiva na África, onde metade dos entrevistados acredita que seja benĂ©fica e onde muitos paĂ­ses utilizam vacinas chinesas. Todos os africanos entrevistados pelo estudo relataram uma presença visĂ­vel do paĂ­s na imprensa local, e metade disse que a cobertura da China tornou-se mais positiva apĂłs a Covid. TrĂȘs quartos deles disseram ver a cooperação com entidades chinesas como positiva.

A Europa registrou uma das mudanças mais drĂĄsticas na cobertura de China em relação a uma pesquisa semelhante realizada em 2019, alcançando em 2020 a mĂ©dia de 6,3 em uma escala mĂłvel de um para dez, na qual um Ă© o mais negativo e dez, o mais positivo. JĂĄ na AmĂ©rica do Norte a imagem da China despencou, chegando a 3,5, o que pode ser atribuĂ­do ao efeito do discurso do ex-presidente Donald Trump, contrĂĄrio ao paĂ­s asiĂĄtico. 

Na AmĂ©rica Latina, trĂȘs quartos dos entrevistados declararam nĂŁo ter certeza sobre se a influĂȘncia da China em sua mĂ­dia nacional foi positiva ou negativa. 

O maior grupo de entrevistados era da Ásia-PacĂ­fico, perfazendo 21 paĂ­ses. O trabalho apurou que nessa regiĂŁo a divulgação da  China na imprensa estĂĄ bem estabelecida, com 95% dos paĂ­ses relatando presença visĂ­vel na mĂ­dia nacional. Mas quase a metade das naçÔes considera a influĂȘncia chinesa na imprensa como negativa. 

Mais presença por meio de conteĂșdo distribuĂ­do 

A visibilidade da China tambĂ©m aumentou, de acordo com o estudo. TrĂȘs quartos dos entrevistados disseram que o paĂ­s ficou mais presente na mĂ­dia nacional, em comparação com 64% em uma pesquisa anterior, realizada em 2019. “Pequim parece estar avançando com sua oferta de notĂ­cias, fornecendo conteĂșdo adaptado para cada paĂ­s em idiomas nĂŁo anglĂłfonos”, diz o estudo. 

Esse fornecimento Ă© feito por meio de acordos ou de serviços de distribuição de matĂ©rias produzidas pela China. Nessa terça-feira (11/5), a agĂȘncia global PR Newswire publicou um texto e um vĂ­deo para os seus assinantes promovendo o esforço da China sobre as vacinas, apresentado como “abordagem centrada nas pessoas”.

O material foi produzido pela CGTN, TV estatal chinesa que foi banida em fevereiro de 2021 no Reino Unido por infringir as leis locais sobre controle de mĂ­dia, que impedem a propriedade de veĂ­culos por partidos polĂ­ticos. AustrĂĄlia e Alemanha seguiram pelo mesmo caminho, com sançÔes e suspensĂ”es Ă  emissora. 

Na opinião de Julia Bergin, uma das autoras, a China hå muito tenta semear narrativas positivas na mídia estrangeira, enquanto bloqueia a cobertura desfavoråvel e redireciona a atenção do mundo para os fracassos ocidentais.

Julia Bergin

“Para fazer isso, Pequim aproveita os ecossistemas da mĂ­dia estrangeira com ofertas personalizadas de acesso e recursos. Exporta sua propaganda para organizaçÔes de mĂ­dia estrangeiras por meio de acordos de compartilhamento de conteĂșdo e memorandos de entendimento com veĂ­culos de mĂ­dia patrocinados pelo estado, como Xinhua e China Daily”, afirma Bergin, jornalista e pesquisadora do Center for Advancing Journalism da University of Melbourne, que nos Ășltimos trĂȘs anos vem investigando a estratĂ©gia global de mĂ­dia de Pequim

Ela citou como exemplo um acordo com a agĂȘncia de notĂ­cias estatal italiana ANSA, que publica 50 matĂ©rias da agĂȘncia chinesa Xinhua por dia, com conteĂșdo editorial sob a responsabilidade dos autores. Esse acordo foi firmado em 2019, quando a ItĂĄlia assinou um acordo comercial com a China que envolveu participaçÔes em mĂ­dia. 

O estudo apurou tambĂ©m que Pequim ofereceu viagens com todas as despesas pagas a jornalistas globais, aplicando as mesmas tĂĄticas em vĂĄrios paĂ­ses. 

“O resultado desejado Ă© que a mĂ­dia internacional amplifique as mensagens chinesas em seus prĂłprios idiomas nas pĂĄginas de seus prĂłprios meios de comunicação”, afirma a pesquisadora. 

Novas campanhas de desinformação

Os pesquisadores afirmam que a China “atualizou seu kit de ferramentas com novas tĂĄticas, como desinformação e mĂĄ informação, enquanto reprimiu a reportagem estrangeira no paĂ­s por meio de recusas de vistos e expulsĂ”es de jornalistas”.

Em 2020, Pequim  fechou o acesso jornalĂ­stico para a China, por meio de negaçÔes e congelamentos de vistos, em parte impulsionados pelo fechamento de fronteiras internacionais. Os autores apontam que isso criou um vĂĄcuo na cobertura sobe o paĂ­s no exterior,  criando uma demanda por matĂ©rias que acabou preenchida com conteĂșdo patrocinado pelo estado.  

Desde o inĂ­cio da pandemia, os esforços de desinformação chineses tornaram-se uma nova parte das tĂĄticas de propaganda do Partido Comunista ChinĂȘs, diz o estudo. “Atores estatais apelidados de ‘diplomatas guerreiros lobos’ acessaram plataformas de mĂ­dia social proibidas na China, como o Twitter, para lançar uma sucessĂŁo de teorias da conspiração. Isso foi entĂŁo ampliado por um exĂ©rcito de embaixadores chineses, porta-vozes do MinistĂ©rio das RelaçÔes Exteriores e trolls pagos”, revelaram os pesquisadores. 

A pesquisa conduzida pela IFJ examinou a influĂȘncia da China sobre a mĂ­dia de forma mais aprofundada em trĂȘs paĂ­ses: TunĂ­sia, SĂ©rvia e ItĂĄlia, onde foram feitas discussĂ”es de grupo com profissionais de grandes veĂ­culos. Os pesquisadores afirmam que, como um dos primeiros paĂ­ses atingidos pela pandemia no ano passado, a ItĂĄlia foi alvo de uma agressiva campanha de desinformação chinesa, que chegou a culpar o paĂ­s (e nĂŁo a China) como local do surto inicial do novo coronavĂ­rus. 

Porta-vozes e embaixadores do MinistĂ©rio das RelaçÔes Exteriores da China tambĂ©m compartilharam em mĂ­dias sociais imagens que pareciam mostrar italianos em suas varandas aplaudindo a ajuda chinesa da Covid-19, enquanto o hino nacional chinĂȘs era cantado ao fundo. O estudo afirma que as imagens foram manipuladas a partir de cenas que originalmente mostravam italianos batendo palmas para seus prĂłprios mĂ©dicos.

Ainda os efeitos da Covid no jornalismo
Crédito: Martin Sanchez/Unsplash

Mas nĂŁo foi apenas na ItĂĄlia. Mais de 80% dos paĂ­ses pesquisados ​​expressaram preocupação com a desinformação em sua mĂ­dia nacional. Os entrevistados culparam a China quase na mesma proporção que a RĂșssia e os EUA. No entanto, quase 60% dos paĂ­ses nĂŁo tinham certeza de quem era o responsĂĄvel pela disseminação do conteĂșdo falso e enganoso.

Essa campanha coordenada para mudar a narrativa da Covid-19  nas plataformas de tecnologia ocidentais tambĂ©m foi implantada para desacreditar as instituiçÔes democrĂĄticas, incluindo as eleiçÔes presidenciais dos EUA em 2020 e as reportagens da BBC sobre o tratamento da China Ă  minoria Uygur em Xinjiang.

A pesquisa revela que, na SĂ©rvia, o Digital Forensic Center identificou 30 mil tweets originados de contas sĂ©rvias contendo as palavras-chave “Kina” (China) e “Srbija” (SĂ©rvia), elogiando a ajuda chinesa e criticando a UniĂŁo Europeia por sua falta de assistĂȘncia durante a pandemia. Mais de 70% do conteĂșdo teriam sido produzidos por uma  rede de contas de bot (automatizadas) do governo prĂł-sĂ©rvio.

Durante a pandemia, a ajuda mĂ©dica chinesa foi anunciada pela grande mĂ­dia sĂ©rvia como “presente” e o governo recusou-se a revelar se havia pago pela ajuda. A mensagem foi absorvida. Um estudo do Instituto de Assuntos Europeus revelou que atĂ© 40% dos cidadĂŁos sĂ©rvios acreditam que a China Ă© o maior doador de ajuda mĂ©dica do paĂ­s. Apenas 17% nomearam corretamente a UE.

Os autores apontam que as tĂĄticas de Pequim na guerra narrativa sĂŁo incrementais, mas constantes. E acham que os jornalistas tendem  a subestimar a influĂȘncia de Pequim.  

Eles observaram que, em nĂ­vel nacional, jornalistas criticaram a propaganda de Pequim como desajeitada e irrelevante e se demonstraram confiantes de que a alfabetização midiĂĄtica local ou os sistemas polĂ­ticos fossem capazes de proteger a mĂ­dia da invasĂŁo chinesa. “Mas, quando vistos globalmente, os resultados foram diferentes, com a China fortalecendo sua imagem em relação Ă  gestĂŁo da pandemia e de suas açÔes polĂ­ticas”, diz o estudo. 

O SecretĂĄrio Geral da IFJ, Anthony Bellanger, disse:

“O relatĂłrio revela que a China Ă© uma força crescente na guerra de informação. É vital resistir a tais pressĂ”es exercidas pelas autoridades chinesas, bem como aquelas que vĂȘm dos EUA, RĂșssia e outros governos ao redor do mundo, para proteger o jornalismo independente das narrativas e influĂȘncias impostas pelo Estado chinĂȘs”.

Vacinas 

A relação entre a presença na mĂ­dia local e o uso da vacina ficou evidenciada pelo estudo. Mais de dois terços dos paĂ­ses onde a narrativa da mĂ­dia dominante foi “a ação rĂĄpida da China contra a Covid-19 ajudou outros paĂ­ses, assim como sua diplomacia mĂ©dica” usavam vacinas chinesas. Neles, 63 % tambĂ©m relataram que a cobertura da China tornou-se mais positiva desde o surto da Covid, e 57% disseram que viram tentativas de atores chineses de moldar narrativas da mĂ­dia sobre polĂ­tica local em seus paĂ­ses, em comparação com 34% dos paĂ­ses nĂŁo receptores.

Entretanto, apenas um quarto dos paĂ­ses que relataram a narrativa dominante como sendo “o encobrimento da China do surto inicial Ă© a razĂŁo para a natureza global do surto” estavam usando as vacinas da China. Mas nĂŁo houve diferenças entre os que registraram ter visto conteĂșdo da mĂ­dia estatal chinesa circulando no paĂ­s, levando Ă  conclusĂŁo de que Pequim nĂŁo estĂĄ discriminando quem almeja com suas mensagens, apenas encontra terreno mais favorĂĄvel nos que optaram pelas vacinas do paĂ­s. 

Um total de 54 associaçÔes de jornalistas de 50 paĂ­ses diferentes e territĂłrios participaram da pesquisa para identificar a influĂȘncia da China na mĂ­dia global, feita entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021. Foi oferecida a opção de anonimato para que pudessem falar mais livremente.

Os dados foram coletados em seis regiĂ”es: Ásia-PacĂ­fico, África, Europa, AmĂ©rica Latina, AmĂ©rica do Norte e Oriente MĂ©dio/Norte da África. Em trĂȘs paĂ­ses − SĂ©rvia, ItĂĄlia e TunĂ­sia − jornalistas tambĂ©m participaram de discussĂ”es em mesa-redonda para construir uma imagem mais detalhada dos contornos do alcance chinĂȘs em sua regiĂŁo.

A pesquisa indica que a influĂȘncia da China estĂĄ sendo feita aos poucos − uma matĂ©ria de cada vez, um paĂ­s de cada vez −, mudando a cobertura em uma direção mais positiva.

“A China usou o surto da Covid-19 para polir sua prĂłpria imagem global e consolidar ainda mais sua influĂȘncia no ecossistema de mĂ­dia global”, diz o estudo. 

O relatĂłrio completo (em inglĂȘs)  pode ser visto aqui.

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