Uma eficiente estratégia de imprensa − que inclui programas de treinamento para jornalistas, viagens patrocinadas e acordos de compartilhamento de conteúdo jornalístico em idiomas locais − está fazendo com que a China consiga reverter a imagem negativa gerada no início da pandemia pelo fato de o coronavírus ter se originado na cidade de Wuhan. A conclusão é de uma pesquisa realizada por três pesquisadores australianos em 50 países, destinada a mapear a influência da China sobre a mídia global.
O estudo The Covid-19 Story: Unmasking China’s Global Strategy (A história da Covid-19-Desmascarando a Estratégia Global da China) foi encomendado pela Federação Internacional de Jornalistas (IFJ), sediada em Bruxelas, e apresentado em um seminário virtual no dia 12 de maio.
Ele mostra que a Covid-19 foi habilmente transformada de problema em oportunidade, com a China ativando seus canais de disseminação de informações no exterior para inundar os meios de comunicação estrangeiros com ofertas de notícias nacionais e internacionais em idiomas locais, semeando matérias positivas sobre como administrou a pandemia.
Para chegar aos resultados, os pesquisadores Louise Lim e Julia Bergin, da University of Melbourne, e Johan Lidberg, da Monash University, entrevistaram jornalistas e organizações setoriais em dezembro de 2020 e janeiro de 2021 para ouvir as impressões e conhecer os métodos utilizados pelo governo chinês na disseminação de mensagens positivas.
Dos países pesquisados, 42 % utilizam vacinas chinesas contra a Covid-19. Uma análise mais detalhada descobriu que países destinatários das vacinas foram mais propensos a tratar de forma positiva a forma como a China lidou com a pandemia, com representantes do país moldando as narrativas da mídia.
Dois terços das nações que adquiriram as vacinas chinesas relataram que a cobertura tornou-se mais positiva no ano passado, consolidando a influência da China. A narrativa dominante na mídia nacional foi “a ação rápida da China contra a Covid-19, assim como sua diplomacia médica”.
O relatório identificou uma abordagem mais intervencionista por parte de Pequim, com quase um em cinco países relatando exposição maior de embaixadas e dos embaixadores localmente:
Os embaixadores tornaram-se mais ativos, expressando críticas à cobertura da mídia local e até mesmo sobre política, fortalecendo assim a influência da China na mídia além de suas fronteiras.
A influência da China foi vista de forma mais positiva na África, onde metade dos entrevistados acredita que seja benéfica e onde muitos países utilizam vacinas chinesas. Todos os africanos entrevistados pelo estudo relataram uma presença visível do país na imprensa local, e metade disse que a cobertura da China tornou-se mais positiva após a Covid. Três quartos deles disseram ver a cooperação com entidades chinesas como positiva.
A Europa registrou uma das mudanças mais drásticas na cobertura de China em relação a uma pesquisa semelhante realizada em 2019, alcançando em 2020 a média de 6,3 em uma escala móvel de um para dez, na qual um é o mais negativo e dez, o mais positivo. Já na América do Norte a imagem da China despencou, chegando a 3,5, o que pode ser atribuído ao efeito do discurso do ex-presidente Donald Trump, contrário ao país asiático.
Na América Latina, três quartos dos entrevistados declararam não ter certeza sobre se a influência da China em sua mídia nacional foi positiva ou negativa.
O maior grupo de entrevistados era da Ásia-Pacífico, perfazendo 21 países. O trabalho apurou que nessa região a divulgação da China na imprensa está bem estabelecida, com 95% dos países relatando presença visível na mídia nacional. Mas quase a metade das nações considera a influência chinesa na imprensa como negativa.
Mais presença por meio de conteúdo distribuído
A visibilidade da China também aumentou, de acordo com o estudo. Três quartos dos entrevistados disseram que o país ficou mais presente na mídia nacional, em comparação com 64% em uma pesquisa anterior, realizada em 2019. “Pequim parece estar avançando com sua oferta de notícias, fornecendo conteúdo adaptado para cada país em idiomas não anglófonos”, diz o estudo.
Esse fornecimento é feito por meio de acordos ou de serviços de distribuição de matérias produzidas pela China. Nessa terça-feira (11/5), a agência global PR Newswire publicou um texto e um vídeo para os seus assinantes promovendo o esforço da China sobre as vacinas, apresentado como “abordagem centrada nas pessoas”.
O material foi produzido pela CGTN, TV estatal chinesa que foi banida em fevereiro de 2021 no Reino Unido por infringir as leis locais sobre controle de mídia, que impedem a propriedade de veículos por partidos políticos. Austrália e Alemanha seguiram pelo mesmo caminho, com sanções e suspensões à emissora.
Na opinião de Julia Bergin, uma das autoras, a China há muito tenta semear narrativas positivas na mídia estrangeira, enquanto bloqueia a cobertura desfavorável e redireciona a atenção do mundo para os fracassos ocidentais.
“Para fazer isso, Pequim aproveita os ecossistemas da mídia estrangeira com ofertas personalizadas de acesso e recursos. Exporta sua propaganda para organizações de mídia estrangeiras por meio de acordos de compartilhamento de conteúdo e memorandos de entendimento com veículos de mídia patrocinados pelo estado, como Xinhua e China Daily”, afirma Bergin, jornalista e pesquisadora do Center for Advancing Journalism da University of Melbourne, que nos últimos três anos vem investigando a estratégia global de mídia de Pequim
Ela citou como exemplo um acordo com a agência de notícias estatal italiana ANSA, que publica 50 matérias da agência chinesa Xinhua por dia, com conteúdo editorial sob a responsabilidade dos autores. Esse acordo foi firmado em 2019, quando a Itália assinou um acordo comercial com a China que envolveu participações em mídia.
O estudo apurou também que Pequim ofereceu viagens com todas as despesas pagas a jornalistas globais, aplicando as mesmas táticas em vários países.
“O resultado desejado é que a mídia internacional amplifique as mensagens chinesas em seus próprios idiomas nas páginas de seus próprios meios de comunicação”, afirma a pesquisadora.
Novas campanhas de desinformação
Os pesquisadores afirmam que a China “atualizou seu kit de ferramentas com novas táticas, como desinformação e má informação, enquanto reprimiu a reportagem estrangeira no país por meio de recusas de vistos e expulsões de jornalistas”.
Em 2020, Pequim fechou o acesso jornalístico para a China, por meio de negações e congelamentos de vistos, em parte impulsionados pelo fechamento de fronteiras internacionais. Os autores apontam que isso criou um vácuo na cobertura sobe o país no exterior, criando uma demanda por matérias que acabou preenchida com conteúdo patrocinado pelo estado.
Desde o início da pandemia, os esforços de desinformação chineses tornaram-se uma nova parte das táticas de propaganda do Partido Comunista Chinês, diz o estudo. “Atores estatais apelidados de ‘diplomatas guerreiros lobos’ acessaram plataformas de mídia social proibidas na China, como o Twitter, para lançar uma sucessão de teorias da conspiração. Isso foi então ampliado por um exército de embaixadores chineses, porta-vozes do Ministério das Relações Exteriores e trolls pagos”, revelaram os pesquisadores.
A pesquisa conduzida pela IFJ examinou a influência da China sobre a mídia de forma mais aprofundada em três países: Tunísia, Sérvia e Itália, onde foram feitas discussões de grupo com profissionais de grandes veículos. Os pesquisadores afirmam que, como um dos primeiros países atingidos pela pandemia no ano passado, a Itália foi alvo de uma agressiva campanha de desinformação chinesa, que chegou a culpar o país (e não a China) como local do surto inicial do novo coronavírus.
Porta-vozes e embaixadores do Ministério das Relações Exteriores da China também compartilharam em mídias sociais imagens que pareciam mostrar italianos em suas varandas aplaudindo a ajuda chinesa da Covid-19, enquanto o hino nacional chinês era cantado ao fundo. O estudo afirma que as imagens foram manipuladas a partir de cenas que originalmente mostravam italianos batendo palmas para seus próprios médicos.
Mas não foi apenas na Itália. Mais de 80% dos países pesquisados expressaram preocupação com a desinformação em sua mídia nacional. Os entrevistados culparam a China quase na mesma proporção que a Rússia e os EUA. No entanto, quase 60% dos países não tinham certeza de quem era o responsável pela disseminação do conteúdo falso e enganoso.
Essa campanha coordenada para mudar a narrativa da Covid-19 nas plataformas de tecnologia ocidentais também foi implantada para desacreditar as instituições democráticas, incluindo as eleições presidenciais dos EUA em 2020 e as reportagens da BBC sobre o tratamento da China à minoria Uygur em Xinjiang.
A pesquisa revela que, na Sérvia, o Digital Forensic Center identificou 30 mil tweets originados de contas sérvias contendo as palavras-chave “Kina” (China) e “Srbija” (Sérvia), elogiando a ajuda chinesa e criticando a União Europeia por sua falta de assistência durante a pandemia. Mais de 70% do conteúdo teriam sido produzidos por uma rede de contas de bot (automatizadas) do governo pró-sérvio.
Durante a pandemia, a ajuda médica chinesa foi anunciada pela grande mídia sérvia como “presente” e o governo recusou-se a revelar se havia pago pela ajuda. A mensagem foi absorvida. Um estudo do Instituto de Assuntos Europeus revelou que até 40% dos cidadãos sérvios acreditam que a China é o maior doador de ajuda médica do país. Apenas 17% nomearam corretamente a UE.
Os autores apontam que as táticas de Pequim na guerra narrativa são incrementais, mas constantes. E acham que os jornalistas tendem a subestimar a influência de Pequim.
Eles observaram que, em nível nacional, jornalistas criticaram a propaganda de Pequim como desajeitada e irrelevante e se demonstraram confiantes de que a alfabetização midiática local ou os sistemas políticos fossem capazes de proteger a mídia da invasão chinesa. “Mas, quando vistos globalmente, os resultados foram diferentes, com a China fortalecendo sua imagem em relação à gestão da pandemia e de suas ações políticas”, diz o estudo.
O Secretário Geral da IFJ, Anthony Bellanger, disse:
“O relatório revela que a China é uma força crescente na guerra de informação. É vital resistir a tais pressões exercidas pelas autoridades chinesas, bem como aquelas que vêm dos EUA, Rússia e outros governos ao redor do mundo, para proteger o jornalismo independente das narrativas e influências impostas pelo Estado chinês”.
Vacinas
A relação entre a presença na mídia local e o uso da vacina ficou evidenciada pelo estudo. Mais de dois terços dos países onde a narrativa da mídia dominante foi “a ação rápida da China contra a Covid-19 ajudou outros países, assim como sua diplomacia médica” usavam vacinas chinesas. Neles, 63 % também relataram que a cobertura da China tornou-se mais positiva desde o surto da Covid, e 57% disseram que viram tentativas de atores chineses de moldar narrativas da mídia sobre política local em seus países, em comparação com 34% dos países não receptores.
Entretanto, apenas um quarto dos países que relataram a narrativa dominante como sendo “o encobrimento da China do surto inicial é a razão para a natureza global do surto” estavam usando as vacinas da China. Mas não houve diferenças entre os que registraram ter visto conteúdo da mídia estatal chinesa circulando no país, levando à conclusão de que Pequim não está discriminando quem almeja com suas mensagens, apenas encontra terreno mais favorável nos que optaram pelas vacinas do país.
Um total de 54 associações de jornalistas de 50 países diferentes e territórios participaram da pesquisa para identificar a influência da China na mídia global, feita entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021. Foi oferecida a opção de anonimato para que pudessem falar mais livremente.
Os dados foram coletados em seis regiões: Ásia-Pacífico, África, Europa, América Latina, América do Norte e Oriente Médio/Norte da África. Em três países − Sérvia, Itália e Tunísia − jornalistas também participaram de discussões em mesa-redonda para construir uma imagem mais detalhada dos contornos do alcance chinês em sua região.
A pesquisa indica que a influência da China está sendo feita aos poucos − uma matéria de cada vez, um país de cada vez −, mudando a cobertura em uma direção mais positiva.
“A China usou o surto da Covid-19 para polir sua própria imagem global e consolidar ainda mais sua influência no ecossistema de mídia global”, diz o estudo.
O relatório completo (em inglês) pode ser visto aqui.
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