Dois congressistas americanos, o senador Ron Wyden e o deputado Jamie Raskin, anunciaram que vão propor uma lei para proibir o governo de obter dados telefônicos e de e-mails dos jornalistas para identificar suas fontes. A intenção foi anunciada depois que o Departamento de Justiça, já sob o governo Biden, enviou na semana passada uma carta à correspondente da CNN no Pentágono, Barbara Barr, informando que os registros de seus telefonemas e de e-mails realizados durante dois meses de 2017 haviam sido espionados pelo órgão no último ano do governo Trump, sem prévio conhecimento da repórter ou da CNN.

O aviso à correspondente da CNN fez o caso assumir maiores proporções, já que duas semanas antes o mesmo Departamento de Justiça informara aos jornalistas do The Washington Post Ellen Nakashima,  Greg Miller e Adam Entous (este último trabalhando atualmente na revista New Yorker) de que haviam sido vítimas da mesma prática, sem prévio conhecimento deles ou do jornal. Não se sabe se outros jornalistas receberam ou ainda receberão cartas semelhantes.

Segundo as diretrizes do Departamento de Justiça, em casos de segurança nacional, o Departamento de Justiça pode, desde que com autorização do procurador-geral, requerer os registros da comunicação trocada entre jornalistas e suas fontes. O conteúdo não é acessado, mas os dados permitem identificar os números telefônicos ou endereços de e-mail com quem os jornalistas falaram, em que data e horário, e por quanto tempo. Porém, as mesmas diretrizes estabelecem que tanto o jornalista como o veículo em que trabalha devem ser avisados previamente, para lhes dar oportunidade de discutir o escopo da decisão ou contestá-la no tribunal.

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Biden reprova espionagem de jornalistas

As cartas do Departamento de Justiça enviadas ao longo deste mês demonstram que o aviso prévio foi desrespeitado pelo órgão em 2020, ao optar por acessar os registros das comunicações realizadas pelos quatro jornalistas em 2017, a fim de tentar identificar as fontes que na época vazaram informações do governo aos jornalistas. Na época da espionagem, os repórteres investigados fizeram matérias sobre a influência russa na primeira eleição de Trump em 2016 e sobre a atuação internacional do governo em Coreia do Norte, Líbia e Afeganistão.

Com a nova lei, os congressistas pretendem proibir o governo de espionar as comunicações dos jornalistas, permitindo apenas duas exceções: quando forem suspeitos de ter cometido algum crime ou de estarem a serviço da espionagem para potências estrangeiras, mas mesmo assim com o devido mandado judicial.

Após a indignação causada com a confirmação da espionagem dos jornalistas, até o presidente Biden mostrou-se estarrecido. Perguntado sobre o tema, ele disse:

“É errado. É simplesmente errado apreender registros de telefonemas e de e-mails de jornalistas.”

Congressistas pedem suspensão da prática até a aprovação da nova lei

Enquanto elaboram a nova lei, o senador Wyden e o deputado Raskin enviaram no dia 18 de maio uma carta conjunta ao Departamento de Justiça pedindo que o órgão adote voluntariamente normas internas que proíbam a prática de obter os registros de comunicações com o objetivo de identificar fontes da imprensa.

Wyden tornou público o ofício enviado ao Departamento de Justiça em sua conta do Twitter na última sexta-feira (21/5). Fazendo referência à última carta recebida pela correspondente da CNN no Pentágono, ele postou a seguinte mensagem:

“É exatamente por isso que o deputado Jamie Raskin e eu estamos exigindo que o Departamento de Justiça pare com a prática de espionar os jornalistas americanos. Na última administração nós vimos muitos políticos corruptos importunando jornalistas. A administração Biden pode acabar com esse abuso de poder.”

No dia seguinte, foi a vez de o coautor da proposta, o deputado Raskin, saudar em sua conta do Twitter a fala do presidente Biden que, ao condenar a prática de espionagem de jornalistas, comprometeu-se a não vai deixar isso voltar a acontecer no Departamento de Justiça:

“Boas notícias! Eu aplaudo o presidente por seu firme compromisso com a imprensa livre. Poucos depois de o senador Wyden e eu termos pedido ao procurador-geral Garland para acabar com a prática do Departamento de Justiça de espionar os repórteres, Biden acabou de anunciou que vai proibir o Departamento de confiscar registros de telefonemas e e-mails dos jornalistas.”

Apelo para Biden liderar defesa global da liberdade de imprensa

No mesmo ofício enviado ao Departamento de Justiça, os congressistas Wyden e Raskin enfatizam que desrespeitar a privacidade da comunicação dos jornalistas é tão invasivo e destrutivo quanto a prática de tentar forçar os jornalistas a revelarem suas fontes por meio de processos judiciais. Eles também fizeram um apelo ao presidente Biden para que dê um exemplo global:

“Nós estamos trabalhando para criar nos próximos meses um escudo legal para os jornalistas. Entretanto, a administração Biden tem a oportunidade de voluntariamente deixar de lado os abusos de poder criminosos e orwellianos da administração passada, e firmar-se como um líder mundial da liberdade de imprensa.”

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Caso veio à tona no início do mês

O caso tornou-se público no início de maio e ganhou força na semana passada. O primeiro a noticiar foi o Washington Post, no dia 8. A matéria informava que dois de seus repórteres, Ellen Nakashima e Greg Miller, além do ex-repórter Adam Entous, tinham recebido cartas datadas de 3 de maio informando que seus registros telefônicos do período de 15 de abril a 31 de julho de 2017 tinham sido espionados.

Na última quinta-feira (20/5), foi a vez de a CNN divulgar que sua correspondente no Pentágono, Barbara Starr, recebeu uma carta semelhante datada de 13 de maio. Só que no caso dela, além dos registros telefônicos, foram obtidos também os registros de e-mail, no período de 1º de junho a 31 de julho de 2017.

Departamento confirma que alvos eram as fontes

O porta-voz do Departamento de Justiça Marc Raimondi esclareceu que os alvos das investigações não eram os profissionais da imprensa, mas suas fontes, “que tinham acesso às informações da defesa nacional e não as protegeram conforme legalmente exigido”.

O governo teve acesso aos registros telefônicos dos jornalistas do Washington Post de um período de três meses e meio. Foram apreendidos dados do telefone de trabalho de Nakashima, do celular de Entous e dos telefones residencial, de trabalho e do celular de Miller. 

Os dados coletados da jornalista da CNN dizem respeito a um período de dois meses. Foram verificados os registros dos números de telefone da extensão de Starr no Pentágono e o número do estande da CNN no Pentágono. Também houve acesso aos números de sua casa e de seus telefones celulares, bem como as contas de e-mail pessoal e de trabalho. 

Sobre o que escreviam os jornalistas espionados?

Durante o período que o governo decidiu espionar, os três jornalistas do Washington Post assinaram matéria detalhada sobre as lutas internas do governo Obama para conter a interferência russa nas eleições de 2016. E, ao final do período, publicaram uma reportagem sobre interceptações confidenciais da inteligência dos Estados Unidos. Nessa última, mostraram que as interceptações indicavam que em 2016 o senador republicano Jeff Sessions havia discutido tópicos da campanha de Trump com Sergey Kislyak, que era o embaixador da Rússia nos Estados Unidos.

Já a repórter da CNN, durante o período em que suas comunicações foram verificadas, veiculou informações sobre as opções que os militares haviam preparado para apresentar a Trump na Coreia do Norte, qual a ação americana em um possível ataque químico planejado na Síria e descreveu a mudança na política militar a respeito do número de baixas no Afeganistão.

Traição de confiança entre governo e imprensa

Na semana passada, John B. Kennedy, conselheiro-geral do Post, escreveu ao Departamento de Justiça protestando contra a apreensão dos registros dos repórteres sem aviso prévio. Enfatizando que a medida violava as diretrizes para a mídia de notícias do próprio departamento, ele disse:

“A conduta do Departamento foi, no mínimo, uma grave traição de confiança ao Post e a seus jornalistas.”

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O que dizem os envolvidos

O porta-voz do Departamento de Justiça, Marc Raimondi, disse que casos como esses são raros e seguem um procedimento legal, mas omitiu a falta do aviso prévio aos jornalistas e aos veículos:

“Embora raros, nesses casos o Departamento segue o devido procedimento legal para obter osregistros de ligações telefônicas e registros de e-mail dos jornalistas como parte de uma investigação criminal sobre a divulgação não autorizada de informações confidenciais.”

Tanto o Washington Post como a CNN invocaram a Primeira Emenda para manter seus jornalistas a salvo dessas interferências e exigiram explicações do Departamento de Justiça. O editor executivo interino do Post, Cameron Barr, disse:

“Estamos profundamente preocupados com este uso do poder do governo para buscar acesso às comunicações de jornalistas. O Departamento de Justiça deve esclarecer imediatamente as razões para essa intrusão nas atividades dos repórteres que faziam seu trabalho, uma atividade protegida pela Primeira Emenda. ”

O presidente da CNN, Jeff Zucker, seguiu uma linha parecida:

“A CNN condena veementemente a coleta secreta de qualquer aspecto da correspondência de um jornalista, que é claramente protegida pela Primeira Emenda. Estamos pedindo uma reunião imediata com o Departamento de Justiça para obter uma explicação.”

Desrespeito de Trump pela imprensa era mais abrangente do que parecia?

Com a revelação de que a jornalista da CNN também foi espionada, o diretor executivo do Comitê de Repórteres para a Liberdade de Imprensa, Bruce Brown, disse que o caso ganhou ainda mais importância:

“Este era um caso grande que ficou ainda maior. O fato de jornalistas de veículos diferentes terem seus registros telefônicos ou de e-mails apreendidos pelo Departamento de Justiça sugere que os esforços do governo de Trump para se intrometer nas relações entre repórteres e suas fontes é mais abrangente do que pensávamos originalmente.”

“A liderança atual do Departamento de Justiça deve fornecer uma explicação detalhada sobre o que exatamente aconteceu e por quê, e como planeja fortalecer as proteções para o fluxo livre de informações para o público.”

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