Mais de 100 jornalistas da agรชncia de notรญcias Associated Press entregaram ร  direรงรฃo nesta segunda-feira uma carta de protesto contra o desligamento da repรณrter estagiรกria Emily Wilder por suposto desrespeito ร  polรญtica de uso das mรญdias sociais, mas que na verdade teria ocorrido cedendo a uma campanha de pressรฃocontra as opiniรตes prรณ-palestinas do tempo em que Wilder, que รฉ judia e tem apenas 22 anos, ainda cursava a faculdade.

Nรฃo รฉ a melhor forma de agรชncia comemorar seus 175 anos. Com mais de quatro mil funcionรกrios ao redor do mundo, a AP alega que a demissรฃo estaria baseada nos tuรญtes postados por Wilder durante os dezesseis dias em que ela permaneceu como funcionรกria da empresa, entre 3 e 19 de maio. Porรฉm, a porta-voz da AP, Lauren Easton, nรฃo esclarece o que Emily  teria postado em violaรงรฃo ร  polรญtica.

Em entrevista concedida apรณs a demissรฃo, Emily disse que recebeu treinamento da AP em mรญdias sociais e o levou a sรฉrio, a ponto de ter retirado uma referรชncia ao seu apoio ao movimento Black Lives Matter em seu perfil no Twitter. Ela atribuiu a demissรฃo ao fato de a agรชncia de notรญcias ter cedido ร  pressรฃo sofrida:

โ€œNรฃo hรก dรบvida de que tudo isso foi precipitado por um ataque violento de assรฉdio contra mim. O fato de ter uma opiniรฃo sobre uma questรฃo que รฉ profundamente polรญtica e pessoal, nรฃo significa que eu seja incapaz de um jornalismo baseado em fatos, contextual e justo.โ€

Antes de sua demissรฃo, Emily fora alvo de ataques por seu ativismo na Universidade de Stanford, onde se formou em 2020. No dia 17, um tuรญte do grupo de jovens republicanos de Stanford a criticou por sua atuaรงรฃo no campus como uma โ€œagitadora anti-Israelโ€. Eles postaram um artigo de 2019 que ela havia escrito no jornal da faculdade atacando o comentarista conservador Ben Shapiro, crรญtico ferrenho dos palestinos.

Em sua conta no Twitter, enquanto era atacada, a repรณrter criticou o conceito de objetividade e o fato de nรฃo se poder usar o termo “Palestina” (jรก que as regras da AP nรฃo permitem o uso por nรฃo se tratar de um Estado reconhecido): 

โ€œObjetividade parece um conceito flexรญvel quando os termos bรกsicos que usamos para relatar notรญcias emitem posicionamentos implรญcitos. Usar “Israel”, mas nunca “Palestina” ou  “guerra”, mas nรฃo “cerco e ocupaรงรฃo” sรฃo escolhas polรญticas, mas a mรญdia faz essas escolhas o tempo todo sem ser apontada como tendenciosa.โ€

Figuras conservadoras importantes se juntaram ao ataque online, como o senador Tom Cotton, Robert Spencer e o mesmo Ben Shapiro que ela havia criticado em seu tempo de estudante.

No dia da demissรฃo, o jornal conservador The Washington Free Beacon, que na vรฉspera publicara artigo questionando a objetividade da prรณpria AP pelas revelaรงรตes (falsas) de que a agรชncia compartilhava espaรงo de escritรณrio com o Hamas no edifรญcio destruรญdo por foguetes de Israel no recente conflito com os palestinos, voltou a atacar a agรชncia pela contrataรงรฃo de Emily:

โ€œA รบltima contrataรงรฃo da AP รฉ uma ativista anti-Israel que acusou Israel de limpeza รฉtnica e chamou o falecido doador judeu Sheldon Adelosn de toupeira nuaโ€

Os artigos foram reproduzidos por outros veรญculos conservadores, incluindo o site da Fox News. Ao ser comunicada do desligamento, Emily nรฃo foi informada sobre qual regra especรญfica da polรญtica de mรญdias sociais da empresa teria violado.

Os jornalistas da AP que assinam a carta de protesto contra a demissรฃo exigem mais clareza sobre a decisรฃo. Eles externaram a preocupaรงรฃo de que a medida pode encorajar outras campanhas de difamaรงรฃo contra repรณrteres. Alรฉm disso, muitos se mostraram relutantes em continuar nas redes sociais.

โ€œA falta de comunicaรงรฃo nรฃo nos dรก a confianรงa de que qualquer um de nรณs nรฃo poderia ser o prรณximo sacrificado sem explicaรงรฃo. Isso nos faz questionar โ€“ principalmente os jornalistas emergentes – como tratamos os nossos, que cultura adotamos e quais valores realmente defendemos como empresa.โ€

Entre os jornalistas que assinam o memorando de protesto estรฃo pelo menos dez dos que ocupam posiรงรฃo de lideranรงa, embora entre eles nรฃo esteja a editora-executiva Sally Buzbee, que vai assumir a diretoria de redaรงรฃo do The Washington Post no mรชs que vem. A AP disse que Buzbee nรฃo se envolveu no caso Wilder, jรก que vinha passando as responsabilidades do do dia-a-dia aos colegas, depois de aceitar o convite do Post.

Antes da carta de apoio dos colegas, Emily postou no รบltimo sรกbado uma queixa contra a falta de apoio da Associated Press:

“ร‰ assustador ser uma jovem que foi posta de lado quando eu mais precisava do apoio de minha instituiรงรฃo. E รฉ ultrajante como sendo uma judia que cresceu em uma comunidade judaica, frequentou a escola ortodoxa e devotou seus anos de faculdade a estudar a Palestina e Israel โ€“ eu possa estar sendo difamada como anti-semita.”

Ativistas na faculdade nรฃo podem ser jornalistas?

Uma das professoras de Emily na universidade de Stanford, Janine Zacharia, disse nรฃo entender por que a AP nรฃo discutiu as preocupaรงรตes sobre os tweets com a repรณrter, em vez de demiti-la.

A professora, que jรก chefiou o escritรณrio do The Washington Post em Jerusalรฉm, estรก convicta que os ataques baseados no ativismo de Wilder na faculdade foram o verdadeiro problema.

Janine se preocupa com a mensagem que a AP estรก enviando ao mercado e ร s jovens promessas da profissรฃo, jรก que muitos ex-ativistas colocam sua paixรฃo no jornalismo, assim como Emily. Ela pergunta:

โ€œO que aconteceria se vocรช fosse um ativista na universidade e depois decidisse que quer se tornar um jornalista? Isso significa que vocรช nรฃo pode?โ€

AP vai revisar polรญtica de mรญdias sociais

Na carta de protesto, os jornalistas tambรฉm querem mais clareza no que pode ser dito em plataformas como Twitter e Facebook.

Em resposta, a direรงรฃo da Associated Press divulgou um memorando aos membros da equipe anunciando uma revisรฃo de suas polรญticas de mรญdia social. Serรก formado um comitรช para ouvir sugestรตes e apresentar recomendaรงรตes atรฉ setembro. Num dos trechos, o memorando dizia:

โ€œUma das questรตes levantadas nos รบltimos dias รฉ a crenรงa de que as restriรงรตes ร s redes sociais o impedem de ser vocรช mesmo, e que isso prejudica desproporcionalmente jornalistas negros, jornalistas LGBTQ e outros que muitas vezes se sentem atacados online. Precisamos mergulhar neste problema.โ€

A dificuldade de conciliar notรญcias e mรญdias sociais

O caso volta a chamar a atenรงรฃo para a dificuldade dos veรญculos de notรญcias de manter uma polรญtica condizente e atualizada de uso das mรญdias sociais por parte de seus jornalistas.

E essa dificuldade fica ainda mais evidente numa organizaรงรฃo tradicionalรญssima como a AP, com o peso de seus quase dois sรฉculos. A polรญtica das mรญdias sociais da agรชncia proรญbe seus jornalistas de tuitar as notรญcias de รบltima hora atรฉ que elas sejam compartilhadas primeiro no canal de transmissรฃo da AP, o que os deixa sempre um passo atrรกs do que os concorrentes mais rรกpidos nas redes.

As regras tambรฉm exigem que os jornalistas da AP que compartilham conteรบdo de outros devem deixar claro que as opiniรตes nรฃo sรฃo suas. Para evitar polรชmicas, a empresa pede que eles evitem equipes esportivas, atletas e celebridades. Segundo a polรญtica, a reaรงรฃo de outros usuรกrios “pode โ€‹โ€‹refletir negativamente na AP e um dia prejudicar a capacidade de um colega de obter informaรงรตes importantes de uma fonteโ€.

A respeito dessas regras, o memorando da direรงรฃo esclarece:

โ€œA AP estรก no negรณcio do jornalismo baseado em fatos. ร‰ quem nรณs somos. Temos essas regras para manternossa posiรงรฃo como uma fonte imparcial de informaรงรตes e para proteger nossos jornalistas โ€.

Em sua anรกlise do caso, Emily se considera mais uma vรญtima do conflito entre o uso das mรญdias sociais e as regras das polรญticas das organizaรงรตes de notรญcias:

“Sou uma vรญtima da aplicaรงรฃo assimรฉtrica das regras sobre objetividade e mรญdias sociais que tรชm censurado tantos jornalistas – particularmente jornalistas palestinos e outros jornalistas de cor – antes de mim.”

O que diz a AP sobre o caso da repรณrter

No comunicado aos funcionรกrios, a direรงรฃo da AP afirma que compartilhar mais informaรงรตes sobre o caso era difรญcil, jรก que a empresa segue a polรญtica de nรฃo discutir publicamente questรตes de RH para proteger a privacidade dos funcionรกrios:

โ€œPodemos garantir que grande parte da cobertura e dos comentรกrios nรฃo retratam com precisรฃo esta decisรฃo difรญcil, que nรฃo tomamos levianamenteโ€. O comunicado nรฃo deixa claro quais informaรงรตes teriam sido relatadas de forma imprecisa.

O que diz a repรณrter demitida

No รบltimo sรกbado (22), Emily Wilder postou seu posicionamento sobre o caso no Twitter, trรชs depois de sua demissรฃo:

โ€œComecei na Associated Press como repรณrter estagiรกria, um cargo de nรญvel jรบnior, em 3 de maio, apรณs 10 meses de reportagem para o The Arizona Republic. No Arizona, cobri notรญcias de รบltima hora, justiรงa criminal e protestos Black Lives Matter. Eu construรญ uma reputaรงรฃo respeitada na redaรงรฃo e nas comunidades que cobri, e tive orgulho de conseguir um emprego na AP.

Na segunda-feira passada, os republicanos da Universidade de Stanford lanรงaram uma campanha difamatรณria contra mim, tentando “expor” minha jรก pรบblica histรณria do ativismo pelos direitos humanos palestinos na Universidade de Stanford.

Fui transparente com meus editores e eles me garantiram que nรฃo enfrentaria puniรงรฃo por meu ativismo anterior. Eles me disseram que estavam apenas esperando para me apoiar quando recebi um ataque de comentรกrios e mensagens violentos, sexistas, anti-semitas e racistas.

Menos de 48 horas depois, a AP me demitiu. O motivo dado foi minha suposta violaรงรฃo da polรญtica de mรญdias sociais da AP em algum momento entre meu primeiro dia e quarta-feira.

Nesse รญnterim, conservadores poderosos como o senador Tom Cotton, Ben Shapiro e Robert Spencer repetidamente me criticaram online. Quando perguntei aos meus gerentes quais tweets exatos violavam a polรญtica ou como, eles recusaram-se a me dizer.โ€

“No final, ao invรฉs de tomar qualquer passo em falso que teria cometido como uma oportunidade de ensino – como รฉ o objetivo do programa de estรกgio – parece que eles aproveitaram a oportunidade para me tornar um bode expiatรณrio.

Isso รฉ de partir o coraรงรฃo para uma jovem jornalista com tanta fome de aprender com as reportagens investigativas destemidas de jornalistas da AP.

ร‰ assustador ser uma jovem que foi posta de lado quando eu mais precisava do apoio de minha instituiรงรฃo. E รฉ ultrajante como sendo uma judia que cresceu em uma comunidade judaica, frequentou a escola ortodoxa e devotou seus anos de faculdade a estudar a Palestina e Israel โ€“ eu possa estar sendo difamada como anti-semita e ser descartada no processo.

Sou uma vรญtima da aplicaรงรฃo assimรฉtrica das regras sobre objetividade e mรญdias sociais que tรชm censurado tantos jornalistas – particularmente jornalistas palestinos e outros jornalistas de cor – antes de mim.

A compaixรฃo que impulsionou meu ativismo รฉ parte do que me levou a ser uma repรณrter comprometida com a cobertura justa, crรญtica e baseada em fatos de histรณrias pouco contadas.

Agora, depois de ser despedida depois de menos de trรชs semanas no meu trabalho, tenho que perguntar que tipo de mensagem isso envia aos jovens que desejam canalizar sua indignaรงรฃo ou paixรฃo pela justiรงa em matรฉrias impactantes. Que futuro terรฃo os aspirantes a repรณrteres que sabem que uma instituiรงรฃo como a Associated Press sacrificaria aqueles com menos poder ao ataque cruel de um grupo de valentรตes anรดnimos?

O que isto significa para esta indรบstria, para a qual atรฉ mesmo compartilhar as experiรชncias dolorosas dos palestinos ou interrogar a linguagem que usamos para descrever sua situaรงรฃo podem ser vistos como irremediavelmente “tendenciososโ€?

Embora os รบltimos dias tenham sido opressores, nรฃo serei intimidada pelo silรชncio. Eu voltarei em breve.โ€

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