A situação do jornalismo no Paquistão, que já é ruim, pode ficar ainda pior. A recente invasão da casa do jornalista Asad Toor em 25 de maio por agentes da temida agência de inteligência militar do país para espancá-lo por ter se manifestado contra as forças armadas colocou as ameaças crescentes contra os jornalistas do país sob os holofotes das organizações que defendem a liberdade de imprensa no mundo.

Por pedir a identificação dos agressores num protesto realizado três dias depois, um dos jornalistas mais conhecidos do Paquistão, Hamid Mir, teve seu programa banido da grade da Geo News a partir da última segunda-feira (31/5). Seu discurso foi tão corajoso que viralizou nas redes sociais do país: 

“Nunca mais entrem nas casas dos jornalistas. Não temos tanques ou armas como vocês, mas podemos contar ao povo do Paquistão sobre as histórias que surgem de dentro de suas casas.”

A Geo News foi pressionada a demitir o jornalista alguns dias depois. Num comunicado, disse que o discurso “resultou em reações de diferentes segmentos da sociedade”, sem se referir diretamente aos militares.

Mais um passo rumo à autocracia, diz a Repórteres Sem Fronteiras 

Pakistan

O Paquistão foi controlado pelo Exército por quase metade de seus 74 anos de história, desde que o Reino Unido promoveu em 1947 a divisão da Índia, então uma colônia britânica. Embora os atuais presidente e primeiro-ministro paquistaneses não sejam militares, eles chegaram ao poder com o apoio deles.

O jornalista Hamid Mir, que teve seu programa banido, diz que esse controle é a tragédia do país:

“Não citei nenhum indivíduo ou organização no discurso. Esta é a verdadeira tragédia do Paquistão hoje. O país está sendo controlado por pessoas desconhecidas. Todos sabem quem são, mas ninguém ousa identificá-los. Nas sombras, eles fogem da responsabilidade.”

Há uma forte censura e não é à toa que o país ocupa uma das 40 piores colocações no ranking global de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, que analisou 180 países. Em comunicado, a organização disse que o episódio de espancamento de Toor, seguido pela demissão de Mir, “é mais um passo do Paquistão em direção à autocracia”.

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Um dos cinco países mais perigosos para jornalistas

O Paquistão está na lista dos cinco países mais perigosos do mundo segundo levantamento da Federação Internacional dos Jornalistas, com 138 jornalistas assassinados nas três décadas entre 1990 e 2020.

Somente em 2020 foram registrados 148 casos de ameaças e ataques contra jornalistas, incluindo sequestro e atentados a tiros. Cinco profissionais foram mortos, colocando o Paquistão como o segundo país com mais assassinatos de jornalistas ao longo do ano passado, atrás apenas do México. O próprio Mir, agora banido da programação, levou seis tiros em abril de 2014 no caminho para a emissora e até hoje convive com duas balas alojadas no corpo. Dois anos antes, uma bomba fora descoberta no carro dele.

Parece um cenário de terror para quem quer exercer o jornalismo? Pois se forem aprovadas as novas regras propostas pela portaria 2021, encaminhada pelo Ministério de Informação, a situação ficará muito pior.

Shahzada Zulfiqar, presidente da União Federal de Jornalistas do Paquistão, descreve a proposta como “lei marcial da mídia”.

“Estamos entrando na pior e mais negra era da liberdade de imprensa no país. Está piorando a cada dia. Falta segurança para o jornalista tanto na carreira quanto na vida pessoal.”

As ameaças da nova lei ao jornalismo

A portaria 2021 introduz algumas das mais draconianas medidas vistas em anos, incluindo uma proibição quase total de cobertura negativa do governo ou dos militares. Para começar, ela revoga todas as leis de liberdade de imprensa que atualmente (pouco) protegem os jornalistas paquistaneses.

Segundo as novas regras, os apresentadores dos noticiários de TV não poderão transmitir visões que sejam “prejudiciais à soberania, integridade ou segurança do Paquistão”.

As reportagens que “difamem ou ridicularizem o chefe de estado, ou membros das forças armadas, dos órgãos legislativos ou do judiciário” simplesmente não poderão ser feitas.

Será designado um órgão, a Autoridade para o Desenvolvimento da Imprensa do Paquistão, que terá poderes para inspecionar qualquer organização de notícias, convocar qualquer jornalista para investigação e cancelar a licença de qualquer veículo. Até jornalistas transmitindo pelo YouTube precisarão de uma licença.

Qualquer tipo de conteúdo poderá ser proibido sem aviso prévio. Em caso de disputa, um tribunal, nomeado pelo Ministério da Informação e não pelo judiciário, decidirá o que pode e o que não pode ser dito.

Para completar, os “infratores” condenados poderão ser punidos com até três anos de prisão. Sem falar, é claro, das multas, que poderão chegar a milhões de rúpias.

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Associações dizem que proposta é declaração de guerra ao jornalismo

Nesta quinta-feira (3/6), todas as organizações representativas da imprensa independente do Paquistão lançaram uma campanha contra a nova lei. O anúncio foi publicado por todos os jornais do país, com algumas raras exceções. O texto diz que “há razões claras para o conjunto de todas as organizações da imprensa independente na mídia impressa, de rádio e TV e digital rejeitasse por unanimidade a proposta de lei do Ministério da Informação”.

O anúncio se opõe à criação da Autoridade de Desenvolvimento da Imprensa do Paquistão e diz que a proposta é “uma declaração de guerra contra o jornalismo independente”, que visa a emudecer todas as vozes críticas da mídia por meio de um sistema de censura coercitiva.

As associações criticam o fato de o órgão proposto “poder impor sanções arbitrárias, incluindo a invasão das redações, a imposição de multas fechadas ou o fechamento de qualquer veículo de notícias com o mais frágil dos pretextos”, além de suas decisões só poderem ser contestadas na Suprema Corte, já que estarão isentas de revisão por qualquer tribunal.

Também enfatizam que, além dos impostos normais já pagos, as organizações de notícias seriam obrigadas a pagar novas taxas de licenças ao Governo para poderem continuar operando, com valores exorbitantes.

É a segunda vez que Mir é banido do ar

Esta não é a primeira vez que uma ordem militar retira do ar o programa Capital Talk, de Hamid Mir. Trata-se de um dos programas mais prestigiosos do Paquistão, que vinha sendo apresentado todas as noites da semana das duas últimas décadas no Geo News, o canal mais popular do país.

Situação semelhante aconteceu em 2007, quando o general Pervez Musharraf, então presidente do Paquistão, impôs o estado de emergência no país. Na ocasião, o líder militar (que por causa dessa violação à Constituição perderia o poder em 2008, seria condenado à morte em 2019 e teria essa pena anulada em 2020) suspendeu os direitos constitucionais, mandou as Forças Armadas para a rua, prendeu o líder do poder legislativo e, entre outras medidas, proibiu Hamid Mir de aparecer na televisão.

Desta vez, a proibição veio logo depois de Mir manifestar-se contra o ainda todo-poderoso sistema militar do país, durante o protesto pela liberdade de imprensa realizado no dia 28 de maio em Islamabad, em solidariedade a Asad Ali Toor, que fora espancado três dias antes em sua própria casa. Alguns dias depois, ao ser informado que por causa disso seu programa seria retirado da programação, ele não culpou a emissora:

“Quando a Geo me ligou para dizer que estava sendo pressionada para me tirar do ar, não os culpei. O dono da emissora, Mir Shakil-ur-Rahman, já passou 241 dias atrás das grades injustamente, por acusações de motivação política.”

O banimento do programa de Mir foi condenado inclusive pela Anistia Internacional, que disse em comunicado que a decisão prejudica ainda mais a liberdade de expressão “em um ambiente já repressivo”:

“Censura, assédio e violência física não devem ser o preço que os jornalistas pagam para fazer seu trabalho.”

Espancamento foi só o caso mais recente

Toor foi apenas o mais recente jornalista atacado na capital do Paquistão.

Em 20 de abril, foi a vez de outro importante jornalista paquistanês, conhecido por criticar os militares. Trata-se do veterano Absar Alam, colega de Mir na Geo TV, que foi gravemente ferido por um tiro disparado enquanto caminhava em um parque perto de sua casa.

Em julho do ano passado, Matiullah Jan, conhecido por sua cobertura crítica do sistema judicial e as tentativas dos militares de controlá-lo, foi sequestrado durante metade do dia por homens que o torturaram e ameaçaram matá-lo se ele continuasse com suas reportagens críticas.

No caso da invasão da casa de Toor, os agressores se apresentaram como oficiais do Inter-Services Intelligence (ISI), o obscuro braço de segurança dos militares. Toor é conhecido por postagens nas redes sociais criticando os abusos dos militares e do ISI. Ele relatou que os agressores o forçaram a gritar slogans em apoio aos Paquistão, aos militares e ao ISI:

“Disseram-me que o exército e o ISI não estavam felizes com o meu jornalismo. Enquanto me torturavam, eles me perguntaram por que eu havia citado o ISI e o exército em minhas reportagens.”

Apesar de os agressores terem sido filmados por câmeras de segurança, ninguém foi preso. Em vez disso, uma campanha de difamação foi lançada contra o jornalista, seguindo um padrão usado contra os profissionais de imprensa agredidos.

As autoridades do Paquistão negaram qualquer envolvimento com o espancamento e alegaram que Toor, tendo como objetivo buscar asilo político no exterior, teria encenado o ataque, apesar das cicatrizes e hematomas resultantes da agressão.

Por sua vez, a Agência Federal de Investigação, acusada de assediar jornalistas rotineiramente, convocou Toor para responder a novas acusações e abriu um processo por “difamação” de uma instituição governamental.

Em entrevista à BBC para falar do caso, o ministro da Informação, Fawad Chaudhry, afirmou:

“Provavelmente temos mais imprensa livre do que no primeiro mundo.”

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Primeiro-ministro defendia a imprensa

A ironia é que o atual primeiro-ministro Imran Khan, que chegou ao poder em 2018 com o apoio dos militares, foi um dos poucos políticos que apoiaram o jornalista Hamid Mir quando ele teve seu programa de talk-show banido pela primeira vez, em 2007.

Khan já foi casado com uma jornalista de TV e teve estreito contato com os profissionais de imprensa durante sua brilhante carreira esportiva anterior à entrada na política. Ele é considerado o maior jogador de críquete que o Paquistão já teve e era o capitão da seleção que conquistou a única Copa do Mundo do esporte para o país, em 1992.

Mir conta que quando foi banido da TV, em 2007, e por isso levou o programa de entrevistas para as ruas de Islamabad, o atual primeiro-ministro, que era um participante regular, lhe prometeu: 

“Quando eu me tornar primeiro-ministro, os jornalistas terão verdadeira liberdade de imprensa”.

No momento em que Khan conseguiu assumir o cargo, o Paquistão ocupava o 139º lugar no ranking global de Liberdade de Imprensa da Repórteres Sem Fronteiras.

Desde então, jornalistas e grupos de direitos civis têm denunciado uma erosão contínua da liberdade de imprensa. No ano passado o país já havia despencado para o 145º lugar. “A impunidade dos crimes de violência contra jornalistas é total”, diz a Repórteres Sem Fronteiras.

Após o espancamento do colega Toor e do banimento de seu programa, Hamid Mir foi convidado a escrever um artigo para o jornal britânico The Guardian, que foi publicado nesta quinta-feira (3/6). O texto termina da seguinte forma:

“Quero perguntar ao primeiro-ministro Khan se ele se lembra da promessa que me fez há 14 anos. Ele ficará ao lado dos jornalistas agora, como naquela época, ou ficará do lado dos inimigos da liberdade de imprensa?”

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