Londres − A jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, foi a escolhida pelo Instituto Reuters para Estudos do Jornalismo, um dos principais centros de pesquisa da atividade em todo o mundo, para apresentar a conferência Reuters Memorial Lectures de 2021, realizada no dia 8 de junho.
Patrícia falou sobre Como resgatar o jornalismo na era da mentira.
A jornalista tornou-se uma das principais referências globais em perseguição à imprensa devido ao assédio que passou a sofrer sobretudo a partir da publicação de reportagens mostrando como os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro haviam pago empresas para enviar automaticamente milhões de mensagens pelo WhatsApp durante a campanha presidencial de 2018.
A série deu origem ao livro A máquina do ódio. Em maio de 2020, Patrícia processou um dos filhos de Bolsonaro por alegar falsamente que ela havia usado sexo para obter informações desfavoráveis sobre seu pai. Eduardo foi condenado a pagar indenização de R$ 30 mil. O resultado foi notícia em vários países. A imprensa global tem acompanhado atentamente as violações à liberdade de imprensa no Brasil.
Cobrindo um conflito em casa
Em entrevista publicada antes da apresentação, Patrícia comparou a atuação dos correspondentes estrangeiros ao trabalho dos jornalistas no Brasil. Observou que os repórteres que cobrem guerras em outros países estão lá porque desejaram estar, e um dia voltarão para as suas casas, o que torna as pessoas locais as verdadeiras vítimas. No Brasil a situação é oposta:
“Cobrir a ascensão de um governo autoritário no Brasil é muito diferente. Mesmo que este não seja um conflito real, estamos vivendo uma guerra contra o jornalismo, e os jornalistas são os alvos agora”.
A jornalista acha que a imprensa tem conseguido adaptar-se bem ao quadro de intimidação, que a seu ver não acontecia desde a ditadura militar.
“No início, ficamos todos um pouco chocados. Aí a gente reagiu e a mídia brasileira ficou muito orgulhosa porque se adaptou.
A maioria dos jornalistas não se autocensura. Eles estão mantendo sua independência e fazendo um excelente trabalho”.
Sobre as expectativas em relação à animosidade do presidente Bolsonaro com o jornalismo, disse que a mídia não antecipou o que viria a acontecer. E observou que o uso de instituições democráticas para erodir a democracia por governantes autoritários é um fenômeno global.
“Muitos de nós ainda pensávamos com a velha mentalidade, presumindo que qualquer líder autoritário tomaria o poder por meio de um golpe de Estado clássico.
E percebemos que é possível ter um governo autoritário mesmo sendo eleito democraticamente. Aconteceu na Venezuela, nos Estados Unidos e nas Filipinas”.
A responsabilidade das mídias sociais
“Nesse contexto, se as condições do país são favoráveis, elas viram ferramentas realmente perigosas para minar a democracia e manipular o debate público”.
A jornalista acha que as empresas de mídia digital “demoraram um pouco”, mas acabaram percebendo que estavam causando um grande problema e começaram a tomar medidas para mitigar isso.
Ela revelou que no início as plataformas negavam a existência de sistemas automatizados para enviar mensagens em massa sempre que eram confrontados com essa hipótese. Mas depois dos linchamentos na Índia e das eleições de 2018 no Brasil “perceberam que tinham um grande problema de relações públicas e seu comportamento mudou”.
A partir daí, segundo a jornalista, passaram a agir processando empresas de marketing por mau uso da plataforma e proibindo envio de mensagens em massa.
Patrícia considera que o mau uso das plataformas no Brasil e na Índia não recebeu tanta atenção no passado porque o que acontecia nos Estados Unidos era mais visível, “e há uma enorme diferença na forma como eles aplicam suas regras nos EUA e na Europa e no resto do mundo”, afirmou.
A jornalista citou como exemplo matéria recente mostrando que, embora o presidente Bolsonaro tenha violado as regras da comunidade em relação à Covid-19 no Facebook mais de 25 vezes em dois meses, não havia rotulagem ou links para mais informações em seus vídeos, como ocorria com as postagens de Trump:
“Acho que há padrões diferentes sobre o tipo de política de moderação que eles aplicam e o quanto se preocupam com o uso indevido de suas ferramentas, dependendo da importância do país”.
Em sua opinião, a gravidade da desinformação sobre pandemia ajudou a reverter o quadro, mas as fronteiras entre saúde pública e política nem sempre são fáceis de estabelecer:
“Em vários países, saúde pública e política são tão misturadas que, ao fazer cumprir as regras de saúde pública, as plataformas entram em questões políticas”.
Mulheres, vítimas do assédio online e offline
Na entrevista ao Instituto Reuters, Patrícia falou de sua experiência pessoal com assédio online, lembrando que é um problema generalizado que afeta desproporcionalmente as mulheres, especialmente as negras.
“Nunca tinha passado por nada assim. Sou jornalista profissional desde sempre e nunca fui pessoalmente alvo desse tipo de campanha. É muito pessoal.
Temos a tendência de pensar que isso é algo que permanece online, mas não permanece. Está cada vez mais misturado com a vida real. Muitas ameaças online que recebi migraram para o mundo real”.
Ela revelou que recebeu ligações de pessoas dizendo “vou dar um soco na sua cara” e ameaças contra o filho, além das típicas agressões de cunho sexual usadas para deslegitimar jornalistas mulheres ao redor do mundo.
E fez questão de reforçar que não é a única a sofrer tal violência, uma situação atípica para os profissionais de imprensa:
“Não estamos acostumados a ser notícia. Como jornalistas, somos treinados para ouvir nossas fontes e falar com todos os envolvidos em uma questão.
Nunca tive que considerar o que aconteceria se publicasse isso ou como protegeria nossa família ou como protegeria minha saúde mental. Agora é algo que devo levar em consideração antes de publicar matérias investigativas””.
Como lidar com o assédio
A partir de sua experiência, a jornalista deu conselhos para quem passa por assédio.
“Há um provérbio que diz: “Não bata palmas para os loucos quando eles dançarem”. Então, basicamente, não responda. Não alimente os trolls, pois vai encorajá-los e é isso que eles querem”.
Patrícia contou que a cada vez que alguma informação falsa circula, limita-se a publicar as informações corretas com evidências, sem se envolver em discussões online. E que se identificar algo sério, chama a polícia.
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Ela recomendou aos que se sentem atingidos: ter um amigo ou parente que possa ler todas as mensagens de ódio apenas para verificar se há algo perigoso que precisa ser denunciado à polícia, para que não seja necessário continuar vendo os ataques:
‘É tóxico e faz você se sentir gradualmente deprimido”.
Sobre o processo contra o presidente Jair Bolsonaro e seu filho, disse que nunca havia pensado em acionar ninguém judicialmente, mas que se não o fizesse, pareceria que aquele comportamento era normal e que “eles poderiam fazer qualquer coisa”.
“Só porque você foi eleito para um cargo público, você não pode simplesmente caluniar as jornalistas como uma estratégia de intimidação.”
Ainda que caiba recurso, a jornalista acredita que a vitória em primeira instância foi de certa forma um alívio, “porque significa que ainda há alguma independência no judiciário, mesmo que esteja diminuindo”.
No entanto, lembrou que nem todos os agredidos têm o mesmo suporte:
“Eu trabalho em uma organização jornalística e é o advogado da empresa que está me defendendo. Mas sei que essa não é uma opção para todos”.
Mas lembrou que a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) tem um acordo com a Ordem dos Advogados do Brasil para ajudar com profissionais trabalhando sem cobrar honorários em casos de assédio.
“É importante não deixar essas pessoas pensando que só porque são políticos é aceitável intimidar a imprensa.”
O link para a palestra de Patrícia Campos Mello (em inglês) no dia 8/6 está aqui.
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