Há exatos cem anos, no dia 23 de junho de 1921, morria, num táxi, aos 39 anos, João do Rio, aquele que, em seu tempo, foi o mais revolucionário jornalista brasileiro. O homem que deixou o conforto das repartições e das redações para ir às ruas e, ali, entre palácios e favelas, descobrir e revelar a verdadeira alma da cidade e do povo do Rio de Janeiro.
Tinha deixado o prédio de seu jornal A Pátria, no centro da cidade, por volta de 22 horas, e estava a caminho de sua casa, em Ipanema. Passou mal e morreu ali mesmo, dentro do táxi, após pedir ao motorista, seu conhecido, para parar e lhe conseguir um copo d’água, por não estar se sentindo bem. Isso foi no bairro do Catete.
Seu nome verdadeiro era João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, ou simplesmente Paulo Barreto, jornalista, escritor, cronista, dramaturgo, que, a despeito de sofrer os preconceitos por ser obeso, negro e homossexual, não se intimidou e foi um dos grandes nomes da intelectualidade do Brasil recém entrado na República, naquela virada de século.
Filho de Alfredo Coelho Barreto, professor de matemática, e da dona de casa Florência dos Santos Barreto, Paulo Barreto nasceu na rua do Hospício, 284 (atual rua Buenos Aires, no centro do Rio).
João do Rio publicou primeiro texto aos 16 anos de idade
Prolífico, deu partida à carreira jornalística quando tinha 16 anos, ao publicar seu primeiro texto no jornal O Tribunal, com uma crítica teatral sobre a peça Casa de Bonecas, de Ibsen, então em cartaz no Teatro Carlos Gomes. Não parou mais.
Se nessa estreia assinou o texto com seu nome de batismo, viriam depois inúmeros pseudônimos, dos quais o mais conhecido e que o consagrou foi o de João do Rio.
Passou por vários veículos e, com inquietude e talento, foi conquistando a sociedade e ampliando seu olhar sobre a atividade jornalística, sendo um dos primeiros a viver exclusivamente da atividade, como profissional, e o precursor – para muitos o próprio inventor – da reportagem e do novo jornalismo, que o mundo ocidental só conheceria na plenitude décadas depois.
Entre 1900 e 1903 colaborou com vários órgãos da imprensa carioca, como O Paiz, O Dia, Correio Mercantil, O Tagarela e O Coió. Foi, no entanto, na Gazeta de Notícias, onde trabalhou de 1903 a 1913, que deu vida ao João do Rio, pseudônimo que o consagraria e que manteve até a morte.
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Série de reportagens virou livro bestseller em meio ao analfabetismo
Ali, na Gazeta de Notícias, entre 22 de fevereiro e abril de 1904, realizou uma série de reportagens intituladas As Religiões no Rio, que de tanta repercussão virou livro, vendendo mais de oito mil exemplares em seis anos – um feito para um país com elevadas taxas de analfabetismo, como era o Brasil de então.
Outro livro que o levou ao patamar dos grandes escritores brasileiros foi A Alma Encantadora das Ruas , de 1908. A obra certamente contribuiu para sua entrada na Academia Brasileira de Letras, em 1910, na sua terceira tentativa, quando passou a ocupar a cadeira 26.
Em 1920, Paulo Barreto, o João do Rio, partiu para seu próprio empreendimento, fundando o jornal A Pátria, no qual buscou defender os interesses dos “poveiros”, pescadores lusos oriundos em sua maioria de Póvoa de Varzim, e que abasteciam de pescado a cidade do Rio de Janeiro.
“Essa atividade em prol da colônia portuguesa granjeou-lhe grande quantidade de inimigos, um sem-número de ofensas morais (“manta de banha com dois olhos” foi uma das mais leves) e até mesmo um covarde episódio de agressão física, quando, surpreendido enquanto almoçava sozinho num restaurante, foi surrado por um grupo de nacionalistas”, conforme informa texto sobre ele a Wikipedia.
Romance com a “musa do século”
Embora por todos apontado como homossexual, João do Rio conheceu e teve um affair intenso com Isadora Duncan, a “musa do século”, um dos maiores nomes da dança mundial, que esteve no Brasil em 1916.
Embora tenha conquistado o coração de ninguém menos que Oswald de Andrade, foi com João do Rio que ela circulou intensamente pelo Rio de Janeiro, nos dias em que aqui esteve. Segundo o escritor Danilo Gomes, “dos muitos encontros que tiveram, chegou a correr a versão, à época, de que Isadora dançara, quase nua, próximo das furnas da Tijuca, para encanto de João do Rio.
Com A Pátria, o jornalista não teve muito tempo de consolidar seu próprio negócio, pois alguns meses depois faleceu. Mas a prova de seu prestígio foi a comoção que a sua morte provocou em todo o Rio de Janeiro e estima-se que mais de 100 mil pessoas tenham participado de seu féretro, número inferior apenas ao do sepultamento do Barão do Rio Branco, no mesmo Rio de Janeiro, nove anos antes, em 1912.
A newsletter Jornalistas&Cia dedicou seu especial do Dia da Imprensa, que circulou em 2 de junho deste ano, à vida e obra de João do Rio. Com textos dos jornalistas José Maria dos Santos, Assis Ângelo e Moacir Assunção, com equipe de estudantes da Universidade São Judas, o especial resgata para as novas gerações um pouco do que foi esse brasileiro que abriu caminho para o jornalismo moderno.
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