Um país polarizado pela divergências em relação à saída da União Europeia e por opiniões opostas quanto às regras de combate ao coronavírus como o Reino Unido não precisava de mais um motivo para brigas.

Mas ele foi dado pelo governo, que no início da semana anunciou a intenção de suspender todas as medidas de isolamento social a partir de 19 de julho, o chamado “Dia da Liberdade”. O ponto mais polêmico é o uso de máscaras, que passará a ser uma decisão individual de cada um e não uma imposição. 

Diante do aumento no número de casos da variante Delta, foi anunciado dias depois o adiamento da abertura total das atividades do país. Mas a decisão sobre as máscaras continou delegada aos cidadãos, que segundo o governo devem escolher com base no bom senso se querem ou não continuar usando a partir do dia 19, e onde o farão. 

A notícia sobre a morte das máscaras foi dada primeiro por um secretário nacional do gabinete de Boris Johnson em um entrevista na emissora Sky News no domingo (4/7). Robert Jenrick, responsável pela pasta de Habitação, falava em nome do governo, mas deu sua posição pessoal sobre as máscaras: “Ninguém gosta de usá-las”.

A queda da obrigatoriedade foi confirmada pelo primeiro-ministro em uma entrevista coletiva no dia seguinte. Médicos e entidades como a Associação Médica Britânica reprovaram a decisão. Alguns assessores científicos do próprio governo, como o professor Chris Whitty, uma das faces mais conhecidas da pandemia, afirmou que continuará usando. 

Mas ao mesmo tempo em que libera os cidadãos para tomarem sua decisão, Boris Johnson declarou que as pessoas não devem achar que o fim das medidas do distanciamento social significa o fim da Covid-19.

“Estamos longe do fim”, disse o primeiro-ministro, irritando os que acham que se a doença continua avançando, as máscaras deveriam continuar sendo obrigatórias. 

A dimensão da discórdia que se avizinha pode ser medida pelos resultados de uma pesquisa feita pelo instituto YouGov. O uso de máscaras em lojas e transportes públicos é a medida que os ingleses menos querem que seja eliminada, (22%), com a grande maioria (71%) achando que essa prática deve continuar após o ‘Dia da Liberdade’. Isso inclui mais da metade em cada faixa etária, chegando a três quartos das pessoas com mais de 65 anos (76%). 

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Na terra de Shakespeare, a nova questão que divide a sociedade tem sido tratada pela mídia com um bordão inspirado em na célebre frase do escritor na peça teatral Hamlet, “ser ou não ser, eis a questão?”. A questão que agora separa os britânicos é: To mask or not to mask (usar ou não a máscara)?

Mais do que uma questão médica, a situação é um problema de comunicação. O governo não afirmou categoricamente que as máscaras são inúteis. Mas também não obriga seu uso, nem o recomenda oficialmente. mas sugere que sejam utilizadas em certas situações, deixando um vácuo no que muitos esperam ser o papel do Estado: criar regras para o funcionamento da sociedade.

Isso deixou muita gente no limbo, como empresas sem saberem se obrigarão o uso em suas dependências e como fazer para que o público respeite, já que vai deixar de ser lei. Companhias aéreas como a Ryanair já aunciaram que continuarão a obrigar o uso de máscaras, assim como algumas redes de supermercado.

Já os organizadores dos festivais culturais Lattitude, Reading e Leeds disseram que não obrigarão nem recomendarão que os participantes usem máscaras. 

Alex Motoc/Unsplash

No transporte público a situação promete se tornar crítica.  Na teoria, os fiscais terão o direito de pedir a uma pessoa que se recuse a usar máscara a desembarcar. Ao mesmo tempo, eles não podem discriminar cidadãos de acordo com a lei de igualdade promulgada em 2010. 

Essas situações tendem a virar conflitos, pois a obrigatoriedade é questionável. Não sendo mais uma obrigação legal, vai ser mais difícil convencer as pessoas a usá-las voluntariamente. 

Desde que a nova política foi revelada, já tem sido comum em Londres encontrar pessoas em lojas ou supermercados sem a máscara, indicando que depois do dia 19 a adesão deve diminuir ainda mais. 

Uma pergunta recorrente em conversas e entrevistas passou a ser: “Você vai usar máscara mesmo quando não precisar?”.

Virou um teste de personalidade e de ideologia, com a resposta indicando se a pessoa é conservadora, progressista, a favor da liberdade individual ou adepta do controle do estado sobre os cidadãos. O temor é que a partir de agora quem usar máscara seja ridicularizado ou receba olhares de reprovação.

Sociedade dividida

O dilema shakesperiano é mais uma divisão em uma sociedade já dividida, sobretudo desde o Brexit.

Para quem acha que exagero, uma pesquisa divulgada esta semana pelo pesquisador Frank Luntz, um dos maiores especialistas globais em linguagem política e comunicação, revelou que o Reino Unido não é tão polarizado quanto os Estados Unidos. Mas deixou de ser a nação unida pelos mesmos valores que era no passado.

O estudo mostrou que 29% dos britânicos deixaram de falar com alguém por discordância política. E que a preocupação com o comportamento woke (politicamente correto) é a terceira mais importante dentre 18 questões ideológicas apresentadas aos entrevistados, perdendo apenas para racismo e fundamentalismo religioso.

A cultura do cancelamento também é vista com preocupação. Para 39%, ela é negativa porque impede a liberdade de expressão e discussão honesta sobre questões sociais. E 64% acham que ela foi longe demais, impedindo as pessoas de manifestarem opiniões sem temer consequências.

Nesse ambiente, não é fora da realidade o “climão”; entre os que abandonarão a máscara e os que terão coragem de usá-la mesmo com olhares enviesados.

Essa divisão não é apenas sobre uso de um pedaço de tecido cobrindo o nariz e a boca. Ela expõe a visão da sociedade sobre o governo e os políticos.

O excesso de controle e de influência estatal apareceu como preocupação principal para os britânicos dentre sete opções, à frente do medo de o país perder relevância global; da influência da tecnologia sobre a vida; e da dificuldade de economizar para o futuro.

Desde a invenção do biquíni, um pedacinho de pano não causava tanta polêmica.

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