A BBC apanha pelo que faz e pelo que deixa de fazer. E não poderia passar a cobertura das Olimpíadas distante de controvérsias. A principal delas é a redução de transmissões ao vivo, resultado do acordo feito com a Discovery, que enfureceu os espectadores por deixar de exibir competições importantes.

Mas uma crítica preconceituosa ao extremo dirigida a uma profissional da rede em Tóquio acabou se voltando contra quem a fez. E desencadeou apoio até de pessoas conhecidas pela intolerância.

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A personagem é a apresentadora Alex Scott, ex-jogadora de futebol. Ela é negra e foi criada em Poplar, ao leste de Londres, onde foi ambientada a série Call the Midwife, retrato fiel da vida em áreas desprovidas da cidade. E fala com sotaque característico do local, sem pronunciar claramente o “g” ao final de palavras como swimming (natação) ou boxing (boxe). 

Isso não foi problema para a BBC. Ao admiti-la e escalá-la para a cobertura mais importante do esporte, destacada no centro da foto da página que apresenta o time olímpico em Tóquio, a rede assumiu posição em favor da inclusão, mesmo sendo a referência do inglês “padrão” do país, o chamado “BBC English”.

(Divulgação BBC)

Só que nem todos gostaram. E quem expressou irritação não foi uma pessoa qualquer. Foi um ex-ministro do Comércio, o barão Jones de Birmingham, que até 2020 tinha assento da Câmara dos Lordes, no Parlamento.

Lord Jones, de 65 anos, usou o Twitter para atacar Scott em tom incompatível com o linguajar de um lorde inglês (pelo menos em público):

“Chega! Eu não aguento mais! Alex Scott estraga um bom trabalho de apresentação na equipe olímpica da BBC com sua notável incapacidade de pronunciar o ‘g’ no final de uma palavra. Os competidores NÃO estão disputando, Alex, no fencin, rowin, boxin, kayakin, weightliftin & swimmin.”

Referindo-se também a Beth Rigby, veterana repórter de política da emissora Sky News, e a Priti Patel, secretária nacional do Home Office (pasta que cuida de justiça e segurança pública) do primeiro-ministro Boris Johnson, ele seguiu em frente:

“Pelo amor de Deus! Alguém pode dar aulas de elocução a essas pessoas? … Em nome da Língua Inglesa … Socorro!”

O caso é um exemplo da estratificação da sociedade britânica, na qual nobres e abastados que estudaram em caras escolas particulares diferenciam-se pela forma de falar. E muitos fazem questão de exibir a diferença, uma atitude anacrônica em um mundo que clama por inclusão.

A reação não tardou

Linguistas, jornalistas e escritores uniram-se ao coro de condenação ao lorde que perdeu a fleuma. O ator e diretor Stephen Fry replicou o tuíte dizendo: “Você é tudo o que os linguistas e verdadeiros amantes da linguagem desprezam”. E criticou o “esnobismo deslocado”.

“Eu me pergunto quais sotaques seriam aceitáveis para os esnobes de Digby”, ironizou Gary Lineker, jornalista do time de esportes da BBC.

Até o controvertido jornalista Piers Morgan, defensor da livre expressão a qualquer preço e inimigo do “politicamente correto”, recriminou Lord Jones, a quem chamou de “insuportavelmente pomposo”.

Mas a melhor reação veio da própria Alex Scott. Ela não se intimidou. Defendeu o sotaque, dizendo-se orgulhosa de suas raízes na “working class”, uma expressão dos tempos em que nobres e ricos da aristocracia inglesa não trabalhavam. 

E foi além, usando sua popularidade na mídia para mandar um recado a crianças de origem humilde:

“Uma mensagem para crianças que talvez não tenham privilégio na vida. Nunca permita que julgamentos sobre sua classe, sotaque ou aparência virem impedimento. Use sua história para escrever sua história. Continue se esforçando, continue brilhando e não mude por ninguém.”

Críticas do lorde são exemplo da resistência

O final é feliz, pois ela saiu por cima. Mas a história faz pensar no abismo que persiste entre o discurso da diversidade na mídia e a inclusão na prática. 

Jornalismo e esportes estão entre as áreas em que esse gap fica mais evidente, pela exposição de atletas e de figuras da mídia como Alex Scott, alvos fáceis de ataques. E pela dificuldade que muitas redações ainda têm em abrir espaço para minorias, mulheres e gente de classes sociais variadas. Mesmo quando isso acontece, a reação do público não é unânime, o que pode desestimular iniciativas ousadas como a da BBC. 

O notável é que organizações de mídia podem desafiar preconceitos, como fez a BBC ao ter Scott e outros profissionais com sotaque regional em seus quadros. E profissionais de mídia podem usar sua visibilidade para confrontar a discriminação, como fez a apresentadora. Merecem ouro olímpico.

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