O desrespeito à imprensa no México chegou a um novo patamar: o cartel de drogas mais poderoso do país divulgou um vídeo pelas redes sociais no qual homens mascarados ameaçam de morte a apresentadora do principal telejornal da Milenio Televisión, Azucena Uresti. O motivo alegado foi uma “cobertura injusta” em favor de grupos rivais.

O vídeo, que começou a circular nesta segunda-feira (9/8), mostra seis homens mascarados fortemente armados em torno de um porta-voz, também mascarado, sentado numa mesa. Ele diz transmitir uma mensagem do líder do grupo, Rubén Oseguera Cervantes, um ex-policial também conhecido como “El Mencho”.

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O ex-policial é atualmente o principal alvo da DEA (agência antidrogas norte-americana) no México. Por sua captura, ela oferece a recompensa recorde de US$ 10 milhões (mais de R$ 50 milhões).

Em sua fala, o representante do cartel Jalisco Nova Geração ameaça diretamente a jornalista, prometendo “fazê-la engolir suas palavras”. E acusa o Milenio, um dos maiores grupos de comunicação do país, de receber dinheiro para favorecer os inimigos.

Cidadãos mexicanos forma milícias para combater narcotráfico. (Reprodução)
Miliciano exige “cobertura equilibrada”

Também foram ameaçados os grupos Televisa e El Universal. Apesar das ameaças, o homem disse que “não queria inibir a liberdade de expressão”. Numa atitude que beira o non sense, disse que pedia apenas uma “cobertura equilibrada”.

A jornalista foi incorporada ao sistema de proteção federal, e disse que continuará a atuar da mesma forma, sem se intimidar. Pelo Twitter e por um vídeo no YouTube, ela agradeceu o apoio recebido.  

 

Cartel acusa emissora de favorecer grupos “inimigos”

A mensagem divulgada no vídeo denuncia que a Milenio Television, canal nacional de notícias a cabo associado a uma grande rede de jornais, favorece os chamados grupos de autodefesa cidadã que lutam contra o cartel de Jalisco no estado de Michoacán.

Cidadãos mexicanos formam milícias para combater o narcotráfico. (Reprodução)

Os integrantes desses grupos se dizem cidadãos cansados de esperar pela ação do governo. Muitas vezes mascarados para evitar represálias, eles resolveram se armar e atuar por conta própria contra os cartéis, mesmo que à margem da lei.

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No vídeo, o representante do cartel de Jalisco acusa esses grupos de serem na verdade também traficantes de drogas, por serem, segundo ele, os únicos com condições de pagar o armamento que essas forças têm à disposição.

México foi o país com mais assassinatos de jornalistas em 2020

O presidente da república, Andrés Manuel López Obrador, foi à TV para manifestar apoio aos jornalistas ameaçados. 

O porta-voz da presidência mexicana, Jesús Ramírez Cuevas, disse no Twitter que o governo “tomará as medidas necessárias para proteger os jornalistas e meios de comunicação ameaçados”.

As promessas de proteção do governo aos jornalistas, no entanto, têm se mostrado inócuas. Nos últimos quinze anos, desde 2006, 119 jornalistas perderam a vida no exercício da profissão.

Na última edição do ranking de liberdade de imprensa elaborado pela Repórteres Sem Fronteiras (RSF), o México ficou em 143º lugar, entre os 180 países analisados. 

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No final de 2020, o balanço anual da mesma organização considerou o México o país mais perigoso do mundo para a profissão, com o maior número de assassinatos de jornalistas ao longo do ano. 

Pelo menos oito jornalistas foram executados no México no ano passado, às vezes de forma selvagem, por investigar os cartéis e suas ligações com a classe política. Em 2021, o número de assassinatos dos profissionais de imprensa no país já chega a cinco.

Veículos de comunicação se unem para pedir ação do governo

Todos os principais meios de comunicação do México assinaram um manifesto em defesa da liberdade de expressão, atribuindo as ameaças à impunidade dos grupos criminosos, “que durante décadas intimidaram jornalistas e meios de comunicação”:

“Em muitas regiões do México, ações como essa geraram mais ataques contra jornalistas, convertendo-os em vítimas do silêncio. A transformação que se espera do país só será possível se a liberdade de expressão não for ameaçada.”

Na mesma linha, o grupo Milenio garantiu que não se intimidará com as ameaças:

“Exercer o ofício jornalístico e informar sobre a violência dos cartéis é um risco, porém o Grupo Milenio manterá o compromisso de seguir fazendo isso, de maneira imparcial e atendendo ao direito da audiência a uma informação de qualidade.”

Durante a condução do telejornal depois de ter sido ameaçada, Azucena se solidarizou com os demais jornalistas intimidados pelos cartéis no país:

“Quero prestar minha solidariedade aos centenas de colegas que estão ameaçados ou tiveram que se mudar de suas cidades, mas seguem demonstrando tanto o valor de informar como o amor a esta profissão.”

Ameaça contra jornalista de rede nacional é rara

Geralmente, os alvos mais comuns dos cartéis são repórteres de jornais locais sediados nas áreas onde eles lutam contra rivais pelo controle do crime organizado da região.

Por essa razão, o vídeo do cartel Jalisco Nova Geração chamou maior atenção, por representar uma ameaça aberta contra um jornalista de um veículo de âmbito nacional.

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O cartel de Jalisco tem demonstrado um alcance quase ilimitado dentro do México e é considerado o grupo criminoso mais indomável em ação no país, assumindo um papel central no comércio multibilionário de drogas da América do Norte.

Menos famoso internacionalmente do que o cartel de Sinaloa, do agora preso Joaquín “El Chapo” Guzmán, o cartel de Jalisco é capaz de demonstrações de violência extrema e dono de um poderio militar que, segundo especialistas, representa uma ameaça crescente ao presidente nacionalista do México, Andrés Manuel López Obrador.

Grupo realizou primeiro atentado na capital do país depois de 50 anos

A ousadia do cartel é tanta que em junho do ano passado realizou o primeiro atentado na capital do país desde 1971. Na ocasião, membros do cartel disfarçados de trabalhadores rodoviários deixaram gravemente ferido o chefe de polícia da capital do país, Omar García Harfuch.

A emboscada aconteceu em plena manhã quando García passava de carro pela rua mais famosa da capital, a Avenida Paseo de la Reforma, onde estão sediadas várias embaixadas estrangeiras. O ataque causou a morte de três pessoas – dois guarda-costas e uma transeunte.

Jalisco é o sétimo estado mais importante do México e o cartel que leva seu nome tem suas bases numacordilheira a oeste de Guadalajara, a capital do estado e batizada em 2008 como “cidade química” pelas autoridades norte-americanas.

A proximidade a dois portos do Pacífico, Manzanillo e Lázaro Cárdenas, por onde chegam os insumos químicos contrabandeados da China para o refino das drogas, faz dessa cordilheira um local estratégico, onde o grupo mantém os campos de treinamento paramilitar e os laboratórios que produzem as drogas que dali seguem para os Estados Unidos.

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