Londres – O mais novo integrante do exército dos que resolveram se levantar contra a cultura do cancelamento e contra o chamado “politicamente correto” é um dos ídolos britânicos, o ator John Cleese, estrela do irreverente seriado Monty Phyton, que fez história na década de 70.
Ele anunciou sua nova empreitada na TV: uma série que promete desafiar a tese de que certas ideias não devem ser compartilhadas e nem tudo pode ser alvo de piadas.
Mais do que discutir os limites do politicamente correto no humor, Cleese emprestará sua popularidade para validar o questionamento que setores da sociedade, das artes da mídia e até do Partido Conservador, que governa o Reino Unido, fazem sobre a condenação aos que defendem publicamente teses controversas ou brincam com temas considerados ofensivos para alguns.
O nome do programa, que vai ao ar no Channel 4, é provocativo: Cancel Me (Cancele-me).
Neste vídeo, sem palavras, com música eletrônica, grafismos que destacam a imagem de um lápis com borracha de apagar na ponta e um Cleese com cara de mau, o canal procurou transmitir o espírito da série.
Sem perder a piada
Na série, ainda sem data confirmada para ir ao ar, o ator promete ir fundo no debate sobre o que é piada, o que é ofensa e até onde a pluralidade de ideias pode chegar.
Por meio de entrevistas com pessoas “canceladas”, ele se propõe a investigar por que uma nova “geração woke” está “tentando reescrever as regras sobre o que pode e o que não pode ser dito”, sobretudo na comédia.
A palavra woke (acordado, em inglês) define quem despertou para a importância de combater racismo, teorias conspiratórias e discriminação social, racial, étnica e de gênero. Para Cleese, esse despertar não é necessariamente bom.
“Estou feliz por ter a chance de descobrir todos os aspectos do chamado politicamente correto. Tem coisas que eu não entendo, tipo: como a ideia impecável de ‘Vamos todos ser gentis com as pessoas’ foi desenvolvida, em alguns casos, ad absurdum.
Quero trazer os vários argumentos para que as pessoas possam ter mais clareza em suas mentes com o que concordam, com o que não concordam e sobre o que ainda têm dúvidas.”
Geração anterior à da cultura do cancelamento
O engajamento de John Cleese no combate à cultura do politicamente correto é coerente com sua posição ideológica, alinhada a valores comuns aos setores mais conservadores da sociedade britânica.
Boa parte da carreira do ator, que tem 81 anos, desenvolveu-se em uma era em que humoristas não tinham que pisar em ovos para evitar piadas que os façam vítimas da cultura do cancelamento.
Décadas atrás, quando ele inspirou gerações de humoristas com atuações inesquecíveis em Monty Phyton e também em seriados como Fawlty Towers e filmes Um Peixe Chamado Wanda, não havia tal preocupação.
Cenas de nu artístico não eram igualmente tão vigiadas como são hoje. Um exemplo é este filme de 1974, Romance with a Double Bass, em que ele contracena com a atriz Connie Booth, sem roupa e com uma tarja bem caricata, ironizando a censura.
Ao postar a foto no Twitter, ele provoca dizendo que poderia estrear no OnlyFans, serviço que hospeda vídeos picantes.
I suppose I must start an Onlyfans to show you Part 4! Romance with a Double Bass (1974) pic.twitter.com/NvLE6Jufwz
— John Cleese (@JohnCleese) August 31, 2021
Politicamente correto, uma bandeira do conservadorismo britânico
Mesmo não tendo sido diretamente afetado pelo risco de cultura do cancelamento como os humoristas atuais, ele se tornou um defensor do vale-tudo, em sintonia com as correntes de pensamento conservadoras que vêm desafiando o politicamente correto em várias frentes.
As opiniões de John Cleese na vida real desagradam a muitos colegas de profissão, mais alinhados a valores progressistas. E a uma parcela do público, sobretudo depois que ele se tornou defensor agressivo do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, que tem um viés nacionalista, contra imigrantes e mionorias.
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E apesar de ter construído a vitoriosa carreira em outra era, ele não se livrou das polêmicas que atingiram muitos programas de humor que abordam temas sensíveis para a sociedade.
Em 2020, o ator classificou de “estúpida” a decisão do serviço de streaming da BBC de remover uma cena do Fawlty Towers gravada em 1975, em que o personagem Major Gowen usou a “palavra com N” (pior xingamento a um negro em inglês) para referir-se ao time de críquete das Índias Ocidentais.
A cena acabou ficando, com uma mensagem de alerta. Mas o episódio mostrou sua irritação com o revisionismo histórico.
Revisionismo nas artes, na mídia e na academia
No Reino Unido, esse revisionismo vem motivando reações no mundo das artes, na mídia e na academia.
O lançamento da emissora GB News, em março, é um exemplo. Ela nasceu com apoio do Partido Conservador e é financiada por expoentes do conservadorismo, com a declarada missão de não se submeter ao politicamente correto.
Deu voz a figuras polêmicas como o político Nigel Farage, que não hesita em vociferar contra imigrantes e minorias em rede nacional.
As universidades britânicas têm sido palco de embates envolvendo retratos e esculturas de figuras associadas ao colonialismo e à escravidão. E sobre o direito de palestrantes compartilharem visões consideradas politicamente incorretas, com vetos seguidos.
Sobrou até para a rainha Elizabeth, que teve um retrato seu removidoda parede de uma faculdade por decisão de estudantes.
Nesse ambiente polarizado, o programa de John Cleese vai atrair audiência dos que já concordam com sua posição contrária ao politicamente correto. E provocar reação dos que discordam da ideia de que não se pode perder a piada mesmo quando ela ofende alguns ou fortalece preconceitos.
A depender do tom, pode ser uma boa contribuição para o debate, ajudando a encontrar o ponto de equilíbrio. Ou servir de combustível para referendar o uso da mídia e das artes como veículos para validar comportamentos nocivos à sociedade “empacotados” como humor.
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