Londres – Na semana marcada por problemas atípicos na Grã-Bretanha em tempos recentes, como gente brigando em fila de posto de gasolina e risco de faltar peru no Natal, a crise de imagem que se abateu sobre a Scotland Yard, a polícia metropolitana de Londres – ou Met, como é chamada-, é mais uma coisa incomum acontecendo em um país onde confiança na polícia faz parte da tradição nacional. 

Em alguns países, como o Brasil, crimes cometidos por policiais não são raridade. Nem nos Estados Unidos, onde casos como o de George Floyd geraram crises históricas. Mas no Reino Unido são.  

E as circunstâncias do assassinato de Sarah Everard, uma executiva de 33 anos, pelo policial Wayne Couzens, ocorrido em março em Londres, tornam este caso diferente do padrão de violência policial durante operações ou conflitos urbanos.

E por isso mais danoso para a reputação, pois perde os atenuantes de situações de extrema pressão ou defesa pessoal que costumam ser invocados nesses casos. 

Abuso de confiança

Couzens, de 48 anos, não estava em uma blitz oficial quando abordou a jovem que voltava da casa de um amigo em março. Ele abusou da confiança que os britânicos têm em sua polícia para simular uma prisão por infração às regras do lockdown imposto pelo governo para controlar a Covid-19.

Sarah Everard (foto: Met Police)

Fez Sarah entrar em uma viatura para depois estuprá-la, matá-la e sumir com o corpo, encontrado dias depois em um pântano em Kent. 

O questionamento que se seguiu ao caso, que piorou esta semana quando os detalhes da forma como ele praticou o crime foram revelados durante o julgmento em que foi sentenciado à prisão perpétua, não é sobre uma falha de conduta individual.

Ele se concentra em como a instituição não levou em conta sinais de que ele tinha desvios, no que fez depois que soube e no que vai fazer para garantir que fatos assim não se repitam. A resposta até agora é um festival de erros de administração de crises. 

Histórico de desvios de conduta

Apesar de ser qualificado para patrulhar embaixadas e até o Parlamento, Couzens tinha histórico conhecido de atos ilegais contra mulheres, o que endossa a crítica de falha da instituição (ou vista grossa corporativa) ao deixá-lo trabalhar. E ainda de ter pago seu salário entre março, quando foi preso, até julho quando admitiu a culpa.

Foto: Met Police

E ele parece não ser o único. Na sexta-feira, foi aberta uma investigação sobre policiais que faziam parte do grupo de WhatsApp do qual ele participava, contendo imagens e comentários considerados incompatíveis com a função de zelar pela segurança da sociedade, incluindo a das mulheres, à luz dos valores atuais.

Cinco oficiais em serviço e um ex-oficial estão sendo investigados pelo Escritório Independente de Conduta Policial (IOPC) por supostamente distribuir mensagens entre março e outubro de 2019, descobertas durante a investigação de assassinato de Everard.

Três deles, incluindo o ex-oficial, estão sujeitos a investigação criminal por crimes nos termos da Seção 127 da Lei de Comunicações, que se refere a material que seja “grosseiramente ofensivo ou de caráter indecente, obsceno ou ameaçador”.

Há quem ache engraçado trocar mensagens pornográficas e tome como brincadeira, mas em se tratando de pessoas treinadas e pagas para proteger outras, denegrir mulheres é algo difícil de ser defendido perante a opinião pública. 

O problema se agravou com a revelação do jornal Daily Mail de que mais de 1 mil policiais do Met já foram investigados internamente por postarem mensagens ofensivas, com conteúdo racista, misógeno, sexista e homofóbico em mídias sociais como Facebook e Twitter. E também pelo envio de conteúdo sexual a menores. Mas poucos foram desligados da força, sofrendo apens sanções administrativas. 

Falta de ação

Ainda assim, e contrariando os mais elementares princípios de gestão de crises de imagem, nada de concreto foi feito até agora para remediar a situação e tentar recuperar a confiança, a não ser discursos indignados e um longo statament em que a Met admite falhas nas investigações anteriores de atos atribuídos ao policial assassino e procura se eximir de culpa. 

O governo anunciou um investimento de £25 milhões para melhorar a segurança nas ruas, incluindo o aprimoramento das câmeras de segurança. Mas isso nada tem a ver com o caso, já que o que está em questão é a conduta de um policial cuja ação foi filmada por câmeras.

Não foi a falta delas que levou à morte de Sarah Everard e não é ste o foco da mídia e das conversas nas redes sociais. 

Alguns movimentos até pioraram a situação. Em uma declaração, o conselho da Scotland Yard reconheceu que “as mulheres estão preocupadas”.

E recomendou que se alguém abordado na rua se sentir em “perigo real e iminente e não acreditar que o policial é quem diz ser”, deve gritar para um transeunte, correr para uma casa, bater em uma porta, ligar para o 999 se possível ou acenar para um ônibus”.

Como estratégia de comunicação, a sugestão é um tiro no pé, pois admite a possibilidade de o caso ocorrido com Sarah Everard se repitir, movimento arriscado para a imagem já desgastada. 

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Em uma entrevista no programa do jornalista Trevor Philips na Sky News na manhã de domingo (3/10), o prefeito de Manchester, Andy Burnham, criticou a ideia de sugerir às mulheres que acenem se abordadas por um policial:

“Qualquer medida que parta do princípio de que as mulheres devem fazer alguma coisa é uma medida ruim”, inferindo que as soluções devem vir de dentro da própria instituição.”

Enquanto isso, a polícia da Escócia se adiantou e anunciou um novo procedimento para abordagens na rua, como forma de transmitir segurança à população e conter a crise de confiança gerada pelo caso da polícia londrina.

A pedido da pessoa abordada, o rádio do policial será colocado em viva-voz para que outro policial ou um membro da equipe da sala de controle possa confirmar que é quem diz ser, que está de serviço e o motivo pelo qual o policial está falando com ela.

Scotland Yard, um patrimônio nacional 

A crise de imagem enfrentada pela Scotland Yard afeta uma instituição quase bicentenária, associada à imagem do próprio país.

Scotland Yard Met Police
Foto: Pixabay

Policiais vestidos com jaquetas pretas e chapéus altos de lã com emblemas brilhantes estão em filmes e séries.

O prédio da New Scotland Yard, às margens do rio Tâmisa e perto do Big Ben, do Parlamento e da catedral de Westminster, faz parte do roteiro turístico de quem visita Londres.

A Met foi criada em 1829 por um ato no Parlamento apresentado pelo então ministro do Interior, Sir Robert Peel, cujo nome deu origem a dois apelidos que os policiais têm: “bobbies” e “peelers”.  

A ideia era profissionalizar um esquema desorganizado, formado por uma mistura de vigias noturnos, policiais locais e soldados do exército vestindo jalecos vermelhos. 

O nome vem de sua sede original, que tinha uma entrada pela rua Great Scotland Yard. Mas houve reação negativa, com opositores reclamando de que a nova força policial restringiria as liberdades pessoais.

Livros de história registram a resposta de Peel, no contexto da época:

“Eu quero ensinar às pessoas que a liberdade não consiste em ter sua casa roubada por gangues organizadas de ladrões e em deixar as principais ruas de Londres na posse noturna de mulheres bêbadas e vagabundos.”

Proteger mulheres não era um dos objetivos, em uma época em que poucas saiam às ruas sozinhas e as que se embriagavam não eram bem-vistas. Mas a confiança conquistada pelos boobies, alguns patrulhando o centro da cidade a cavalo até hoje, poucas vezes foi tão posta à prova como agora. 

E tudo acontece em uma época em que o debate ocorre não apenas na imprensa, nos gabinetes ou no Parlamento, mas nas redes sociais, onde a condenação é devastadora para a imagem. 

Sentença não amenizou críticas 

Longe de dar à sociedade e a à família um alívio, o julgamento de Wayne Couzens à prisão perpétua esta semana aprofundou a crise, por ter exposto pela primeira vez, com imagens vívidas, as circunstâncias absurdas do crime. 

Imagem: Met Police

Cenas de câmeras de segurança foram exaustivamente apresentadas na mídia, mostrando a executiva caminhando de volta para casa e sendo abordada e algemada pelo policial cuja conduta já era preocupante.

Couzens, que tinha o apelido de “Estuprador”, era conhecido entre seus colegas da Met por ter arranjado encontros com garotas de programa em pubs locais.

Foi uma vez denunciado por dar um tapa no traseiro de uma policial na delegacia de Bromley, mas nenhuma ação foi tomada.

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No domingo (3/10), o tabloide Daily Mail revelou um episódio em que ele levou uma prostituta como acompanhante a uma festa de aniversário de um policial.

Uma testemunha disse ao jornal: “nós sabíamos que Wayne era casado e esperávamos que ele aparecesse com sua esposa. Em vez disso, ficamos de queixo caído quando ele apareceu com uma mulher vestida de forma exagerada”.

Ele apresentou a acompanhante como “um pedaço de bronze”. A fonte disse ao jornal ter visto Couzens no banheiro rindo de ter que pagar por sexo. 

Também houve registros de que ele dirigiu pela cidade de Kent nu da cintura para baixo em 2015.

Três dias antes de sequestrar Sarah, ele exibiu as partes íntimas para o funcionário de uma lanchonete. foi denunciado e virou alvo de uma investigação que igualmente não deu em nada. Se desse, talvez ele tivesse sido impedido de cometer o crime contra a jovem. 

Mesmo que não tivesse feito diferença, para a crise de imagem faz, porque refoça a ideia de que houve acobertamento. 

Mulher no comando 

O uso do carro oficial, do distintivo e até de algemas para sequestrar Sarah Everard são elementos fortes para o discurso de quebra de confiança em uma instituição que por ironia tem uma mulher no comando.

A comissária Cressida Dick é uma figura popular, que aparece regularmente na mídia, e acaba de ser reconduzida a mais dos anos à frente da Met pelo Home Office, secretaria nacional responsável pelas áreas de justiça e segurança pública.

O órgão, com status de ministério, também é dirigido por uma mulher, Priti Patel, que faz parte do “núcleo duro” da administração do primeiro-ministro Boris Johnson.

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Integrante da Met desde 1983, Cressida Dick não é unanimidade. Houve pressão para que não continuasse e até uma carta assinada por  ativistas e personalidades críticas de sua gestão pedindo que o comando fosse renovado. mas ela conseguiu permanecer. 

Uma pesquisa feita pelo instituto YouGov em 1º de outubro, dia seguinte ao do julgamento, mostrou que 38% dos britânicos queriam a sua saída e 35% não sabiam. Ela contava com apoio de apenas 27% da população. 

Com as novas revelações dos últimos dias, o placar pode ter mudado, e seria improvável que a favor da comissária. 

Dick liderou a operação que matou o brasileiro Jean Charles 

Um dos episódios que marcou sua carreira foi o de Jean Charles, em 2005. A operação que resultou na morte do brasileiro inocente no metrô, como suspeito de terrorismo, foi liderada por Cressida Dick. 

Um julgamento subsequente considerou a polícia metropolitana culpada de colocar o público em risco, mas inocentou a então comandante Dick. Mais tarde, ela descreveu o assassinato como “um momento terrível” e disse que o aprendizado a fez ser uma líder melhor. 

Mas as controvérsias sobre seu comando continuaram. Uma das crises recentes em que se envolveu foi justamente relacionada ao caso de Sarah Everard. 

Repressão à vigília

Sob o comando de Dick, policiais da Scotland Yard dispersaram com violência uma vigília feita em março em Clapham Common, onde a jovem morava, que teve até a visita de Kate Middleton, a duquesa de Windsor, mulher do segundo na sucessão para ocupar o trono britânico. 

O motivo alegado era a quebra das regras do lockdown da Covid-19. Imagens de mulheres sendo algemadas e arrastadas tomaram conta das redes sociais, com a polícia recriminada por usar violência contra as que faziam a vigília mas não ter evitado que o crime acontecesse. 

No entanto, um relatório da própria Met constatou que a polícia agiu “apropriadamente”.

Posteriormente, Cressida Dick disse à BBC que a confiança no policiamento da vigília tinha sido prejudicada por causa de comentários feitos nas redes sociais, e não pelas ações de qualquer policial da força. 

E ainda teve que explicar porque não prendeu nem multou Kate Middleton. O motivo alegado foi que a duquesa estava em “missão oficial”. 

Salário integral 

O pagamento do salário do policial já acusado de ter cometido o crime, fato anunciado pela própria Met, virou outro flanco aberto para desgastar a imagem da polícia, contribuindo para corroborar a ideia de que houve complacência e corporativismo.

A direção da Met argumentou que era obrigada por lei a continuar a fazê-lo até que ele se declarasse culpado. Mas uma fonte do governo disse aos jornais que os advogados do Ministério do Interior determinaram que seu salário estimado de £ 33 mil  por ano poderia ter sido retido depois que ele foi preso e acusado, em março. 

Falando após a condenação de Couzens,  a comissária disse: “Não há palavras que possam expressar totalmente a fúria e a tristeza avassaladora que todos nós sentimos sobre o que aconteceu com Sarah. Eu sinto muito.”

Em uma reportagem sobre a trajetória da chefe da polícia, o jornal The Guardian indagou: “‘sinto muito’ será o suficiente?”.

Boris Johnson na operação-resgate de confiança 

No dia do julgamento, o primeiro-ministro tuitou declarando-se horrorizado e afirmando que nenhuma mulher deveria ter medo de sofrer assédio ou violência.

E que o governo fará tudo o que puder para prevenir crimes abjetos e manter a sociedade segura. Um discurso politicamente correto, mas que não defendeu a imagem da Met. 

Na sexta-feira (1/10) ele foi à imprensa para tentar remediar, pedindo às pessoas para continuarem a confiar na polícia.

Para alguns são vai ser fácil seguir o conselho diante de novas revelações trazidas diariamente. As capas dos principais jornais britânicos deste domingo destacam o fato de o policial condenado ter sido detentor de uma credencial que lhe dava acesso ilimitado ao prédio do Parlamento, apesar de seu histórico de desvios sexuais.

O “speaker”, Lindsay Hoyle, um parlamentar que excerce um cargo equivalente ao de um diretor e responde pela operação da casa parlamentar, disse estar “extremamente preocupado”, e que vai cobrar explicações de Cressida Dick. 

O debate sobre soluções é interminável, com propostas de uma revisão geral nos processos de admissão e de revalidação periódica dos policiais à luz de sua conduta. Mas nada ainda foi confirmado pela Scotland Yard. 

Independentemente de sua eficácia futura, anunciar medidas concretas é vital em gestão de crises. E rápido, para conter a sangria. 

A própria manutenção de Cressida Dick no cargo não ajuda, pois uma das ações mais esperadas em instituições é que responsáveis sejam desligados. Como chefe da força, ela é em última análise a responsável pelos sinais dos desvios de Wayne Couzens não terem levado a qualquer atitude.

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Investigação independente pode agravar a crise de confiança

Enquanto isso, os fatos não esperam. Um ex-chefe da polícia metropolitana, Ian Blair, juntou-se às demandas para uma investigação independente, que pode se transformar em um circo dos horrores para a reputação da Scotland Yard, com o potencial de expor casos em que as práticas de seleção e a complacência com má conduta, como ocorreu com Wayne Couzens, tenham também ocorrido. 

E assim comprovar o que muitos acusam, de não ser um fato isolado, o que tira o foco do assassino para mirar na instituição. 

A narrativa adotada pelo primeiro-ministro de culpar o sistema judicial pela demora em julgar casos ou dificuldades para investigar pode até ser verdade.

Mas não explica o fato de que no caso de Couzens, a polícia tinha todos os elementos para evitar que ele continuasse trabalhando. E em crises, contra fatos não há argumentos. 

O “banco de confiança” de Al Golin

Tendo conseguido solucionar crimes de forma rápida e prender terroristas antes de praticarem atentados, a Scotland Yard tem sua técnica e eficácia reconhecidas em todo o mundo. A própria Cressida Dick ostenta uma lista de sucessos em casos de terrorismo. 

Mas o que sobra em excelência policial está faltando na gestão de imagem. E a demora em agir faz com que entre em um terreno cada vez mais perigoso, pois o capital de confiança vai sendo consumido. 

Foto: Golin

Um dos maiores profissionais de relações públicas da história, o americano Al Golin, fundador da agência Golin e eleito uma das 100 personalidades mais influentes de RP no século 20, cunhou a metáfora do “Banco de Confiança”, que virou um livro.

Golin visitou o Brasil várias vezes, a convite da Publicom (hoje Weber Shandwick), agência de comunicação que se tornou representante local da empresa americana na década de 90. 

Nas palestras que deu em eventos de comunicação e em conversas individuais com grupos de executivos, o experiente relações públicas, que morreu em 2017 aos 87 anos,  explicava o conceito. 

Reputação é construída por “depósitos” no “banco de confiança”, que são os atos positivos que pessoas, empresas ou instituições praticam ao longo de sua vida. 

Quanto maior o saldo, maior a resistência em crises, pois a opinião pública consegue relativizar um episódio levando em conta tudo o que de positivo já foi feito no passado. Isso ajuda a posicionar a crise como um episódio isolado, não uma prática habitual. 

Mas o saldo tem limites. E mesmo alto, pode ser consumido inteiramente, alertava Golin. 

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O gerenciamento da crise da Scotland Yard enquadra-se nesse caso.

O “banco de confiança” da instituição tem saldo alto, resultado de quase 200 anos de bons serviços, com poucos deslizes. Mas está sendo corroído sem que novos depósitos sejam feitos rapidamente para equilibrar.

O tamanho do prejuízo pode ser grande e duradouro para a reputação de uma instituição cujas expectativas sempre foram altas,  mas que decepcionou tanta gente com um caso de grande comoção popular.

E diferentemente da reputação de uma empresa ou celebridade, o desgaste de sua imagem escorrendo sobre a confiança na polícia como instituição afeta diretamente a sociedade. 

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