MediaTalks em UOL

Após repercutir Pandora Papers, portal de notícias é bloqueado no Cazaquistão e fundadores renunciam

(Divulgação)

A divulgação da série de jornalismo investigativo Pandora Papers, que expôs esquemas de políticos e celebridades para ocultar dinheiro ou evitar pagamento de impostos usando paraísos fiscais, gerou no Cazaquistão a censura de um portal de notícias e o desligamento de seus fundadores para que voltasse ao ar.

No país, a reportagem produzida pela rede global de Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCPR) de jornalismo investigativo, publicada no dia 3 de outubro, trouxe à tona depósitos de  US$ 30 milhões (R$ 167,9 milhões) em uma empresa off-shore a pessoas da elite do país ligadas ao ex-presidente Nursultan Nazarbayev, ainda hoje chamado de “líder da nação”. 

As revelações foram publicadas pelo portal cazaque Vlast, parceiro da iniciativa Pandora Papers. Porém a censura acabou atingindo outro portal, o HOLA News, que reproduziu a história assim como outros veículos de comunicação do país. 

No entanto, segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), enquanto a maior parte da mídia cazaque ocultou o nome dos poderosos envolvidos, o HOLA mencionou o nome de Asel Kurmanbayeva, suposta amante de Nazarbayev, em nome de quem os depósitos teriam sido feitos.

Site saiu do ar depois de matéria sobre o Pandora Papers

Após a publicação do conteúdo revelado pelo Pandora Papers, usuários do HOLA News começaram a enfrentar dificuldades de acesso, no que acabou se revelando um bloqueio com dez dias de duração.

Tais bloqueios foram usados na vizinha Rússia para restringir acesso a conteúdo”, afirmou comunicado publicado na página de Facebook do portal, dois dias após o início dos problemas técnicos.

Leia também | Novo relatório da RSF cobra medidas contra ataques à liberdade de imprensa e censura à internet na Rússia

Um comunicado seguinte da publicação, veiculado no dia 15 de outubro, disse que os fundadores do HOLA News, Alisher Kaidarov e Adilet Tursynbek, e a editora-chefe Zarina Akhmatova renunciaram após remover uma notícia (sem especificar qual) para ter o site restaurado, continuando a publicar sob nova gestão. 

A reportagem retirada não foi especificada, mas um link “vazio” foi mantido onde estava anteriormente a reportagem sobre a operação Pandora Papers.

O título diz “havia um título aqui”. Abaixo da imagem, a frase “havia um texto aqui” é repetida três vezes. 

Eles atribuíram suas saídas a terem que “sacrificar seus princípios”, ao serem obrigados a retirar a matéria.

“Entendemos que não havia nada que pudéssemos fazer, mas permanecer seria uma traição a nós mesmos e aos princípios jornalísticos”, disse Akhmetova ao CPJ. 

Leia também | Sociedade Interamericana de Imprensa discute ciclo de ditaduras nas Américas: “jornalismo das catacumbas voltou”

Em seu perfil oficial no Instagram, o HOLA News publicou o comunicado que anuncia a saída dos coordenadores:

“A melhor mídia deste país foi fundada por dois jovens que ainda não completaram 30 anos. Nem todo mundo tem tanta coragem e patriotismo. Fato interessante: o HolaNews nunca tirou um centavo do estado em três anos e meio. 

Nunca participou de licitações, nunca “empurrou” o ponto de vista de outra pessoa sob o ataque de qualquer pressão.

E tudo isso porque em nosso país já há gente suficiente que prosperando com dinheiro, mas não há gente suficiente prosperando com dinheiro dos impostos. Tire suas próprias conclusões.”

Segundo o próprio HOLA News, fundado em 2018, o site registra 1,5 milhão de visitantes únicos por mês. A conta de Instagram da publicação tem 278 mil seguidores.

Apesar de não acusarem diretamente o governo, jornalistas sugerem ter sido boicotados

Embora o Vlast e os demais veículos que cobriram o assunto não tenham sido bloqueados, Azamat Maitanov, editor-chefe do site de notícias independente Aq Zhayiq, que publicou uma matéria semelhante, afirmou ao CPJ que um homem que se apresentou como um “simpatizante do capital” ligou e sugeriu a remoção do conteúdo ligado a Nazarbayev ” para evitar problemas mais tarde”. O jornalista afirma não ter obedecido. 

A agora ex-editora-chefe do HOLA News, Akhmetova, disse em uma entrevista a um canal local do YouTube que acreditava que as autoridades tinham como alvo o portal por recusas “cumulativas” da publicação de “cooperar”.

O site já havia sofrido ataques cibernéticos após publicar uma entrevista com o neto de Nazarbayev no ano passado, de acordo com a imprensa local. 

O HOLA News afirma que a chamada “tecnologia de inspeção profunda de pacotes” (DPI) foi usada para bloquear seu tráfego, sugerindo que os provedores de serviços de internet estavam obstruindo deliberadamente o site.

Leia também | Censura | Chefe de banco estatal toma equipamentos e apaga entrevista de jornalista investigativo na Ucrânia

Governo afirma que irá investigar causa do bloqueio a site de jornalismo independente

O governo não assume oficialmente qualquer papel no bloqueio ao portal após a publicação do material relacionado ao Pandora Papers. 

No dia 7, a ministra da Informação do Cazaquistão, Aida Balayeva, disse a jornalistas que o Ministério do Desenvolvimento Digital — responsável por bloquear o acesso a material online ilegal — não bloqueou o portal, acrescentando que o Ministério da Informação continuaria investigando por que o HOLA News não estava funcionando. 

“As autoridades cazaques devem investigar e explicar o bloqueio ao HOLA News e fornecer garantias a todos os meios de comunicação de que a cobertura jornalística poderá ser divulgada em todas as plataformas sem interferência”, afirma Gulnoza Said, coordenador do programa do CPJ para a Europa e Ásia Central.

No comunicado em que anuncia a saída dos jornalistas e fundadores, o portal ainda faz uma referência ao efeito do jornalismo independente e casos como o Pandora Papers sobre o poder:

“Entendemos que o crescimento da audiência do site chamaria a atenção para a indisponibilidade dele. Eles não vieram por nós, eles vieram por você. Aqueles que agora sabem que a mídia é confiável.”

Leia também

Singapura aprova lei contra interferência estrangeira que permite censura sobre internet e redes sociais

Censura em Hong Kong derruba site de museu sobre Massacre da Praça da Paz Celestial

Sair da versão mobile