Londres – Um juiz americano manteve nesta terça-feira a decisão proibindo o jornal New York Times de publicar matérias sobre correspondências entre um advogado e representantes do grupo de direita Projeto Veritas, em um processo que coloca em questão a liberdade de imprensa e uma suposta violação da Primeira Emenda da Constituição dos EUA.
O Times havia solicitado ao magistrado Charles Wood, da Suprema Corte do Condado de Westchester, no estado de Nova York, que reconsiderasse a proibição imposta na semana passada. Mas ele não aceitou, e deu ao Veritas um prazo até 1º de dezembro para contestar as alegações do jornal.
O Comitê de Repórteres para a Liberdade de Imprensa protocolou um ofício ao juiz do caso, assinado por mais de 50 entidades de jornalismo, argumentando que a “ordem viola o dispositivo legal que impede censura prévia e tem graves implicações para a capacidade de os jornalistas apurarem e publicarem informações de interesse público”.
Projeto Veritas
O Projeto Veritas é uma das organizações ligadas à extrema-direita americana que floresceu na administração de Donald Trump, dedicando-se a atacar pessoas e organizações (principalmente de mídia) críticas ao ex-presidente e a valores considerados de esquerda.
No Brasil, o grupo tem a simpatia da família Bolsonaro. O presidente recebeu representantes do Veritas na residência oficial e posou com a camisa do projeto.
Fundada por James O’Keefe, usa câmeras escondidas e identidades falsas para constranger democratas, grupos trabalhistas e combater o que descreve como “parcialidade da mídia liberal.”
Segundo a agência americana de verificação de fatos First Draft, o Veritas ampliou a desinformação sobre tópicos como vacinas contra a Covid e suposta fraude na campanha que elegeu Joe Biden.
O processo contra o New York Times
A audiência desta terça-feira foi parte do processo de difamação movido pelo Projeto Veritas contra o New York Times devido a uma reportagem de setembro passado, a respeito de um vídeo sobre fraude eleitoral em Minesotta divulgado pelo grupo.
Mas o que motivou a censura prévia determinada pelo juiz não foi o noticiário relativo ao caso, e sim uma outra reportagem, de 11 de novembro. Ela tratava de uma uma investigação do Departamento de Justiça americano sobre o possível envolvimento do Veritas no roubo de um diário pertencente à filha de Joe Biden.
O FBI fez uma busca na casa do fundador do grupo, James O’Keefe, e afirmou que os telefones celulares procurados na operação revelariam evidências de auxílio e cumplicidade no transporte de bens roubados e falha em relatar o roubo às autoridades, em violação à lei federal .
Na reportagem, o jornal incluiu memorandos trocados entre o Projeto Veritas e um advogado contratado para examinar a legalidade de suas práticas para constranger adversários, no contexto de explicar o controvertido modo de atuação do grupo conservador.
Em uma delas, de 2017, o advogado Benjamin Barr avalia que “o estatuto criminal envolvendo declarações falsas para funcionários federais continua a ser uma lei expansiva e perigosa que inibe as operações da Veritas”, em uma aparente condenação a uma prática do Veritas.
Em outra, ele avalia os riscos do uso do Tinder para integrantes do Veritas se aproximarem de membros do governo americano.
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Mesmo não havendo relação com o caso que motivou o processo de difamação, advogados do Veritas pediram ao tribunal estadual onde corre a ação uma restrição prévia contra o jornal, argumentando que os memorandos estavam sujeitos ao sigilo entre advogado e cliente.
O tribunal atendeu ao pedido, ordenando inicialmente ao Times que “se abstenha de divulgar ou publicar qualquer dos ” materiais privilegiados ‘do Projeto Veritas” em sua posse, até a audiência do dia 23/11. A ordem também barrou o Times de “mais esforços para solicitar ou adquirir materiais privilegiados advogado-cliente do ”Projeto Veritas”. Esta ordem agora foi prorrogada até dezembro.
Segundo o New York Times, os memorandos são muito anteriores ao processo de difamação movido pelo Veritas, que tem como objeto o vídeo de Minesotta e não o caso dos diários. Mas o grupo alega que o jornal teria violado o sigilo da correspondência entre advogados e clientes ao tornar a conversa pública a fim de prejudica-lo.
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Uma advogada do Projeto Veritas, Elizabeth Locke, disse em um comunicado na terça-feira: “Como qualquer outro litigante, o The New York Times não pode usar as comunicações advogado-cliente […] para prejudicar os direitos substanciais de seu adversário – neste caso, o direito para se comunicar livre e abertamente com seu advogado. ”
Outro caso ocorreu em 1971
As entidades de liberdade de imprensa americanas se uniram para condenar a decisão.
“É profundamente preocupante que este tribunal esteja mantendo sua restrição anterior inconstitucional por pelo menos mais uma semana”, disse Bruce Brown, diretor executivo do Comitê de Repórteres para a Liberdade de Imprensa, após a audiência.
“Cada dia que uma restrição prévia – que é uma restrição à publicação – é imposta, é uma lesão contínua. É por isso que estão entre as ameaças mais graves à Primeira Emenda.”
Em um artigo sobre o caso no portal acadêmico The Conversation,
de Ética e Direito da Mídia da Universidade de Minesotta, disse que a restrição prévia não tem precedentes desde um caso envolvendo documentos do Pentágono em 1971, e que dificilmente poderia ser considerado válidao à luz da Primeira Emenda, que assegura a liberdade de imprensa e de expressão.O Projeto Veritas tem ligações com o Brasil. Em fevereiro de 2020, um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, Eduardo, encontrou-se com O´Keefe nos EUA e registrou a visita no Facebook, elogiando o trabalho de “expor a hipocrisia da esquerda”.
Em setembro passado, dois integrantes do Veritas, Jason Miller e Matthew Tyrmand, participaram do evento CPAC Brasil 2021, que reuniu integrantes da direita política e apoiadores do presidente Bolsonaro em Brasília.
Tyrmand se reuniu também com Jair Bolsonaro e outro filho, o senador Flávio, na residência oficial do presidente, e posaram para fotos com a camisa do Veritas.
A passagem pelo Brasil foi acidentada. Miller foi detido e interrogado no aeroporto de Brasília por ordem do Ministro do Supremo Tribunal Alexandre de Moraes como parte das investigações sobre a campanha para questionar a segurança do sistema de votações antes das eleições do ano que vem.
Jason Muller fundou a rede social Gettr, que abriga extremistas bloqueados ou suspensos das plataformas mais populares como Facebook e Twitter.
Em fevereiro, a conta do Veritas no Twitter foi suspensa depois da postagem de um vídeo em que o vice-presidente de Integridade do Facebook, Guy Rosen, foi abordado diante de sua casa. A conta de James O´Keefe também foi suspensa meses depois.
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