Londres – O reconhecimento internacional a uma ativista e jornalista premiada em 2019 pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) por sua luta pela liberdade de imprensa no Vietnã não foi suficiente para protegê-la de uma sentença de nove anos de cadeia. 

Pham Doan Trang foi sentenciada por um tribunal de Hanói no dia 14 de dezembro pelo crime de “propaganda anti-Estado”, depois de 434 dias detida. E recebeu do juiz uma pena maior do que a que havia sido pedida pela promotoria, desfecho atípico até para os padrões do regime autoritário do país, um dos cinco com mais jornalistas presos no mundo, segundo relatório divulgado pela RSF esta semana

Protestos vieram de entidades como a Anistia Internacional, que classificou a decisão de “escandalosa”, e até do Departamento de Estado dos EUA, que em nota afirmou que ela “não fez nada além de expressar pacificamente sua opinião”. 

Jornalista premiada e ativista ambiental 

Trang, de 43 anos, é uma das quatro mulheres jornalistas detidas no Vietnã, que ocupa a 175ª posição no ranking de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, com 180 países listados. 

Ela escreveu vários livros e ajudou a fundar veículos de mídia independentes, incluindo a revista jurídica Luta Khoa e o site em inglês The Vietnamese, baseado na Califórnia, do qual é uma das editoras.

Além de atuar na imprensa, criou o grupo ambientalista Green Trees, que denuncia infrações ambientais e já teve vários ativistas presos. 

Capturada em sua casa na cidade de Ho Chi Minh em 6 de outubro de 2020, a jornalista ficou incomunicável por mais de um ano, até 19 de outubro de 2021, quando foi transferida para um centro de detenção a fim de aguardar o julgamento. 

Suspeitando que poderia ser presa, deixou uma carta a ser divulgada caso fosse capturada, no ano passado. Trang pediu que seus apoiadores continuassem sua luta por reformas no processo eleitoral do país; que ajudassem a promover seus livros e que aproveitassem sua prisão para forçar negociações com o governo. 

Campanha internacional pela jornalista premiada

Logo após a prisão da ativista e jornalista premiada pela RSF, a entidade lançou uma campanha internacional por sua libertação, denunciando o autoritarismo do governo vietnamita. 

Julgamento atípico 

O julgamento estava marcado para 4 de novembro, mas foi adiado no último minuto, poucos dias depois de oito especialistas da ONU (Organização das Nações Unidas)  terem emitido uma declaração conjunta pedindo a libertação da jornalista. 

A Repórteres Sem Fronteiras relatou que quando ela apareceu perante os juízes, estava em péssimo estado e mancava como consequência de espancamento sofrido em 2018 pela polícia. Uma exame recente mostrou um tumor em seu abdômen, afirma a organização.

O julgamento teve um desfecho atípico. O juiz Chu Phuong Ngoc condenou Trang a uma pena mais longa do que a que havia sido pedida pela promotoria, que era de sete a oito anos.

Ele aumentou o tempo de cadeia sob a alegação de que seu comportamento era “perigoso para a sociedade” e que suas ações tiveram “intenção de violar o sistema socialista”.

A jornalista negou todas as acusações. Seus advogados disseram que ela foi informada da data do julgamento apenas um dia antes.

Segundo o Washington Post, havia segurança pesada no tribunal, tropas de choque e barreiras policiais nas estradas que levam ao local.

Um dos advogados da jornalista, Le Van Luan, disse ao Post que a segurança é comum em julgamentos dessa natureza, mas o incomum foi a sentença ser mais pesada do que a que havia sido solicitada pelo Ministério Público. 

EUA e organizações de liberdade de imprensa e de expressão reagem 

A sentença recebeu condenação global. O Departamento de Estado dos EUA emitiu uma nota em que diz: 

Os Estados Unidos protestam contra a condenação e a sentença a nove anos de prisão da famosa escritora e jornalista vietnamita Pham Doan Trang, que não fez nada além de expressar pacificamente suas opiniões. 

Observamos também a recente opinião do Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenção Arbitrária, que considerou a detenção de Trang arbitrária e contrária aos compromissos e obrigações internacionais de direitos humanos do Vietnã. 

Os Estados Unidos exortam o governo vietnamita a libertar Trang, que foi reconhecida internacionalmente por seu trabalho para promover os direitos humanos e a boa governança no Vietnã, e a permitir que todos os indivíduos no Vietnã expressem suas opiniões livremente e sem medo de retaliação.”

Daniel Bastard, chefe da Repórteres Sem Fronteiras para a região Ásia-Pacífico, expressou a posição da organização sobre a sentença dada à jornalista premiada pela instituição em 2019:

“Os argumentos mesquinhos apresentados pelo tribunal de Hanói como base para essa sentença não enganam ninguém. Esta é a justiça política realizada por ordem do partido no poder com o único objetivo de punir um jornalista apenas por tentar informar os cidadãos.

Instamos a comunidade internacional a impor sanções direcionadas aos membros do governo do Vietnã responsáveis ​​pelo destino inaceitável de Pham Doan Trang, a fim de obter sua libertação imediata.”

O vice-diretor regional de campanhas da Anistia Internacional, Ming Yu Hah, disse:

“É escandaloso que as autoridades vietnamitas condenem Pham Doan Trang, uma corajosa jornalista e defensora dos direitos humanos, que há anos luta por um Vietnã justo, inclusivo e respeitador de direitos. Seu trabalho deve ser celebrado e protegido, não punido e criminalizado.

Pham Doan Trang é uma voz de liderança para os direitos humanos no país. Ela defendeu ativistas arbitrariamente detidos, escreveu sobre desastres ambientais causados pelo homem e, mais recentemente, desafiou a narrativa oficial do mortal ataque à aldeia Dong Tam. Ela conscientemente fez isso com sérios riscos para si mesma.

O tratamento de Pham Doan Trang – abrangendo assédio, vigilância, ameaças, tortura e processos falsos – é cruelmente emblemático da repressão das autoridades vietnamitas ao ativismo pacífico de direitos humanos em todo o país.”

Uma reportagem exibida pela RFA (Radio Free Asia) mostra cenas do julgamento do dia 14 de dezembro. 

Manifesto da jornalista ao tribunal 

O jornal independente The Vietnamese, que Pham Doan Trang ajudou a fundar, publicou a íntegra de seu depoimento durante o julgamento, entregue pela família da jornalista condenada. 

Ela cita o líder espiritual do budismo tibetano para defender o pluralismo, e se mostra resignada diante da condenação provável. E afirma que quanto mais longa a pena, maior será a demonstração da natureza autoritária do regime do Vietnã.

Sua Santidade o 14º Dalai Lama, líder espiritual dos budistas tibetanos, certa vez fez uma declaração: imagine um mundo de seis bilhões de pessoas em que todos seguissem a mesma religião; o que aconteceria? 

É certo que, mais cedo ou mais tarde, um grupo decidiria que a religião não lhes era mais útil. Esse grupo se separaria para formar uma nova religião ou não seguiria nenhuma religião.

Sua Santidade o Dalai Lama afirmou este fato para apontar que este mundo, esta vida está em sua raiz, pluralista, que a humanidade tende ao pluralismo. Apenas os tolos discutiriam o fato do pluralismo ou negariam sua existência. 

Apenas o hediondo tentaria extingui-lo. E apenas governos extremamente tolos e hediondos tentariam extingui-lo por meio da repressão e da prisão de dissidentes, escritores, jornalistas, críticos sociais e ativistas pela democracia e pelos direitos humanos.

Leia também

México reconhece pela primeira vez responsabilidade em assassinato de jornalista

Wikileaks | Suprema Corte britânica decide que Julian Assange pode ser extraditado para os EUA

Em uma sociedade democrática, se um cidadão escreve algo ou responde a perguntas de jornalistas estrangeiros sobre assuntos que o governo não quer ouvir, qual seria a resposta civilizada? 

A resposta mais civilizada seria o governo não fazer nada porque uma pessoa civilizada sabe respeitar as opiniões e os interesses dos outros. 

Em uma situação menos afortunada, se um governo tem tendências autoritárias e considera o que o cidadão diz inaceitável, então ele poderia simplesmente escrever livros ou artigos para refutar esse cidadão, ou mesmo corajosamente contatar a imprensa estrangeira para marcar uma entrevista em que um governo representante expressa seu ponto de vista ou responde ao cidadão em questão. 

Mas a República Socialista do Vietnã não faz nada disso. Em vez disso, opta por responder de maneira vil, tola e hedionda.

Hoje, irmãos e irmãs, vocês me condenam, talvez a muitos anos de prisão, mas está tudo bem. 

Como afirma a figura Nguyen Trai na tragédia “O Segredo do Jardim Le Chi”:

“Um animal pode matar um ser humano, mas continua a ser um animal. A humanidade carrega em si a capacidade de raciocinar e pode até ser morta por ela, mas a proteção da razão é para sempre o dever sagrado da humanidade ”.

Quanto mais longa a pena de prisão, mais demonstrável a natureza autoritária, não democrática e antidemocrática da República Socialista do Vietnã. 

Irmãos e irmãs, vocês podem me prender e comemorar por ter eliminado um antigo espinho em seus olhos, mas nunca se livrarão de sua reputação feia, autoritária, antidemocrática e antidemocrática. 

Porque um animal é para sempre um animal; nunca pode se tornar humano.”

Leia também 

2021 tem recorde de jornalistas presos no mundo e quase uma morte por semana, mostra relatório