Londres – Ganhador do Prêmio Nobel da Paz com a filipina Maria Ressa, o editor-chefe do jornal russo Novaya Gazeta, Dmitry Muratov, fez uma declaração de amor ao jornalismo investigativo em um webinar ao vivo promovido pela Global Investigative Journalism Network, agora disponível em vídeo.
O Nobel da Paz sugeriu a criação de um tribunal penal internacional contra a tortura, a partir de uma união global de jornalistas investigativos que levantem informações sobre a prática dessa violência em diferentes países, criando um documento, uma espécie de enciclopédia da tortura, para ser encaminhado a promotores em todo o mundo.
O principal objetivo de Muratov é combater a impunidade dos torturadores, denunciando seus crimes e levando-os ao tribunal.
O valor do jornalismo independente
A entrevista, realizada em dezembro, é uma lição do bom jornalismo apto a promover mudanças na sociedade e não se conformar com o que está aí e muito menos a servir o poder e as autoridades.
Muratov defende que jovens devem se tornar repórteres investigativos por uma simples razão: “Mudar o mundo para melhor”. E acha que a frase deveria virar uma tatuagem.
Perguntado como busca inspiração após concluir uma investigação jornalística, ele foi bem russo: “Eu bebo com meus amigos”.
Moderada pelo diretor-executivo da GIJN, David Kaplan, a sessão online teve a audiência de profissionais de 74 países.
A conversa abordou o futuro do jornalismo independente, que para Muratov deve ser pautado pela colaboração, e não pela competição por “furos” ou acompanhamento passivo dos acontecimentos.
O vídeo da apresentação pode ser assistido aqui. Os principais pontos destacados pela organização estão a seguir.
Amor ao jornalismo investigativo
“Eu amo e respeito jornalistas investigativos porque este é um trabalho tremendo — trabalhar com fontes e bancos de dados; trabalhar na frente do seu monitor ou no campo. O jornalismo investigativo é a mais importante missão na humanidade porque esse tipo de jornalismo não deixa alguém roubar o nosso futuro.
Repórteres investigativos são as pessoas que nunca receberão essa enorme honra [do Nobel] , mas são o pré-requisito para a sobrevivência dos direitos humanos.”
Colaboração no lugar de competição
“O tempo de registro passivo de acontecimentos, busca de matérias exclusivas e competição com rivais da mídia acabou para a mídia independente.
Em vez disso, as redações precisam colaborar e manter a linha de valores democráticos, buscar ativamente justiça para abusos e soluções para problemas ignorados pelos governos.
“Eu gostaria de atingir uma ação coordenada — os jornalistas profissionais têm que agir juntos”
Solidariedade entre jornalistas
“A solidariedade dos jornalistas é a chave. Se agora Maria Ressa, Deus me livre, for presa nas Filipinas, irei até ela imediatamente — tipo, imediatamente — pegaria esse voo com membros do Comitê Nobel e jornalistas investigativos.
Temos que expressar solidariedade para com os colegas internacionais instantaneamente — temos que estar lá; ir até suas redações; ir até suas prisões.”
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Nobel ajudou a proteger jornalismo independente na Rússia?
“Não tenho uma resposta para essa questão. Há muito mais trabalho para mim agora, porque eu pessoalmente recebo centenas e centenas de e-mails — as pessoas estão solicitando ajuda com remédios, audiências judiciais, apartamentos e doenças infantis”.
Este prêmio se transformou em um novo trabalho para mim e, para ser honesto, estou feliz com isso. Vou precisar de um call-center para atender a todos esses pedidos.
Impacto do jornalismo investigativo para sociedade e para carreiras
“Quando nossas matérias não geram seus resultados, ficamos esgotados.
“A vida real de uma reportagem começa depois de ela ser publicada ou tornada pública. Temos que gerar resultados.
E se virmos esses resultados, não haverá esgotamento.”
Iniciativa global contra a tortura
“Queremos estabelecer um tribunal internacional que lide especialmente com o crime de tortura. Isso é uma coisa terrível e feia acontecendo nas prisões de todo o mundo e na Rússia o tempo todo”.
“Quero uma iniciativa global que colete informações sobre tortura em diferentes países, para que possamos criar um documento internacional sobre tortura para enviar aos promotores. Quem estiver interessado em participar desse projeto, entre em contato comigo por e-mail e eu vou criar um chat sobre a prática da tortura pelo mundo.”
“Assim como existem tribunais que julgam violações de direitos humanos, como foi o Tribunal de Nuremberg, que julgou o crimes nazistas na Segunda Guerra Mundial, entre 1945 e 1946, estou sugerindo a criação de um tribunal que julgue as pessoas que estão envolvidas com crimes de tortura na Rússia e no mundo todo.”
Pode começar como uma iniciativa jornalística, e acho que uma rede de jornalistas investigativos internacionais deve participar. As pessoas estão endo torturados pelo mundo e acredito que essa iniciativa vai ser bem-sucedida”
Uma ideia de jornalismo investigativo “ao estilo Robin Hood”
“Nós, repórteres investigativos, conseguimos descobrir muitos esquemas da máfia e bilhões em corrupção e dinheiro do crime. Para onde ele deveria ir?
“Minha ideia é que o dinheiro vá para instituições de caridade para pessoas em extrema necessidade, ou para curar crianças ou jovens adultos de doenças.
Portanto, não estaríamos apenas afirmando que alguma pessoa roubou algo, e esse dinheiro fica em alguma conta offshore. Teríamos que tirar esse dinheiro das máfias e devolvê-lo às pessoas. Seria uma função do jornalismo investigativo”.
Regimes precisam mudar, e não redações
“Fique no seu terreno — nunca perca sua missão ou compromisso.
Temos autoridades repressivas, mas não mudamos nosso comportamento e somos fiéis aos nossos princípios. Em vez disso, é a autoridade que tem que mudar sua abordagem.
Na Rússia, já temos toda uma geração de repórteres investigativos fantásticos — como os do IStories, ou FBK, a fundação anticorrupção, que é um projeto excepcional.”
Apoio mútuo
“O talento e a motivação para vigilância eficaz já estão presentes em muitas sociedades autocráticas, e os jovens em países autoritários devem considerar que seus talentos podem ser desperdiçados em funções governamentais.
A chave é que os jornalistas se apoiem, é a solidariedade. Qual é meu sonho? Eu sonho, espero, que haja muita cooperação entre as redes internacionais de jornalistas investigativos, como o GIJN.”
Nos discursos do Nobel, o valor do jornalismo independente
Dmitry Muratov e Maria Ressa dividiram o Nobel no ano que que mais jornalistas estão atrás das grades e menos perderam a vida, em parte devido ao menor número de vítimas em conflitos.
A cofundadora e CEO do site de notícias Rappler observou que a última vez que um jornalista foi homenageado com o Prêmio da Paz havia sido em 1936, mas o destinatário não pôde receber o prêmio porque estava definhando em um campo de concentração nazista.
“Ao conceder o prêmio a jornalistas hoje, o comitê Nobel está sinalizando um momento histórico semelhante, outro ponto existencial para a democracia”, disse Ressa.
O editor-chefe da Novaya Gazeta dedicou o prêmio à comunidade mundial do jornalismo investigativo, destacando que ataques a jornalistas em todo o mundo atingem os ideais de liberdade, democracia e estado de direito:
“Somos o pré-requisito para o progresso. Somos o antídoto contra a tirania.”
Dmitry Muratov se comprometeu a doar todo o seu prêmio Nobel (cerca de US$ 570 mil) para instituições de caridade, incluindo organizações que combatem doenças raras na infância na Rússia, bem como fundações de jornalismo, como a que concede o Prêmio Anna Politkovskaya.
O prêmio homenageia a jornalista de mesmo nome que trabalhava no jornal Novaya Gazeta, publicou livros denunciando a corrupção no governo de Putin e foi assassinada com cinco tiros de pistola em 7 de outubro de 2006. O mandante do crime foi o ex-coronel Dmítri Pavliutchenkov, que foi preso e, em 2012, condenado a 11 anos de encarceramento em presídio de segurança máxima.
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