Londres – Espelhando o (mal) humor da populaรงรฃo, a imprensa britรขnica foi incisiva nas crรญticas ao primeiro-ministro do Reino Unido, agravando a crise vivida Boris Johnson depois de sua fala no Parlamento nesta quarta-feira (12/1), a respeito de festas ocorridas na sede do governo no auge do lockdown. O mesmo aconteceu nas redes sociais.
Pela primeira vez, Johnson admitiu que esteve em uma delas enquanto a populaรงรฃo era proibida de se reunir. Ele se desculpou, mas ao mesmo tempo apresentou justificativas que provocaram risos no plenรกrio e irritaรงรฃo fora dele. Afirmou nรฃo ter se dado conta de que o encontro โera uma comemoraรงรฃoโ.
Uma das manchetes mais fortes foi a do tabloide Daily Mirror, cuja editora de polรญtica, Pippa Crerar, รฉ uma das mais respeitadas jornalistas britรขnicas. O jornal estampou a palavra โdesgraรงaโ na capa, elevando as pressรตes por renรบncia.
Crise de Boris Johnson espalha-se nas redes
O tratamento impiedoso nรฃo vem apenas da mรญdia. Nas redes sociais, a revolta pela quebra das regras de isolamento social por aqueles que as impuseram nรฃo sai dos trending topics britรขnicos.
Uma das hashtags mais concorridas รฉ #ToriesPartiedWhilePeopleDied (Conservadores festejavam enquanto pessoas morriam), com usuรกrios postando imagens de seus entes queridos sofrendo no dia em que aconteceu a festa com a participaรงรฃo de Johnson.
Uma anรกlise dos nomes das hashtags mais populares nรฃo deixa dรบvidas sobre como pensam os usuรกrios das redes, com referรชncias ร s festas, ร s mentiras e a uma possรญvel renรบncia: #JohnsonOut, #JohnsonOutToday,#BorisMustGo,#BorisOut e#BorisTheLiar.
Parece atรฉ ironia do destino, mas na manhรฃ desta quinta-feira o chefe do governo do paรญs cancelou uma viagem porque um membro de sua famรญlia testou positivo para o coronavรญrus.
Por outro lado, nรฃo deixa de ser conveniente uma boa justificativa para ficar fora dos holofotes da mรญdia durante uma semana, como rapidamente usuรกrios de redes sociais observaram.
BYOB, as quatro letras que atingiram Boris Johnson
A imagem do ex-jornalista Johson que virou polรญtico, e que por isso sabe como a imprensa e a opiniรฃo pรบblica funcionam, jรก vinha comprometida hรก um tempo. A pressรฃo jรก vinha aumentando desde as notรญcias sobre doaรงรตes mal explicadas para obras em sua residรชncia oficial e sobre encontros proibidos durante o lockdown em Downing Street, a sede do governo.
Atรฉ que veio uma novidade expressa em uma sigla de quatro letras: BOYB, de Bring Your Own Booze (traga sua prรณpria bebida). Foi a cereja do bolo do โPartygateโ.
A sigla comprometedora estava em um e-mail revelado pela emissora ITV. Ele foi enviado a mais de 100 destinatรกrios por Martin Reynolds, secretรกrio pessoal de Johnson.
Era um convite para um encontro aproveitando o โlovely weatherโ que fazia em 20 de maio de 2020. Justamente no auge da crise, quando o Reino Unido chorava por mortos, internados e pelos prejuรญzos de uma Covid descontrolada.
As sessรตes das quarta-feiras no Parlamento britรขnico sรฃo denominadas PM Questions (Perguntas ao primeiro-ministro) e acontecem semanalmente, com transmissรฃo pela maioria dos canais de TV. Mas esta รบltima foi especial.
Algumas emissoras transmitiram com tomadas de helicรณptero a ida de Boris Johnson para o Parlamento. Desde cedo, comentaristas e entrevistados revezavam-se para comentar ao vivo o caso.
Depois do pronunciamento em que Johnson pediu desculpas desajeitadas ร naรงรฃo, a conversa mudou para fortes crรญticas ร s respostas dadas aos opositores na tentativa de ganhar tempo com o pedido de aguardar o resultado da comissรฃo que investiga a histรณria das festas.
A conta do programa humorรญstico Have I Got News For You tuitou dizendo que ” O primeiro-ministro insiste que nรฃo percebeu que era uma festa, e retornou ao escritรณrio logo que o equipamento de karaokรช foi ligado”.
PM insists he didnโt realise it was a party, and returned to his office shortly after they turned the karaoke machine on.
Um dos pontos mais criticados da fala foi a afirmaรงรฃo de que o encontro era para reconhecer o trabalho dos funcionรกrios. Nรฃo apenas isso nรฃo estรก indicado no email, como รฉ um direito que nenhuma outra empresa ou instituiรงรฃo do paรญs teve no auge da crise da pandemia, quando muitos arriscaram a vida em hospitais e transporte, e nรฃo puderam se reunir para festejar.
Outro ponto questionado no Parlamento foi o fato de Johnson ter destituรญdo ou aceitado a demissรฃo de assessores que haviam se comportado mal, e que por isso deveria fazer o mesmo agora.
O caso mais retumbante foi o da entรฃo chefe da comunicaรงรฃo, Allegra Stratton, que em uma simulaรงรฃo de entrevista ano passado fez troรงa com a resposta que daria caso as supostas festas chegassem ao conhecimento da mรญdia.
O caos na imagem do polรญtico que tinha altos รญndices de popularidade apareceu rapidamente nas pesquisas, mas ainda podem piorar, pois elas nรฃo captaram o efeito do pedido envergonhado de desculpas.
O tamanho da corrosรฃo de Johnson foi medido por uma pesquisa do Instituto YouGov para a Sky News, revelada no inรญcio da semana, antes da fala desastrosa no Parlamento.
Pela primeira vez em sua gestรฃo, mais da metade da populaรงรฃo (56%) disse achar que ele deveria renunciar e 17% nรฃo tinham certeza, restando apenas 27% ainda confiantes em sua lideranรงa.
O resultado foi comentado nas redes, em alguns casos com a fina ironia inglesa, como a de uma usuรกria do Twitter que perguntou a respeito dos que ainda apoiam o primeiro-ministro: “o que hรก de errado com os 27%?”.
Nesta quinta-feira, outra enquete do mesmo instituto para o jornal The Times constatou que um em cada seis eleitores querem que o primeiro-ministro deixe o cargo, incluindo 38% dos que haviam votado em seu partido, o Conservador, nas รบltimas eleiรงรตes gerais.
Sรฃo os piores รญndices jรก registrados, e refletem os atos de alto risco que o primeiro-ministro ousou praticar quando permitiu (ou patrocinou) encontros sociais dentro da residรชncia oficial.
Crises anteriores de Boris Johnson foram contornadas
Johnson jรก enfrentou graves denรบncias e forte oposiรงรฃo a outros fatos ocorridos em sua gestรฃo.
Recentemente, foram reveladas mensagens trocadas entre ele e um doador do partido Conservador. Elas sugeriam ajuda financeira para reformas na residรชncia oficial em troca de acesso a ministros para discutir projetos, num episรณdio que foi jocosamente chamado de โwallpaper for accessโ (papel de parede em troca de acesso).
Boris Johnson, em pronunciamento ร naรงรฃo em 12/12 (reproduรงรฃo)
A turbulenta saรญda do Reino Unido da Uniรฃo Europeia tambรฉm motivou crรญticas ao primeiro-ministro, atรฉ mesmo por parte da metade do paรญs que votou pelo Brexit – e depois se arrependeu ao perceber as consequรชncias financeiras eimigratรณrias que poucos haviam pensado antes.
A gestรฃo inicial da Covid foi desastrosa no paรญs, com uma demora na tomada de decisรตes que acabaria por custar vidas e grandes perdas na economia.
Mas tudo isso foi sendo contornado com a ajuda do enorme carisma de Boris Johnson, uma figura que muitos acham atรฉ folclรณrica, de gestos largos, frases de efeito e os cabelos desgrenhados que viraram marca registrada e deliciam os cartunistas.
Piers Corbyn, em festa na passagem do ano novo em Londres (divulgaรงรฃo Twitter)
Traiรงรฃo e mentira foram a gota d’รกgua
Desta vez, o que o povo e a imprensa nรฃo estรฃo perdoando foi a quebra de confianรงa no momento crรญtico da Covid, alรฉm das seguidas faltas com a verdade.
A TV repete ร exaustรฃo as falas do primeiro-ministro nas รบltimas semanas assegurando que nunca soube de festa alguma na sede do governo. Os clipes sรฃo compartilhados pelas redes sociais.
O subtรญtulo da capa do Daily Mirror resume o que levou ร atual – e talvez a รบltima – crise enfrentada por Boris Jonhson:
โPrimeiro, Johnson disse que nenhuma regra foi quebrada … entรฃo ele disse que nรฃo sabia sobre nenhuma festa … agora ele admite que estava em uma delas … mas nรฃo percebeu que era uma festa.โ
Isso รฉ percebido como uma traiรงรฃo, agravada pelo fato de que as pessoas que perderam familiares para a Covid nรฃo puderam velar seus mortos ou visitar seus parentes doentes em respeito ร legislaรงรฃo desrespeitada por Johnson.
As redes sociais estรฃo cheias de exemplos, como o de um usuรกrio do Twitter que relembra enterros sem parentes, apenas com funcionรกrios vestidos com roupas de proteรงรฃo. E afirma que o Reino Unido nรฃo perdoarรก Johnson jamais.
O desastre da atual crise ensina algumas liรงรตes.
Uma delas รฉ o tipo de pecado que a sociedade perdoa. Pelo menos no Reino Unido, corrupรงรฃo pode atรฉ ser perdoada se o governo vai bem. Mรก gestรฃo tambรฉm.
Mas mentira e traiรงรฃo estรฃo se demonstrando como os pecados que rompem os limites de tolerรขncia, atรฉ no paรญs conhecido pela chamada “fleuma”.
E que vive ao mesmo tempo duas crises de imagem severas, que se agravaram nesta quarta-feira, quando o prรญncipe Andrew, o terceiro filho mais velho da rainha, recebeu a mรก notรญcia de que o processo a que responde nos EUA por assรฉdio sexual de uma menor vai seguir adiante.
Nas redes sociais, o infortรบnio de ambos virou piada, como esta que aproveitou uma foto dos dois juntos e acrescentou a fala: “estรก sentindo cheiro de m*?”
O que dizem os jornais sobre Boris Johnson
Os jornais britรขnicos dividem-se entre os “sรฉrios” e os tabloides, conhecidos por manchetes sensacionalistas e perseguiรงรฃo a famosos. Mas eles sรฃo mais do que isso.
Muitos “furos de reportagens” recentes na polรญtica britรขnica foram de autoria de alguns deles. E o acompanhamento de fatos polรญticos รฉ sempre destaque.
Outra caracterรญstica รฉ que no paรญs os jornais assumem claramente um lado do espectro polรญtico, de forma declarada. Cada um apoia um dos dois partidos principais, o Trabalhista (de inclinaรงรฃo para a esquerda) ou o Conservador (mais inclinado ร direita).
O tamanho do desastre de imagem de Boris Johnson pode ser observado pelo fato de que atรฉ os jornais alinhados ao seu partido nรฃo aliviaram a barra depois de sua fala no Parlamento.
Um dos principais deles, o Daily Telegraph, onde Johnson trabalhou quando era jornalista e no qual assinava uma coluna semanal (paga) atรฉ virar primeiro-ministro, destacou a falta de apoio de um importante integrante do governo, o chanceler Rishi Sunak, uma das apostas para substituir o polรญtico na lideranรงa do paรญs.
A manchete diz โSunak deixa Johnson no limboโ, referindo-se ร manifestaรงรฃo discreta feita pelo chanceler apรณs a sessรฃo no Parlamento. E destacou na capa o artigo de opiniรฃo assinado por Juliet Samuel, em que afirma โPrimeiro-Ministro ganha tempo ao custo da zombaria pรบblica admitindo que รฉ um idiotaโ, em alusรฃo ao fato de ele nรฃo ter percebido que a festa era… uma festa.
O Daily Mirror destacou a palavra โDesgraรงaโ, com a foto de Johnson durante sua fala no Parlamento.
Jรก o Metro, jornal gratuito distribuรญdo no transporte pรบblico e um dos de maior circulaรงรฃo no paรญs, foi mais explรญcito na ironia sobre as desculpas com ressalvas feitas pelo primeiro-ministro, com a manchete que em traduรงรฃo livre seria “Pedindo desculpas… mas nรฃo arrependido”.
O mais esquerdista de todos, o The Guardian, apostou no fim do mandato de Boris Johnson com a manchete: โO futuro do Primeiro-Ministro no fio da navalha apรณs o pedido de desculpasโ. O jornal relata que hรก um โescรกrnioโ generalizado por sua alegaรงรฃo de nรฃo perceber que estava numa festa.
O The Times, que apoia o Partido Conservador, tem sido uma pedra no sapato de Boris Johnson. Com denรบncia apรณs denรบncia, destacou a resistรชncia do polรญtico: โPrimeiro-Ministro desafiador se recusa a desistir ร medida que as pesquisas caem ainda maisโ.
O assunto tambรฉm dominou a primeira pรกgina do Financial Times, causando um baque para a imagem do Reino Unido perante o mundo econรดmico e financeiro. O jornal fala das pressรตes do prรณprio partido Conservador para que Johnson renuncie depois de assumir ter participado de festas durante o confinamento.
O jornal i priorizou em sua chamada de capa o desconforto do partido com Boris Johnson e as gestรตes para que ele desista do posto.
Jรก o Daily Express e o Daily Mail ainda parecem nutrir esperanรงa de que o primeiro-ministro siga no cargo apesar de todo o desgaste de imagem. O primeiro insta-o a provar que pode entregar o que prometeu ao paรญs, enquanto o segundo chama a atenรงรฃo para a “operaรงรฃo de salvamento”
O que pode acontecer com Boris Johnson?
No regime parlamentarista, o cargo nรฃo รฉ do polรญtico, e sim do partido escolhido nas eleiรงรตes gerais. Ao vencer as eleiรงรตes, o partido escolhe internamente, por meio de eleiรงรฃo entre seus filiados, o nome do primeiro-ministro.
Boris Johnson foi eleito com uma ampla maioria em 2019, depois da renรบncia de Theresa May por causa do insucesso nas negociaรงรตes difรญceis do Brexit.
O atual desgaste de Johnson nรฃo รฉ apenas pessoal, mas se estende a todo o partido. E isso pode custar caro a outros parlamentares, que passam a correr o risco de nรฃo serem reeleitos em suas comunidades, devido ร insatisfaรงรฃo dos eleitores com a conduta do primeiro-ministro que representa o partido.
Por isso, as pressรตes para a renรบncia nรฃo estรฃo apenas nas redes sociais e na imprensa. O pior efeito da crise รฉ a pressรฃo interna, com membros importantes do partido sendo pressionados pelos seus eleitores.
Um bom exemplo รฉ a do usuรกrio do Twitter que se apresenta como eleitor da comunidade do parlamentar James Daly e pergunta se ele jรก propรดs um voto de desconfianรงa contra o primeiro-ministro.
Postagens como esta se multiplicam nas redes e devem estar deixando os assessores de imagem em pรขnico, medindo os efeitos dos estilhaรงos da bomba que explodiu sobre Boris Johnson.
Johnson pode renunciar, como fez Theresa May, e uma nova eleiรงรฃo interna definir seu sucessor. Ou pode ser objeto de um pedido de votaรงรฃo, chamado de “voto de nรฃo-confianรงa”, em que se perder, fica obrigado a deixar o cargo.
Uma petiรงรฃo online jรก passa de 300 mil assinaturas.
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UK Parliament: Public Vote of No Confidence in PM Johnson –
Mesmo que a crise polรญtica seja abafada, a extensรฃo da crise de imagem รฉ tรฃo grande que dificilmente ele conseguiria recuperar a popularidade que chegou a ter no passado, pois a percepรงรฃo de traiรงรฃo e de desrespeito ao sentimento das pessoas abaladas pela crise do coronavรญrus รฉ uma ferida difรญcil de cicatrizar.
E de novo, as redes sociais jรก fizeram a possรญvel falta de emprego do polรญtico virar piada, como no post de um britรขnico que vive no Brasil usando a imagem do primeiro-ministro com o rรณtulo de quem procura uma vaga na rede social LinkedIn.
Jornalista baseada em Londres, รฉ co-fundadora e Editora-chefe do MediaTalks. ร tambรฉm colunista de mรญdia e comunicaรงรฃo no J&Cia/Portal dos Jornalistas. Faz parte da FPA London (Foreign Press Association).